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A geração de casas e crianças na Bahia: paternidade e relacionalidade no Baixo-Sul* * Agradecemos ao coletivo de pesquisadoras/es do Programa de Pesquisa e Cooperação Técnica em Gênero e Saúde, do Instituto de Saúde Coletiva, da Universidade Federal da Bahia (MUSA/ISC/UFBA), que esteve presente nas discussões dos resultados e no apoio permanente que ofereceu para a realização desta pesquisa e deste trabalho. Este artigo deriva de pesquisa do doutorado realizada entre 2011-2015, com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e bolsa de doutorado sanduíche fornecida pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

The generation of houses and children in Bahia: paternity and relatedness in the Lower South

La generación de casas y niños en Bahía: paternidad y relacionalidad en el Bajo Sur

Resumo

“Riachão” é uma vila de pescadores e marisqueiras artesanais no Baixo-Sul da Bahia, onde o reconhecimento da paternidade ocorre entre concepção e o processo de tornar pública uma gravidez. As pessoas se relacionam como parentes e afins a partir das casas, que são agentes centrais na constituição de relacionalidade (relatedness). A discussão etnográfica evidencia como a relacionalidade emerge nas dinâmicas das relações amorosas, de iniciação sexual, da procriação e do fazer da paternidade, nos quais as casas estão sempre presentes. Para criar parentesco é necessário também gerar casa. O artigo contribui para o estudo do parentesco e reprodução como processo social no Brasil, problematizando as análises dos organismos biológicos e dos processos fisiológicos como apartados dos mundos materiais que habitam e dos objetos e coisas que os constituem. Simultaneamente, a discussão sobre a criação de conexões paternas em Riachão contribui para a literatura sobre “house-ing” através de um foco na imbricação entre processos de formação de novas pessoas, novas casas e relacionalidade.

Palavras-chave:
Reprodução; Paternidade; Casas; Relacionalidade; Gênero; Bahia-Brasil

Abstract

In “Riachão”, a village of fishermen and seafood harvesters in Bahia state’s “Lower South” region, recognition of paternity occurs in the period between conception and the process of making a pregnancy public. People situate themselves as relatives and affines through houses, which are key agents in the constitution of relatedness. The ethnographic discussion makes clear how relatedness emerges in the dynamics of lovemaking, sexual initiation, procreation, and the fabrication of paternity, in which houses are always present. To create kinship in this context, it is necessary to propagate houses. The article contributes to the study of kinship and the social aspects of reproduction in Brazil through problematizing treatment of biological organisms and physiological processes as separate from the material worlds they inhabit and from the objects and things through which they are constituted. Simultaneously, the discussion of the forging of paternal connections in “Riachão” contributes to the literature on “house-ing” through a focus on the imbrication between processes of making new persons, new houses, and relatedness.

Keywords:
Reproduction; Paternity; Houses; Relatedness; Gender; Bahia-Brazil

Resumen

En “Riachão”, un pueblo de pescadores y marisqueros artesanales del Bajo Sur de Bahía, el período entre la concepción y el proceso de hacer público el embarazo es cuando se constituye el reconocimiento de la paternidad. En este proceso, las personas se sitúan como parientes y afines a través de las casas, que son agentes clave en la constitución del parentesco. La discusión etnográfica pone en evidencia cómo la relacionalidad emerge en la dinámica del amor, la iniciación sexual, la procreación y del hacer de la paternidad, procesos en los cuales las casas siempre están presentes. Para crear parentesco es necesario también generar casa. El artículo contribuye al estudio del parentesco y la reproducción y su consideración como procesos sociales en Brasil, problematizando el análisis, de los organismos biológicos y los procesos fisiológicos como separados de los mundos materiales que habitan y los objetos y cosas a través de los cuales están constituidos. Simultáneamente, la discusión sobre la configuración de conexiones paternas en “Riachão” contribuye a la literatura sobre “house-ing” a través de un enfoque en la imbricación entre los procesos de creación de nuevas personas, nuevas casas y relaciones.

Palabras clave:
Reproducción; Paternidad; Casas; Relacionalidad; Género; Bahia-Brasil

Introdução

João me tirou de casa, eu tinha dezesseis anos. Mainha descobriu porque eu emprenhei, me botou pra fora. João não quis assumir, mas depois eu provei com DNA que era dele! Só eu sei o que eu sofri, passei meses escondida no fundo da casa de mainha dormindo debaixo de umas táuba, pra Mainha não saber que eu tava lá. Eu não tinha onde dormir não. Foi miséria que eu comi, viu! (NC1 1 Citações e registros das Notas de Campo (NC) de Patrícia Rezende. ).

O relato de Ângela sobre seu primeiro parceiro sexual nos revela a estreita associação entre o engravidar - a reprodução - e a habitação. Ângela é marisqueira e nativa de Riachão,2 2 Por razões éticas, os nomes da vila e das pessoas são fictícios, sugeridos ou consentidos pelas moradoras. vilarejo litorâneo no Baixo-Sul da Bahia. Quando jovem, se viu gerando um bebê, processo que, no regime moral que governa relacionalidade no Riachão, deveria acompanhar a geração de uma casa. Sem a possibilidade desta dupla geração - por não contar com um pai para a futura criança - Ângela vivenciou a situação cruel anunciada pela expressão metafórica que designa “perder a virgindade” no Riachão. A prática sexual a tirou, literalmente, de casa.

Na região litorânea da Bahia a literatura sobre a constituição de parentesco destaca a linguagem usada para falar de reprodução biológica e de conexões criadas através de cuidado, afeto e convivência, de um lado, e de casas e “configurações de casas”, do outro. “Sangue” e “consideração” são os termos nativos mais comuns para falar de relações de parentesco. As etnografias recentes se debruçam sobre a constituição da relacionalidade nas relações de “criação” e “consideração”, em consonância com o enfoque surgido na renovação teórica da antropologia do parentesco. Porém, embora enfatizem o lugar central dado às relações de “sangue” nesses processos constitutivos, não se debruçam igualmente sobre as conformações locais do conceito. Aqui abordamos a questão a partir de um estudo das teorias nativas sobre paternidade biológica.

Quando dizem, nesta região, que os pais se conectam com os filhos por via de laços de sangue, não estão se referindo a uma teoria biológica no sentido recebido da expressão. Repensar o que se passa por “biologia” e por “relações biológicas” tem sido tarefa central para a antropologia, que chegou tarde a esse trabalho no rastro das feministas (Franklin 2019FRANKLIN, Sarah. 2019. “The Anthropology of Biology: A lesson from the new kinship studies”. In: Sandra Bamford (org.), The Cambridge Handbook of Kinship. Cambridge: Cambridge University Press . pp. 107-132.). Apesar das críticas aos estudos clássicos de parentesco, baseadas na desconstrução dos pressupostos euro-americanos que sustentam a noção de conexão genealógica, ao pensar a reprodução humana é difícil livrar-se do hábito restritivo que enfoca, sobretudo, corpos femininos e seus processos fisiológicos. Mas os moradores desta vila entendem a reprodução como constituída a partir de conexões entre distintas formas de materialidade, não circunscritas aos organismos biológicos. A participação dos seus corpos depende das suas relações com outros corpos, mas também emerge dos modos com que todos os organismos estão imbricados nos espaços construídos que imaginam, criam, habitam e cuja vida relacional constituem. No Riachão as trocas entre entes fisiológicos, mas também as relações entre estes entes e as casas feitas de tijolo e cimento ou de barro têm agência na geração dos bebês.

Tratamos do entrelaçamento de organismos biológicos e espaços habitados para mostrar sua eficácia enquanto lastro dos processos constitutivos de parentesco. Abordamos a gravidez, sublinhando a masculinidade, conforme emerge na relação entre sexualidade e reprodução física e social. Ao contrário da maioria dos estudos antropológicos sobre gravidez no Brasil, salientamos o papel da figura masculina na dinâmica que envolve os processos entrelaçados de procriação e de materialização e ocupação de casas, segundo nos foi apresentado nas interações locais. Demonstramos a centralidade da casa e do processo de house-ing (Biehl & Neiburg 2021BIEHL, Joāo & NEIBURG, Federico. 2021. “Oikography: Ethnographies of House-ing in Critical Times”. Cultural Anthropology, 36 (4):539-547.; Motta 2021a MOTTA, Eugênia. 2021a. “The Dying Home: “Bad Deaths” and Spatial Inscriptions of Mourning in a Favela”. Cultural Anthropology, 36:556-562. ) nas relações sociais, posições que se delineiam numa linguagem particular de gênero e dão contornos à configuração dos gêneros, como destacado por McCallum e Bustamante (2012MCCALLUM, Cecilia & BUSTAMANTE, Vânia Nora Dejo. 2012. “Parentesco, gêne-ro e individuação no cotidiano da casa em um bairro popular de Salvador da Bahia”. Etnográfica [On-line], v. 16 (2).). O artigo explora o entendimento nativo de que a “casa” e os espaços ao redor desta são participantes no processo de procriação não apenas como fornecedores de metáforas aptas para a descrição dos atos que o compõe, mas também como materialidade vivida, imbuída de “agenciamento” no sentido referido por Marcelin (1996MARCELIN, Louis Herns. 1996. L’Invention de la Famille Afro-americaine: famille, parenté et domesticité parmi les noirs du Recôncavo da Bahia, Brésil. Tese de Doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro.:80), sublinhado por Cortado (2021CORTADO, Thomas Jacques. 2021. “Interrogando a produção do espaço”. Mana[Internet] 27 (2), e272554.). Desse modo, o artigo contribui para três campos da antropologia: da reprodução, do parentesco e da casa.

Primeiramente discutimos a literatura antropológica sobre casa e parentesco, e apontamos a relevância do engajamento com os estudos sobre a reprodução. Após apresentação do campo, discutimos a imbricação entre sexo, casas e conjugalidade em Riachão, o que leva ao tema da procriação, à “feitura” masculina dos bebês e da paternidade de “sangue” e de “consideração”. Argumenta-se que a geração de casas emerge dos processos sexuais e relacionais em que os bebês são concebidos. Em seguida examinam-se os circuitos de apoio às mães e aos pais para que tenham “condições de ter” o filho, mostrando como a relacionalidade estendida que caracteriza uma “configuração de casas” - as múltiplas casas ligadas por parentesco e afinidade -diz respeito à dupla geração de casa e filho. Desse modo extrapolamos as discussões inspiradas no trabalho pioneiro de Marcelin (1996MARCELIN, Louis Herns. 1996. L’Invention de la Famille Afro-americaine: famille, parenté et domesticité parmi les noirs du Recôncavo da Bahia, Brésil. Tese de Doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro., 1999MARCELIN, Louis Herns. 1999. “A linguagem da casa entre os negros no recôncavo baiano”. Mana, Rio de Janeiro, v. 5, n. 2:31-60. URL: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-93131999000200002&lng=en&nrm=iso>.
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, 2012MARCELIN, Louis Herns. 2012. “In the name of the nation: blood symbolism and the political habitus of violence in Haiti”. American Anthropologist, 114 (2):253-266.)3 3 Ver, por exemplo, o dossier na Revista Mana (Comerford & Neiburg 2021). para confirmar a “historicidade vital” da geração imbricada de casas, pessoas e o mundo (Motta 2021a MOTTA, Eugênia. 2021a. “The Dying Home: “Bad Deaths” and Spatial Inscriptions of Mourning in a Favela”. Cultural Anthropology, 36:556-562. ) ao retratá-la na vertente encontrada no Baixo Sul da Bahia, região marcada pelo regime escravocrata do passado recente, cuja maioria dos habitantes, negra, vive “in the wake of the plantation”.4 4 Biehl e Nieburg (2021) citam o trabalho de Thomas (2019), que cunhou a expressão “living in the wake of the plantation”, sobre as formas em que o passado escravagista (“the plantation” se refere ao sistema de casa grande e senzala nas fazendas de plantação de cana-de-açúcar) participa ativamente no dia a dia atual dos que vivem “in the wake” (na esteira). Contemplar os processos de house-ing como acontecendo “in the wake” significa, para eles, decolonizar e reconfigurar a antropologia da casa. Apresenta-se uma análise pautada numa “fenomenologia do habitar, para além da oposição entre corpos e espaços, habitat e habitar” (Cortado 2021CORTADO, Thomas Jacques. 2021. “Interrogando a produção do espaço”. Mana[Internet] 27 (2), e272554.), que ilumina os processos relacionais - inclusive, os sexuais e reprodutivos - através dos quais a paternidade é constituída.

Casa, parentesco e processos reprodutivos

Os estudos do parentesco superaram as restrições impostas pelo biologicismo atrelado ao método genealógico, ampliando seu escopo, permitindo a visualização de distintas formas de criação e decomposição de laços entre parentes, como as novas tecnologias de procriação, adoção, produção e consumo de alimentos. Simultaneamente, redobrou a atenção aos modos específicos em que gênero se imbrica nos processos da geração de relacionalidade (Bamford 2019BAMFORD, Sandra. 2019. “Introduction: Conceiving Kinship in the Twenty-First Century”. In: Sandra Bamford (org.), The Cambridge Handbook of Kinship. Cambridge: Cambridge University Press. pp. 1-34.). A antropologia contemporânea da casa protagonizou esse movimento. Carsten e Hugh-Jones (1995CARSTEN, Janet & HUGH-JONES, Stephen. 1995. About the House: Lévi-Strauss and Beyond. Cambridge: Cambridge University Press .) se inspiram em Lévi-Strauss (1979LÉVI-STRAUSS, Claude. 1979. “A organização social dos Kwakiutl”. A via das máscaras. Lisboa: Ed. Presença/ Martins Fontes.), mas, ao invés de desenvolverem uma análise direcionada pela teoria de parentesco tradicional, anunciam a busca por uma “linguagem alternativa da casa” para a teoria antropológica (1995:2). A casa e o corpo possuem ligação íntima, afirmam, e assim indicam uma via importante para articular e tornar mais nítida essa nova linguagem. Cortado (2020c CORTADO, Thomas Jacques. 2020c. “Maison”. Anthropen. DOI: https://doi.org/10.17184/eac.anthropen.131
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), no seu verbete “Maison”, corrobora este olhar dizendo que fundamentalmente a casa leva a uma antropologia do corpo, além de dar apoio à observação de que deve ser tratada como um fato social total.

A casa é uma extensão da pessoa; como uma pele extra, uma carapaça ou uma segunda camada de roupa, serve tanto para revelar e exibir quanto para ocultar e proteger. Casa, corpo e mente estão em interação contínua, a estrutura física, mobiliário, convenções sociais e imagens mentais da casa ao mesmo tempo permitindo, moldando, informando e restringindo […] (Carsten & Hugh-Jones 1995CARSTEN, Janet & HUGH-JONES, Stephen. 1995. About the House: Lévi-Strauss and Beyond. Cambridge: Cambridge University Press .:2).

No Riachão, vemos que as casas, os espaços que os separam e conectam e os corpos “generizados” (no original, gendered) interagem constantemente, de formas íntimas e mutuamente constitutivas, na produção de relacionalidade.

Um foco sobre gênero fez parte do desenvolvimento da antropologia da casa e relacionalidade, possibilitado quando o feminismo abriu um espaço na pesquisa antropológica para a contemplação das mulheres, dos processos domésticos e cotidianos (Carsten 2004CARSTEN, Janet. 2004. After kinship. Cambridge: Cambridge University Press .:36). Isto facilitou uma nova compreensão de parentesco como processual, vivenciado e criado nas práticas cotidianas, compreensão que emergiu nos anos 1980 e 1990.5 5 As etnografias sobre parentesco realizadas nesse período já manifestaram as influências das críticas feministas ou de outras fontes: na antropologia social britânica, Carsten (1997); Gow (1991); McCallum (2001), entre outros; na América do Norte, também influenciados pela desconstrução da própria noção de parentesco de Schneider (1969, 1984), ver, por exemplo, Weston (1991). Para uma discussão da literatura sobre parentesco na época, ver Peletz (1995). Carsten nos relembra que as casas são os espaços de constituição prática e conceitual de relações de parentesco e, superando o entendimento destas como contextos para a sociabilidade, ou seja, simples containers [isto é, “recipientes”] de socialidades, afirma que “as casas são as relações sociais daqueles que as habitam” (:37).

Nesta trilha, juntamo-nos à crescente contribuição brasileira da “nova antropologia da casa” (Cortado 2020a CORTADO, Thomas Jacques. 2020a. “Casas feitas de olhares: uma etnografia dos muros em um loteamento periférico do Rio de Janeiro”. Etnográfica [On-line], 24 (3):665-682.:672).6 6 McCallum e Bustamante (2012); Pina-Cabral e Silva (2013); Motta (2014, 2016, 2021a, 2021b); Cortado (2019, 2020a, 2020b, 2021); Guedes (2017, 2021); Biehl e Neiburg (2021); e Comerford e Nieburg (2021), entre outros. Embora haja distinções entre as abordagens dos autores, todos se referem ao trabalho de Marcelin e alguns antecessores, como Woortman (1987). Muitos estudos reunidos sob esta rubrica aprofundaram a exploração etnográfica dos modos em que as casas são imbricadas com e produzem a relacionalidade, no caminho descrito por Carsten. Para isso, tem se debruçado sobre as formas processuais da constituição do parentesco, seja pelo compartilhamento de substâncias e comidas, seja pelas trocas de palavras, serviços e bens. Nessa “nova antropologia da casa” no Brasil, “são hegemônicas as perspectivas que consideram a casa nos seus aspectos processuais ou formativos” (Guedes 2017GUEDES, André Dumans. 2017. “Construindo e estabilizando cidades, casas e pessoas”. Mana, 23(3):403-435.:404). Assim observamos os aspectos processuais na constituição mútua de casas e relacionalidades.

Como estes autores, seguimos a análise pioneira de Marcelin (1996MARCELIN, Louis Herns. 1996. L’Invention de la Famille Afro-americaine: famille, parenté et domesticité parmi les noirs du Recôncavo da Bahia, Brésil. Tese de Doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro., 1999MARCELIN, Louis Herns. 1999. “A linguagem da casa entre os negros no recôncavo baiano”. Mana, Rio de Janeiro, v. 5, n. 2:31-60. URL: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-93131999000200002&lng=en&nrm=iso>.
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), que estudou as relações de parentesco em famílias negras de Cachoeira, no Recôncavo Baiano, onde as casas são referência na constituição de relacionalidade:

[...] a ideia de casa refere-se, na região estudada, não somente à construção física, mas também às relações estruturais dentro das casas e entre elas, às pessoas que as habitam e aos mitos que as fundam. Ela se refere ao universo familiar em perpétua transformação, a um lugar ontológico socioespacial que se define em termos identitários ou em termos de ligações afetivas, familiares ou domésticas (donde o sintagma “configuração de casas”). (Marcelin 1999MARCELIN, Louis Herns. 1999. “A linguagem da casa entre os negros no recôncavo baiano”. Mana, Rio de Janeiro, v. 5, n. 2:31-60. URL: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-93131999000200002&lng=en&nrm=iso>.
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:54, N4).

A casa no Riachão - construída, em processo ou apenas projetada - é foco, cenário e agente da vida diária. Como Marcelin, nos interessam as temporalidades associadas às casas, os processos que marcam a sua geração ou “gênese”, como Motta (2016MOTTA, Eugênia. 2016. “Casas e economia cotidiana”. In: Rute Imanishi Rodrigues (org.), Vida social e política nas favelas: pesquisas de campo no Complexo do Alemão. Rio de Janeiro: Ipea. pp.197-213. URL: http://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/6410
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) prefere. Desenvolvemos este ponto investigando as condições para a emergência da casa, bem como as práticas sociais que tanto a constroem quanto são construídas nesse ínterim (Motta 2014MOTTA, Eugênia. 2014. “Houses and economy in the favela”. Vibrant, v. 11, n. 1:118-158.:125-6). Uma casa, para os moradores de Cachoeira, tem vida social além das suas origens e da sua materialidade física; um dos pontos originais que se sobressaltam da discussão etnográfica realizada por Marcelin é de que a noção não se limita a uma unidade, mas abrange singularidade e pluralidade, “casa e configuração de casas”, o que o levou a criar este conceito único que abarca tanto a distribuição física das construções ligadas numa configuração quanto as temporalidades envolvidas na sua criação, manutenção e/ou desmantelamento.7 7 Marcelin (1999:35-38) enfatiza a relação entre migrantes e casas de origem, e sua condição de matriz simbólica de referência no imaginário dos parentes. Pina-Cabral e Silva (2013) o equiparam à noção de vicinalidade e destacaram as trocas locais e cotidianas na sua constituição. Sobre a noção de “Casa e Configuração de casas”, ver Guedes (2017, 2021); Bustamante e McCallum (2011); Motta (2016); Cortado (2019); Biehl e Neiburg (2021). A noção abarca parentes vivendo em casas inclusive distantes geograficamente (por exemplo, quando migrantes na capital mantêm relações de troca e apoio mútuo com parentes em Cachoeira). Já Pina-Cabral e Silva (2013PINA-CABRAL, João de & SILVA, Vanda Ap. da Silva. 2013. Gente Livre: Consideração e pessoa no Baixo-Sul da Bahia. São Paulo: Terceiro Nome. ) enfatizam os afetos e as trocas cotidianas entre parentes e vizinhos que se tornam, com o tempo, parentes de consideração (tratados como parentes, ou “familiarizados”, como Agier (1990AGIER, Michel. 1990. “Espaço urbano, família e status social: o novo operariado baiano nos seus bairros”. Cadernos CRH, 3 (13):39-62.) e outros etnógrafos dos bairros populares de Salvador notaram).8 8 Agier (1990); Bustamante (2009).

[...] a consideração é o tecido do qual é feita a casa, tanto quanto a parentela de cada pessoa, tanto quanto a vicinalidade: a “casa” é a instância coletiva mais proeminente da sociedade local; a parentela (referida tantas vezes pela frase “a minha família”, expressão muita plástica) é a rede de relações que existe em torno de cada pessoa e ultrapassa necessariamente a pertença à casa; a vicinalidade é o grupo de casas aparentadas localmente e que constituem a família no sentido operacional (Pina-Cabral & Silva 2013PINA-CABRAL, João de & SILVA, Vanda Ap. da Silva. 2013. Gente Livre: Consideração e pessoa no Baixo-Sul da Bahia. São Paulo: Terceiro Nome. :40).

Marcelin alavancou a reformulação da abordagem do parentesco nos estudos brasileiros, atualmente na chave da “relacionalidade”, visto como constituído processualmente por práticas temporais, materiais e imateriais. No entanto, no texto de 1999 vislumbramos uma abertura acidental para a redução dos efeitos geradores de relacionamentos das relações sexuais, como se os próprios moradores de Cachoeira entendessem que o sexo constrói uma base biológica para a filiação, em alinhamento com os preceitos novecentistas que deram origem às teorias tradicionais de parentesco,9 9 Ver Cortado (2021) sobre a tensão (ou contradição) presente no tratamento de parentesco em Marcelin (1996, 1999). O autor dá destaque a conceitos-chave da abordagem clássica estruturalista, ao passo que abre o caminho para uma abordagem processual que evitaria aquelas pressuposições sobre corpos biológicos atreladas às análises estruturalistas e dos estudos clássicos sobre parentesco, mas acaba relegando essa abertura para o segundo plano. No caso da sua reconceitualizaçāo da casa, a partir do conceito de “configuração de casas”, esta redução a uma materialidade imanente cede lugar para algo bem mais rico e instigante. Nas palavras de Biehl e Neiburg (2021), aqui a casa se revela como “an emplacement of tensions and a relational process, simultaneously open-ended and foreclosing” (:543) (tradução das autoras: “um colocar-no-lugar de tensões e um processo relacional, simultaneamente aberto e excludente”). ou seja, permite imaginar que as relações sociais sejam concebidas como feitas a posteriori, após e por cima do organismo biológico que já carrega seu relacionamento físico consigo (ainda que involuntariamente).

Os usos de “sangue” como denominador de conexão fixa - de relações consanguíneas - ancorada nos processos biológicos de descendência e hereditariedade ou como simples fatos materiais, ou culturais (“sangue” como metáfora) permeiam a literatura teórica sobre parentesco. Igualmente se encontram referências a sangue como agente de conexão em inumeráveis variantes na literatura etnográfica global. Vários antropólogos se inquietaram com o evidente viés embutido no conceito de “consanguinidade” na antropologia clássica de parentesco, por se apoiar numa visão euro-americana sobre corpos e conectividade, mas é o livro de Schneider (1969SCHNEIDER, David. 1969. American Kinship: A Cultural Account. Chicago: Chicago University Press.) sobre parentesco americano que é visto como marcador da transição para aceitação desta perspectiva na comunidade.10 10 Para a discussão sobre o papel de Schneider na virada nos estudos sobre parentesco e relacionalidade, ver Carsten (2000, 2011). Contudo, a ascensão do “novo parentesco” não tem significado a erradicação de todo traço de uma noção biologizante e reducionista sobre “relação consanguínea”.11 11 Ver Marcelin (1999:38-45), onde “sangue” é discutido como categoria nativa explícita e “princípio genealógico” tratado como categoria nativa implícita.

Carsten (2011CARSTEN, Janet. 2011. “Substance and Relationality: Blood in Contexts”. Annual Review of Anthropology, v. 40:19-35. ) reflete sobre a distinção cultural colocada por Schneider, no caso do parentesco americano, entre “substância” - sobretudo sangue - significador de relação natural e dada; e “código” (lei), domínio de relação cultural. Ela nota que as etnografias publicadas nas décadas seguintes desmentiram sua tese, tanto para contextos americanos quanto europeus. Na prática havia uma evidente “blurring, mixing, or interpenetration of these idioms” [isto é, “confusão, mistura ou interpenetração desses domínios linguísticos”, ou seja, os domínios ou “idiomas” de substância e código, natureza e cultura]. No caso do uso de idiomas de “sangue” em contextos brasileiros, Marques (2020MARQUES, Ana Claudia. 2020. “La maison, le nombril, le monde”. Brésil(s) [On-line], 18. URL: https://doi.org/10.4000/bresils.7601
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) nota que recentes estudos etnográficos evidenciam multiplicidade e variabilidade e, na prática, seu uso cria um ponto de referência maleável e escorregadio, não se atrela a uma relação dada pautada numa biologia.

Tratar expressões como “laços de sangue” como se fossem referências a supostas relações biológicas verdadeiras, engendradas pelas relações sexuais, reforça as pressuposições euro-americanas presentes nas teorias e nas análises antropológicas, notadamente a matriz de dicotomias atreladas à oposição entre Natureza e Cultura (Strathern 1980STRATHERN, Marilyn. 1980. “No nature, no culture: the Hagen case”. In: C. Maccormack & M. Strathern (orgs.), Nature, Culture and Gender. Cambridge: Cambridge University Press . pp. 174-222.; MacCormack & Strathern 1980MACCORMACK, Carol & STRATHERN, Marilyn. 1980. Nature, Culture and Gender. Cambridge: Cambridge University Press .; Strathern 2016STRATHERN, Marilyn. 2016. Before and After Gender: Sexual Mythologies of Everyday Life. Chicago: Hau books.; Franklin 2019FRANKLIN, Sarah. 2019. “The Anthropology of Biology: A lesson from the new kinship studies”. In: Sandra Bamford (org.), The Cambridge Handbook of Kinship. Cambridge: Cambridge University Press . pp. 107-132.). A pressuposição, mesmo que implícita, de que “laços de sangue” se referem a uma teoria biológica nos moldes euro-americanos instiga desconsiderar na análise os modos em que as casas e as configurações destas estão implicadas na expressão e na prática da sexualidade e da reprodução sexual, pois leva embutido o que Marilyn Strathern chama de “society thinking” (Lebner 2017LEBNER, Ashley. 2017. “Introduction: Strathern’s redescription of anthropology”. In: Ashley Lebner (org.), Redescribing Relations: Strathernian Conversations on Ethnography, Knowledge and Politics. Oxford: Berghahn. pp.1-37.; Strathern 1996STRATHERN, Marilyn. 1996. “For the Motion (1). 1989 Debate The Concept of Society is Theoretically Obsolete”. In: T. Ingold(org.), Key Debates in Anthropology. London: Routledge. pp. 60-66.; McCallum 2023MCCALLUM, Cecilia. 2023. “Gender, Sociality and the Person”. In: C. McCallum; S. Posocco & M. Fotta (orgs.), Cambridge Handbook of the Anthropology of Gender and Sexuality. Cambridge: Cambridge University Press . pp. 155-183.).

Como Motta (2014MOTTA, Eugênia. 2014. “Houses and economy in the favela”. Vibrant, v. 11, n. 1:118-158.) sugere na discussão do conceito cunhado por Marcelin, a “configuração de casas”, em muitos locais no Brasil o praticar sexo reprodutivo está associado à gênese não só de bebês, mas também de casas. De fato, muitas vezes, a construção de uma casa para uma recém-grávida ou casal pode ser assumida pelos seus pais, pelo seu parceiro (o que não aconteceu no caso da jovem Ângela, cuja triste história da primeira gravidez citamos no início)12 12 Sobre gravidez como estopim para o processo de construir uma casa, ver Bustamante (2009) e Motta (2016). ou por outros parentes. Assim, cabe analisar cuidadosamente a imbricação entre sexo, sexualidade, reprodução e a geração das casas.

Adotamos a proposta de que uma nova linguagem de casa implica relacionar a antropologia das habitações com aquela dos corpos, mostrando que é necessário, no contexto estudado, abordar os modos com que se pense e pratique a procriação - a reprodução sexual. Estudos no campo da antropologia da reprodução têm levado seus praticantes a repensar os corpos e os processos fisiológicos femininos, seja a partir de pesquisa sobre questões específicas ligadas aos corpos (normalmente) femininos, como gravidez, parto, aborto e menstruação (Jordan 1993JORDAN, Brigitte. 1993 [1978]. Birth in Four Cultures. (4th edition), revised and expanded by R. Davis-Floyd. Prospect Heights, Ohio: Waveland Press.; Martin 1987MARTIN, Emily. 1987. The Woman in The Body: A Cultural Analysis of Reproduction. Boston: Beacon Press.; Davis-Floyd 1992DAVIS-FLOYD, Robbie. 1992. Birth as an American Rite of Passage. Berkeley: University of California Press. 13 13 Jordan (1993 [1978]) marca o início desse campo prolífico. A coletânea organizada por Ginsburg e Rapp (1995) revisita suas ideias em enfoque etnográfico e comparativo. Para uma revisão da literatura antropológica sobre reprodução, ver Inhorn (2006). ), seja com enfoque sobre as substâncias que liguem os corpos reprodutivos com outros corpos, com o mundo circundante e o cosmos, como no couvade indígena.14 14 Para discussão da couvade nos estudos na etnologia indígena, ver Costa (2017:97-103).

As etnografias sobre parto e reprodução contribuíram para o estudo antropológico da biomedicina como “cultura”, ou melhor, como uma arena de práticas e discursos que geram múltiplos efeitos sociais. Entre outros efeitos, a forma com que a biomedicina tem sido praticada e institucionalizada invisibilizou os aspectos sociais dos processos fisiológicos reprodutivos.15 15 Ver Heilborn et al. (2002) e Bustamante (2009) acerca da noção de gravidez social, estabelecida na literatura brasileira sobre reprodução. Paralelamente ao ocorrido na teoria clássica do parentesco, o saber biomédico tem como pressuposto que as gestantes são indivíduos biológicos circunscritos pelo ciclo temporal de estados físicos prévio, durante e após o parto, se pautando nos pressupostos atrelados ao binômio Natureza-Cultura.16 16 Para uma desconstrução dos modelos clássicos de parentesco numa perspectiva feminista, ver Franklin (1997:17-72); e sobre a relação entre as críticas schneideriana e feminista, ver Franklin (2019). Já a antropologia do parto enquadra a gravidez como fenômeno social que extrapola tanto a temporalidade e a materialidade postas pelo saber científico biomédico quanto a tendência desta última de objetificar os processos biológicos envolvidos na reprodução. Sob esta marca o presente artigo surgiu: o trabalho etnográfico que o originou, escrito como uma contribuição ao campo de Saúde Coletiva, demonstrou a extensão e a dimensão social e cultural da vivência do ciclo gravídico-puerperal e do parto em Riachão (Rezende 2015REZENDE, Patrícia. 2015. A reprodução enquanto um processo biossocial. Estudo etnográfico em uma vila do Baixo-Sul Baiano. Tese de Doutorado, PPGSC/UFBA.).

O campo

A pesquisa em Riachão se iniciou em 2011 e se intensificou em janeiro de 2013, quando cheguei17 17 Referimo-nos às reflexões e escolhas de escrita na primeira pessoa do plural (nós), por tratar-se de autoria coletiva. Porém, em referência ao trabalho de campo realizado por Patrícia Rezende, usamos a primeira pessoa do singular (eu). na ilha, provocando curiosidades e aproximações. As pessoas reconheciam a identidade “estrangeira”, tanto pela cor da pele e dos olhos, como pelo acento característico da fala. Ser de outro estado do país, branca, estudante e uma mulher solteira e sem filhos, interessada em reprodução foram os principais aspectos manejados nas interações de ambos os lados, fosse para explicar expressões e hábitos, fosse para compreender as diferenças em modos de vida. A vila era composta na época por aproximadamente 1.300 pescadores e marisqueiras, tiradores e catadoras de piaçava, trabalhadores rurais, pequenos comerciantes, funcionários de instituições públicas, pedreiros ou marinheiros e seus filhos. De maioria negra e baixa renda, Riachão é reconhecida como comunidade remanescente de quilombola, cuja maioria das famílias era beneficiária do Programa Bolsa Família18 18 Criado em 2004, o PBF foi um grande programa condicionado de transferência e principal medida de enfrentamento à pobreza no país. O auxílio era dado preferencialmente às mulheres mães e dependia de condicionalidades como exigências de frequência aos serviços de saúde, vacinação e escolas. Dentre seus impactos, vimos a redução de pessoas em situação de pobreza e extrema pobreza, da insegurança alimentar, da mortalidade infantil e, em 2014, a saída do Brasil do mapa da fome. No final de 2021 foi substituído pelo Programa Auxílio Brasil (MP 1061/2021), carregando incertezas quanto à sua eficácia (Guimarães 2022). Em 2023, o novo governo, sob a presidência de Luiz Inácio Lula da Silva, relançou o programa com novas diretrizes, por Medida Provisória (MP 1.164/23), prometendo reverter o desmonte iniciado pela gestão anterior. (PBF).

Fui acolhida e hospedada por Nádia, mulher querida na vila, que vivia com um de seus oito irmãos na casa herdada de seus pais. Lá permaneci por oito meses, em 2013, em intenso convívio com os demais habitantes. Os dados discutidos foram produzidos nesse período, enquanto acompanhava 18 mulheres e seus familiares, entre os quais pais, maridos, filhos e irmãos, que vivenciavam a reprodução na época de minha permanência.19 19 Os dados etnográficos tratam das experiências reprodutivas das mulheres, mas foram produzidos nas interações cotidianas com os moradores de toda ordem: homens, mulheres, crianças, idosos, adolescentes e adultos. Até janeiro de 2017 realizei novas visitas em campo, podendo atualizar algumas informações trazidas aqui.

Relações conjugais: o sexo e a casa

No Riachão era frequente a referência às regras de namoro do passado, que dizia respeito à oposição entre casa e rua.20 20 Thales de Azevedo documentou as “regras de namoro” na Bahia na década de 1970 (Azevedo 1986). Segundo os mais velhos, “o rapaz tinha que pedir a porta pra família da garota, se quisesse namorar, compromisso sério mesmo”, o que significava ir à casa da garota e pedir aos seus pais ou responsáveis a permissão para namorá-la. A porta informa um namoro sob vigilância dos pais. Ao negar a porta, alguns diziam “Dou a porta hoje, amanhã já tá na sala, depois na cozinha e depois no quarto”. Evidencia-se, então, o maior perigo do namoro: o início da vida sexual das jovens. Já outros argumentavam que “se não der a porta, namora escondido no beco”. Os “becos” são passagens entre as casas ou pequenos corredores entre vias. Ao contrário de “namorar na porta”, sob a aprovação e abrigo da casa da família da menina, “namorar no beco” é um namoro sem aprovação e sem abrigo, num espaço que não é uma casa, mas entre casas. As expressões “Dar a porta”; “Dar/namorar (n)o beco” ilustram como as interações entre casais e a iniciação sexual evocam as casas no sentido simbólico.

A lógica destes ditos no Riachão perdura em muitos sentidos, embora as antigas regras não sejam sempre observadas. Quando uma mulher inicia sua vida sexual, diz-se que ela “saiu de casa”. Ângela, citada no início, namorou João às escondidas. Se João tivesse pedido sua porta, quando a engravidasse seria obrigado ao casamento ou ao sustento material. Pedir a porta implica obrigações e comprometimento. Se a garota engravidar, os seus pais poderão cobrar a responsabilidade do homem que a “tirou de casa”, assegurados de que teria sido aquele a quem foi dada a porta.

Bela, marisqueira de 33 anos, passou por experiência distinta de Ângela. Osvaldo conta que quando “pediu a porta” de Bela, na época com 14 anos, recebeu resposta negativa. Contudo namoraram às escondidas e, ao “tirá-la de casa”, passou a “levar a feira” na casa da mãe de Bela, para que a jovem tivesse o que comer. Por “tirá-la de casa”, Osvaldo adquiriu obrigações, sustentando-a. Quatro anos depois, Osvaldo a engravidou. Então alugaram uma casa e foram morar juntos para cuidar do bebê.

Os casos de Bela e de Ângela ilustram a importância das casas e do reconhecimento paterno diante de uma gravidez, implícita nas regras do namoro. Ângela, ao engravidar e confirmar o fato de ter “saído de casa” sem que houvesse a figura do homem para reconhecer o ato, ficou sem casa, sem abrigo, sem proteção. A sua situação expressa os desdobramentos de um caso de gravidez sem legitimidade pública, que redundaria ou na casa materializada, ou no seu projeto (quando o casal é publicamente legitimado). Já no caso de Bela, Osvaldo reconheceu tê-la tirado de casa e tê-la engravidado. Aqui, casa se torna um elemento importante que se refere a abrigo, à proteção e à nutrição. Tirar e sair da casa sugere a prática do sexo que, eventualmente, leva à reprodução.

O reconhecimento da ação do homem na geração de um corpo grávido e da futura existência de uma casa são centrais. Ele deve se engajar para sua consolidação. “Pedir a porta” e “tirar de casa” são ações exercidas pelos homens nas relações conjugais heterossexuais e influenciam o modo como são vividos os processos da maternidade e paternidade. Compromissos são estabelecidos entre as partes, relações de corresponsabilidade diante da gravidez e futura constituição de uma família.

A importância do reconhecimento da paternidade atravessa o processo de aceitação da gravidez por parte das mulheres e conflui numa evidente manutenção material. O rapaz deve assumir o filho e a mulher que engravidou. Bianca, marisqueira de 34 anos, explicou: “O homem, quando tira a mulher de casa, assume ela. Faz compra e manda pra mulher”. Outros estudos na região notaram a mesma ênfase no assumir a relação com a parceira, na relação conjugal.

Assumir é um gesto positivo e valorizante não só para quem o realiza, como para quem é afetado pelos laços assim criados. [...] Assumir é aceitar ter responsabilidade e dar testemunho da relação publicamente. Assumir é o estatuto de estar casado, não é necessário o papel: “Ele me assumiu, assumiu meus filhos”; “Estou à espera de alguém que me assuma”. Tantas vezes ouvimos frases assim. Mais ainda, contrariamente ao gesto formal, instantâneo e irreversível de reconhecer a paternidade, assumir a conjugalidade é um ato prolongado que se esgota no momento em que não for continuado. (Pina-Cabral & Silva 2013PINA-CABRAL, João de & SILVA, Vanda Ap. da Silva. 2013. Gente Livre: Consideração e pessoa no Baixo-Sul da Bahia. São Paulo: Terceiro Nome. :90).

Bárbara é filha de Bela e engravidou aos 15 anos, fruto de um namoro escondido com Gabriel, que reconheceu a paternidade. O relacionamento entre as famílias se estreitou e as duas avós entraram em comum acordo que - se fosse da vontade dos jovens - ajudariam no pagamento do aluguel de uma casa para que ambos pudessem viver juntos e criar seu filho. A casa, então, se apresenta como elemento central na constituição de relacionalidades mais extensas, que extrapolam o casal, bem como na criação de pessoas.

A relação conjugal se inicia desse modo, mas se prolonga nos repasses regulares de bens materiais, afetos e serviços. Os parentes dos jovens casais se envolvem para assegurar a continuidade e a firmeza da relação incipiente. Os pais de Bárbara conversaram com os pais de Gabriel sublinhando a responsabilidade que agora lhes era repassada para com Bárbara, como ela conta:

Meu pai falou lá que ele (Osvaldo) ia ajudar, mas que a responsabilidade dele era como meu pai, mas a responsabilidade de caso se eu precisasse de alguma coisa era deles [família de Gabriel]. Ele ia me dá se, por acaso, fosse eu lá e perguntasse pra eles [família de Gabriel] e eles não tivesse condições de me dá, mas a responsabilidade não era mais dele (Osvaldo). Ele (Osvaldo) ia ajudar, mas a responsabilidade era dele quando eu estava dentro de casa, antes de ter acontecido isso... (Bárbara).

A saída de casa significa a transferência de responsabilidades para o parceiro, sendo que a geração da casa é simultânea à geração de afinidade. Nisso há um importante elemento de performatividade. Segundo Pina-Cabral e Silva (2013PINA-CABRAL, João de & SILVA, Vanda Ap. da Silva. 2013. Gente Livre: Consideração e pessoa no Baixo-Sul da Bahia. São Paulo: Terceiro Nome. ), é preciso que haja aceitação pública e sustento mútuo para dar sentido às relações conjugais. A ideia de “pedir a porta” no Riachão evidencia a necessidade da aceitação pública no contexto local. É a partir da relação que se tornou pública que a gravidez e o reconhecimento paterno se legitimam e, por conseguinte, a própria relação social estabelecida entre as partes: mulher e homem ligados agora por um filho. Vemos que a reprodução também produz (e fortalece) relacionamentos.

Porém, não basta que o homem reconheça seu filho como fruto das ações do seu próprio corpo. Para além do reconhecimento formal desta conexão física, assumir inclui consideração: o elemento afetivo que envolve as relações que as tornam complexas e significantes. João não assumiu a relação com Ângela, nem a filha. Reconheceu sua paternidade a partir do exame de DNA, passou a pagar pensão e falava com sua filha, mas sem vínculo afetivo. A menina considerava o padrasto como pai, sentimento que era recíproco: “não é de sangue, mas considera filha também”.

A paternidade, muitas vezes, é atribuída a partir da “consideração”. Muitos são os casos de pessoas que “consideram” como seus pais aqueles que as criaram, mantiveram economicamente e deram atenção e carinho, como a primeira filha de Ângela. As relações que são mediadas pela consideração implicam “deveres” mútuos. Vale para as relações familiares, de parentesco, bem como para a compreensão do sentido da maternidade e da paternidade. A reciprocidade envolve assumir esta relação e as responsabilidades provenientes dela. Assim é que se constituem a paternidade e a maternidade: é preciso assumir esta relação e alimentá-la, renovando sua validade.

A atualização e a validação das relações transcorrem a partir do momento da gravidez, sobretudo nas atribuições dos homens. Mesmo reconhecendo a paternidade dita “de sangue”, se não “botar as coisas em casa” ou se não “der atenção e carinho” não se atualiza o elemento da consideração e o homem enfraquece a sua titularidade de pai. Rosa explica: “Eles querem ter o filho, agora se eles querem ser pai é que eu não sei. Ter um filho todo mundo quer, todo o homem quer ter. [...] Agora a responsabilidade, cadê? Ser pai é ser homem, é estar presente, ali junto”. Os casos de paternidade de criação, em que o laço é estabelecido e mediado pela consideração, também são ilustrativos. Nestes, nem mesmo o reconhecimento de uma paternidade biológica é necessário para que se mantenha este tipo de vínculo.21 21 Pina-Cabral e Silva (2013:25-50) documentam casos em que a consideração é a base do parentesco no Baixo-Sul. Ver Marcelin (1999) sobre as relações de consideração e de consanguinidade que emergem no cenário das casas e a partir da vida destas. Pina-Cabral (2007), ao tratar “consideração” como princípio organizador das relações familiares, explora a relação entre a proximidade geográfica e o engajamento nas relações entre as pessoas, para a permanente atualização dos laços parentais.

O processo de negociação, reconhecimento e/ou recusa da paternidade é crucial para que a gravidez seja levada a termo. Na ilha, os rumores de nova gravidez circulam como boatos até que a barriga “saia pra rua” (torne-se pública). Este ato é que dá concretude ao estado gravídico daquele corpo, socialmente. A barriga começa a crescer e a se tornar um novo símbolo destas relações. No serviço de saúde, a mulher percorre o trajeto próprio daquele ciclo temporal predefinido na biomedicina como gestação-parto-puerpério.

Porém, nas dinâmicas conjugais outros costumes e expressões são cruciais para compreendermos como se dá localmente a importância da figura masculina e do reconhecimento de sua parte nesse processo reprodutivo. São as teorias locais de procriação.

O homem e a feitura do filho

As teorias de concepção dos moradores de Riachão não seriam descritas como “biologia” no sentido, talvez, empregado pelos profissionais de saúde que atendem às gestantes no posto de saúde e nos hospitais urbanos onde são internadas para o parto. No entanto, os interlocutores mencionam seu aprendizado nas mesmas fontes e às vezes com os próprios praticantes da biomedicina. Assim, discordamos de Pina-Cabral e Silva (2013PINA-CABRAL, João de & SILVA, Vanda Ap. da Silva. 2013. Gente Livre: Consideração e pessoa no Baixo-Sul da Bahia. São Paulo: Terceiro Nome. :30) quando dizem que “não pode ser seriamente considerada como remetendo a qualquer teoria biológica de concepção”. É sim uma teoria biológica de concepção - mas uma biologia antes tupi que europeia, embora agora vestida com uma roupa do “velho mundo”.22 22 Ver nota 23.

Quem faz o filho é o homem. A mulher só segura o bebê. Porque, dizem as professoras, que o homem tem no esperma - aquilo são já os bebês bem pequenininhos, mas uns vivem outros morre - os que vivem só um vai virar o bebê e ele já é homem ou mulher. Aí o espermatozoide encontra o óvulo (porque no período fértil, é quando o óvulo está maduro, então se o esperma encontrar o óvulo nessa hora pode o bebê ficar) e aí ele fica lá. Aí o esperma se desenvolve, cria os braços, as pernas, a barriga, a cabeça. E a mulher pare ele já grande. Mas quem faz o filho é o homem. Porque sem o homem não tem filho. O filho é o próprio esperma que se desenvolve.

Esta foi a explicação de Eloisa, irmã de Jussara - uma das participantes da pesquisa. Em sua fala, grifamos uma expressão muito frequente entre os moradores. As mulheres “seguram os bebês na barriga” e “botam o filho pra fora”. As mulheres sempre contam que deram um ou mais filhos ao seu parceiro, ou que o parceiro pediria um filho no futuro e ela teria de dá-lo, como Dália explicou “Porque ele ajudava a criar os (filhos) dos outros, ele queria um pra ele [...]”.

Os homens também usavam o verbo no sentido ativo, ao contar que “engravidaram” alguma mulher: “Aí eu engravidei ela e a gente foi morar junto”. Destaca-se aí o papel ativo do homem no processo reprodutivo, na concepção do filho e a conexão entre a viagem do filho em forma de espermatozoide, a fecundação e a constituição do casal como coabitantes de uma casa. Este ato também confirma socialmente sua masculinidade; por isso Rosa e Dália mencionam o desejo e a cobrança masculina de que a mulher carregue um filho seu. Esta conexão era recorrente na vila. Nisso, a fecundação era um fenômeno pouco explicado. Geralmente se referiam aos livros de biologia, como Isabela, que acrescentou “tem tudo nas cartilhas de biologia”.

No catador, espaço onde as mulheres se reúnem para catar a piaçava, todas concordavam que era o homem quem fazia o filho. Dona Ruth, senhora de mais de 80 anos, dizia: “eles só não passam por tudo que a mulher passa”. Vívian, mãe de Jussara e Eloisa, explicou que este era o motivo pelo qual as pessoas diziam que “quem pare primeiro é o homem”. Silviane, filha de Dona Ruth, complementou que é o espermatozoide que os homens parem. “E é o espermatozoide que vai virar o bebê. A mulher só gesta”.

Esta versão do processo reprodutivo como “biológico” compreende que os homens exercem uma função especial. São eles os sujeitos da ação de engravidar, enquanto as mulheres são o lócus desta ação. Esta explicação também consta nos achados de Motta-Maués (1977MOTTA-MAUÉS, Maria Angelica. 1977. “Trabalhadeiras” & “Camarados”: Um Estudo sobre o Status das Mulheres numa Comunidade de Pescadores. Dissertação de Mestrado, Brasília, Universidade de Brasília.) >comunidade pesqueira no interior do Pará. Esta teoria de concepção se pauta na primazia da contribuição fisiológica masculina e outorga à mulher o papel de receptor e criador de um espermatozoide ou protofilho de origem masculina. O entendimento de procriação nessa região do Baixo-Sul demonstra forte ressonância nas teorias de concepção ameríndias, das quais (podemos supor) é caudatário.23 23 Observação de Luísa Elvira Belaunde, em comunicação pessoal. Essa teoria reafirma aquelas documentadas de povos falantes de línguas tupis. Segundo Viveiros de Castro et al. (2017), a teoria da concepção dos Araweté apresenta o genitor como aquele que “faz” ou “dá” a criança, sendo as mulheres apenas o receptáculo destas, lócus onde cresce e desenvolve suas formas humanas.

As explicações se dão a partir de um discurso neobiocientífico. A ciência biológica serve aqui como alicerce e validação do entendimento nativo de que “é o homem que pare primeiro”, conforme são referenciadas as cartilhas de biologia e o conhecimento adquirido na escola. Entendemos que não se trata de colonização epistemológica, pois o que está em pauta na visão biologicista hegemônica é a naturalização do processo reprodutivo. Na biomedicina, há uma tendência a retratar o corpo feminino, antes do corpo masculino, como articulador de relacionalidade. Na prática clínica, costuma-se excluir os homens e o corpo masculino de vista.24 24 Consideramos práticas biomédicas inseridas nas políticas e nos programas nacionais e internacionais, que tendem a focar a saúde reprodutiva feminina (Dudgeon & Inhorn 2003). Os significados elencados pelos discursos e as práticas biomédicos são múltiplos e diversos, pois emergem em contextos históricos e culturais distintos. Ver Rohden e McCallum (2015). A literatura antropológica aponta a naturalização da reprodução como domínio do corpo feminino em contextos diversos, como nas maternidades brasileiras (Tornquist 2002; McCallum & dos Reis 2005; McCallum, Menezes & dos Reis 2016) e nos hospitais norte-americanos (Martin 1987; Davis-Floyd 1992). Na vila, a reprodução é compreendida em primeira instância como um processo social e a presença de um discurso sobre a feição material do feto não deve ser interpretado como um discurso biologizante na versão recebida das teorias produzidas pelas ciências euro-americanas.

Ao refletir sobre as implicações das práticas que constituem relações paternas, as pessoas sabem que o homem “faz o filho”, mas esta ação não é suficiente para que se torne pai. A conexão identificada como biológica não basta como base da paternidade. Concordamos com Pina-Cabral e Silva (2013PINA-CABRAL, João de & SILVA, Vanda Ap. da Silva. 2013. Gente Livre: Consideração e pessoa no Baixo-Sul da Bahia. São Paulo: Terceiro Nome. ) quando afirmam que a consideração é a base do parentesco no Baixo-Sul e que está “no cerne dos afetos” (:40).

A conduta masculina pode ser garantida via processos jurídicos, como fez Ângela para provar a paternidade de João. Em diversos momentos, as interlocutoras mulheres mencionavam o teste de DNA para confirmação da paternidade, mas raramente o faziam. O acesso aos recursos legais e tecnológicos de comprovação da paternidade no Brasil, através dos testes de DNA, repercute substancialmente nas condições de vida e de criação dos filhos, nos contextos de carências materiais. Mas também há a dimensão afetiva, que marca as trajetórias de vidas atravessadas por relações de cuidado, afetos e responsabilidade, forjadas e reconstituídas dessa ausência (Finamori 2013FINAMORI, Sabrina. 2013. “Família e cuidado em narrativas de vida marcadas pela ausência paterna”. Revista PerCursos, Florianópolis, v. 14, n. 27:87-115, jul./dez.).

Os moradores da vila atribuem centralidade ao papel do homem no processo reprodutivo. Uma gravidez reforça a masculinidade do pai e a teoria de concepção nativa pode até ser lida como evidência de uma tendência patrilinear na feitura dos filhos. Mas a dinâmica é complexa e outros sujeitos estão envolvidos na constituição do processo reprodutivo, sobretudo aqueles que serão os principais agentes de cuidado das mulheres, constituindo suas redes de apoio e proteção: parentes e afins, pessoas mais próximas geograficamente. Entra em cena a contribuição feminina. As redes de apoio e cuidado são fundamentais para que o processo, desde o “fazer filho” até depois de “parida”, seja uma experiência positiva. Uma das principais preocupações das mulheres com a gravidez é se terão “condições de ter menino”. Este conceito engloba o apoio social, a casa, e recursos materiais.

Apoio na gênese da casa e relacionalidades para ter menino

Caroline descobriu que estava grávida da primeira filha aos seis meses de gestação, com 30 anos. Seu marido já tinha uma filha, residente em Salvador. Não possuíam Bolsa Família nem qualquer outro benefício. Caroline e seu marido eram de Salvador, fato que subjaz as parcas “condições de ter menino” do casal. Tinham uma canoa, mas venderam-na para construir a casa própria, que levantaram gradualmente. Desempregado, o marido de Caroline fazia trabalhos esporádicos. Trabalhou nas fazendas da vila, abrindo matas ou limpando terrenos. Ajudava pedreiros e pescava. Porém, sem canoa, precisava alugar, o que tornava o custo da pescaria alto. Caroline estava perto de conseguir um emprego quando engravidou. Frequentemente recebia ajuda de sua mãe, que morava em Salvador. Ia à capital regularmente, onde trabalhava com a irmã em um salão de beleza ou ajudava a mãe. Assim acumulava um pouco de dinheiro para voltar à vila por algum tempo. Quando descobriu a gravidez, estava trabalhando em Salvador: “Minha ficha não caiu logo não e a barriga não cresceu, só foi crescer depois que eu descobri. Me assustei, e como é que não ia me assustar? Tive medo. Uma preocupação... como é que eu vou fazer sem condições de ter menino?”.

Susan queria que seu filho fosse pai e exemplificou o que é ter condições: “A hora boa é agora. Porque precisa ter condição e ele tá no auge! Tem trabalho, ganha um tanto bom que dá pra ter um filho e é novo. [...] e agora a gente ainda pode ajudar, ajuda a cuidar, olhar. Depois que eu não puder mais, tiver velha, é mais difícil”. As condições de ter um filho falam de estabilidade econômica, ter casa, emprego com bom rendimento e uma sólida rede de apoio para apoiar na criação do bebê. É comum as pessoas se organizarem em redes de auxílio mútuo nos cuidados das crianças. Amigas que ajudavam as outras, vizinhas, parentes. A solidariedade no cuidado é compartilhada entre as mulheres, principalmente. Na casa de Ângela, duas de suas amigas, que já eram mães, contaram sobre suas experiências de maternidade:

Eu perguntei à Déia porque ela tiraria, caso engravidasse de novo (havia declarado que o faria). Ela disse que depende, mas que é difícil: “Quando a gente acha alguém para assumir é bom. E quando não tem? Que nem ela? (apontava para Ianá). Que nem ela que... tem sorte de ter a mãe, que ajuda em tudo... mas a gente vê, as pessoa que não têm ninguém... aí como é que faz?” Ângela disse que Deus tinha ajudado Ianá, que agora vai trabalhar. E Ianá se perguntava o que faria com sua filha. Ângela disse que ela podia pagar alguém para cuidar. Déia interrompeu enfática dizendo que a menina ficaria com ela! Ela estava em casa durante as tardes e cuidaria da criança, de modo que Ianá não precisasse pagar ninguém e não teria que gastar com isso: “Se a gente vê a dificuldade dela? Tem que ajudar, num é não? Tem que se ajudar!” Déia é cunhada de Ianá e marisqueira. Ângela comentou que ali todo mundo se ajuda. “Pede uma lata de óleo emprestado, vai no vizinho e pede uma ajuda pra comida...” (NC)

A vida social na ilha é permeada pela solidariedade no cuidado em vários aspectos, como nos cuidados à saúde das pessoas, inclusive das mulheres grávidas, no cuidado de crianças ou mesmo na ajuda para suprir necessidades materiais. Tendo planejado ou não, todas as mulheres mencionavam a importância de “ter condições pra ter menino”. Porém, dificilmente engravidam nas condições ideais, sobretudo no que diz respeito à relação estável e emprego de bom rendimento. Ter apoio quando se engravida é importante, pois é preciso ter garantias de que terá os cuidados necessários. Reprodução no Riachão não significa apenas fazer nascer, mas inclui também o fazer crescer - criar uma pessoa - para o que é necessário “ter condições”. E as redes de solidariedade são centrais, como se observa na conversa com Déia, Ianá e Ângela.

A depender das condições das gestantes, o processo de aceitação da gravidez acarreta a busca por apoio. O cuidado da criança será compartilhado com outros moradores que integram as redes de parentes e afins, incluindo figuras masculinas. Frequentemente avós maternas cuidam dos netos para que as filhas possam trabalhar em outros locais, como ocorre no Caribe (Kitzinger 1994KITZINGER, Sheila. 1994. “The social context of Birth: some comparisons between Childbirth in Jamaica and Britain”. In: Carol Maccormack (org.), Ethnography of fertility and Birth. Illinois: Waveland Press. ). Durante a gravidez, as mulheres são as principais cuidadoras das gestantes, mas também há casos de mulheres que contam com seu marido e/ou pai.

Como parte das “condições”, a casa, providenciada a partir de uma gravidez, ocupa um lugar especial no fluir dos apoios. Normalmente, os casais precisam construir uma casa para morarem no início da primeira gravidez. Aqui as relações de solidariedade assumem uma importância nítida, como outros autores sinalizaram em casos semelhantes, já que o próprio processo de construção das casas se realiza no fluxo de ajudas mútuas, na solidariedade, na coletividade.25 25 Sobre solidariedade no processo de levantar as casas no Baixo-Sul e em Salvador, ver Marcelin (1999); Pina-Cabral e Silva (2013); McCallum e Bustamante (2012).

Thalia, por exemplo, planejou sua gravidez quando morava com os pais. Pretendia construir uma casa para que pudessem ter um filho, porém engravidou antes. Então sua família cedeu uma parte do quintal para que a construíssem. O marido de Thalia trabalhava “tirando piaçava”. Com a piaçava e o marisco, os dois construíram as primeiras paredes de barro de sua nova casa, que ainda estava em processo de ser preenchida quando se mudaram - assim que o filho nasceu. Tinham apenas os móveis do quarto, para o casal e o filho, e os da cozinha. Juntos ganhavam menos que um salário-mínimo. Um ano e alguns meses após o nascimento do filho, Thalia começou a receber o benefício do PBF, que viabilizou condições para comprarem móveis e fazerem melhorias na casa.

A “geração” da casa de Thalia faz eco àqueles casos discutidos por Bustamante (2009BUSTAMANTE, Vânia Nora Dejo. 2009. Cuidado infantil e construção social da pessoa: uma etnografia em um bairro popular de Salvador. Tese de Doutorado em Saúde Pública, Universidade Federal da Bahia.) na sua etnografia de um bairro popular de Salvador. McCallum e Bustamante (2012MCCALLUM, Cecilia & BUSTAMANTE, Vânia Nora Dejo. 2012. “Parentesco, gêne-ro e individuação no cotidiano da casa em um bairro popular de Salvador da Bahia”. Etnográfica [On-line], v. 16 (2).) apontaram quão comum era ver casais construírem casas em terrenos cedidos por familiares ou mesmo na “laje” da mãe de um dos dois. Envolvia a ativação e a manutenção de laços de “sangue” e de “consideração” nas relações de troca entre casas e configurações de casas.

A casa, em Riachão, pode ser entendida como um eixo para os processos fisiológicos e sociais da reprodução. As mulheres, que circulam entre moradias durante a gestação até depois do parto, sempre se referem à casa ao falarem das dinâmicas que envolvem o processo reprodutivo, desde os modos de constituir conjugalidades até os acordos entre as partes diante da gravidez. Possuir uma casa significa segurança e estabilidade, num contexto de instabilidade social. Em muitas conversas as pessoas deixam transparecer a importância de ter sua casa, ter “seu canto”, “seu chão”, “seu teto”. Desde o início do processo de “fazer e ter menino” a casa passa a ter contornos cada vez mais claros.

Mas a necessidade da garantia que a casa simboliza ultrapassa a constituição de conjugalidade, sendo central ainda nos projetos de vida das pessoas mais velhas que puderam construir mais de uma casa e agora deixam casas de herança para filhos e, quem sabe, até netos.26 26 Os mais velhos explicavam que suas casas teriam sido levantadas em lotes recebidos pelos trabalhadores da fazenda como pagamento pelo trabalho. Casas herdadas geralmente ficavam com o último descendente que a habitava, mas todos os irmãos se sentiam coproprietários, tendo livre acesso ao imóvel. Embora seja um acordo informal entre partes, procura-se respeitar a vontade do antigo dono. Recomendam-se estudos que tratem do tema da propriedade imobiliária local, que não foi aprofundado aqui. É comum construir casas para outras pessoas - geralmente familiares: irmãos, filhos e netos. Nilva construiu com esforço duas casas na ilha e deu para cada filho. Depois construiu a sua própria casa, que será de sua neta. Telma também contou como a construção das suas casas figura entre suas principais conquistas:

Casou-se na ilha e teve três filhos. Porém seu marido era violento e decidiu deixá-lo. Foi sozinha para a cidade vizinha trabalhar, onde ficou por dez anos. Deixou seus filhos com sua mãe na ilha natal. Toda vez que sentia uma dificuldade lembrava da voz de seu ex-marido dizendo que ela não era capaz de arrumar um emprego, que voltaria pra ele, que não conseguiria largá-lo, porque não conseguiria fazer nada, não poderia sustentar seus filhos. Telma passou fome, mas não voltou pra casa dos pais e nem do ex-marido. Trabalhou, juntou dinheiro, comprou seus terrenos, construiu sua casa. Hoje tem duas casas e dois terrenos na ilha. Suas casas serão de seus filhos “Eles já têm sua casa garantida, já não vão passar a necessidade que eu passei” (NC).

Susan morava na rua principal da ilha e possuía outro terreno vazio, na frente de sua casa. Um dia, Susan decidiu ampliar a sua casa. Seu sobrinho, que é mestre de obras, saiu de Salvador para ajudá-la. Ele e os irmãos de Susan fizeram o fundamento. No entanto, o processo de construção de uma casa leva tempo e está sempre em constituição, pois a cada parede que se levanta é preciso que a pessoa alcance mais recursos para a continuação da obra. Seis meses depois, a mãe de Susan teve um AVC (Acidente Vascular Cerebral) e, em oito semanas, ela faleceu. Durante a enfermidade, uma irmã de Susan, Simone, largou seu emprego para cuidar da mãe e, após o óbito, ficou desempregada. Outro irmão, que é empresário na cidade, ajudou Susan a continuar a obra, pois decidiram transformá-la na casa de Simone:

“Uma pessoa não pode ficar assim... Como é que ela vai fazer se não tiver uma casa? E agora que não tem mãe?! Então decidi dar essa parte pra ela. Eu e Paulo. Paulo está me ajudando! Aqui embaixo agora é de Simone! Se amanhã ou depois acontece alguma coisa, ela tem a casa dela! Ninguém sabe o dia de amanhã”. Simone é a única das irmãs que não engravidou e não tinha uma casa para si. (NC)

Não há uma relação restrita entre uma pessoa e sua única casa. Muitas vivem em mais de uma casa. Milena, uma jovem de 20 anos, dormia com a avó materna todos os dias, mas tinha a casa de sua mãe como sua casa também. As duas casas são construídas próximas no mesmo terreno, da família da avó. Todos que vivem ali são parentes.

O caso de Bianca apresentava muitas semelhanças, quando engravidou pela segunda vez. Mesmo tendo sua própria casa, morava na casa do atual marido. Suas cunhadas e as primas do marido moram na sua vizinhança em um grande terreno onde levantaram suas casas quando se mudaram para a ilha. Todos se consideravam parentes. Um dia, no quintal comum entre as casas de Bianca, suas cunhadas e primas, conversamos sobre o que era família. Elas diziam:

“Família é aqueles mais próximo. Mãe, filho, irmãos. Os mais distantes, só quem tá próximo que considera. [...] Um filho é importante pro casal ser uma família, considerarem-se família, parente. Mas o filho não faz da mulher parente dos parentes do homem, enquanto o filho que tem o mesmo sangue, esse é parente (dos parentes do pai)” (Bianca). “[...] parente é primo, primo de segundo, primo de terceiro, tio... primo pode ser da família, depende da ligança que der um com outro. Se tiver consideração” (Adelice, prima do marido de Bianca). “... eu mesmo, tirei essa semana um monte de primo da lista de parente” (Bianca, em complemento à fala de Adelice). “... às vezes, nem precisa ser de sangue que tem umas amizades que vale mais. Tem filho adotivo que às vezes é como da família, considera” (Trude, cunhada de Bianca).

Na resposta coletiva, a noção de “consideração” tem destaque. A “consideração” é modo importante de constituir uma relação de filiação, seja de paternidade ou maternidade. Para desenvolver ou perder filiação desta forma, a presença ou a ausência no ambiente doméstico é fundamental. Pina-Cabral e Silva (2013PINA-CABRAL, João de & SILVA, Vanda Ap. da Silva. 2013. Gente Livre: Consideração e pessoa no Baixo-Sul da Bahia. São Paulo: Terceiro Nome. :40) fazem uma distinção de escala entre o grupo flexível de parentes que uma pessoa considera e o parentesco efetivo na vicinalidade que a proximidade entre casas propaga diariamente. Nesta conversa, fica evidente que não basta ter um vínculo de consanguinidade, pois é preciso que se atualize sempre a relação. Da não atualização decorre o que Bianca apontou como tirar da lista de parentes. Em resposta a essa dinâmica, Marcelin notou a inerente tensão estrutural “simbólica e sociológica” que caracteriza o processo de manter uma casa articulada dentro de uma configuração de casas (Marcelin 1999MARCELIN, Louis Herns. 1999. “A linguagem da casa entre os negros no recôncavo baiano”. Mana, Rio de Janeiro, v. 5, n. 2:31-60. URL: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-93131999000200002&lng=en&nrm=iso>.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
:33).

Também é esta característica de uma relação sempre inacabada e sempre em constituição que faz com que, somente depois de um tempo de convívio, de mutualidade, reciprocidade e consideração, uma mulher possa ser considerada parente dos parentes dos pais de seus filhos. Este aspecto pode ser explicado também pela frequente instabilidade com a qual os casais convivem. Nina considera o filho de Jussara seu parente, pois é filho de seu irmão. Jussara, no entanto, mesmo sendo cunhada, não era considerada parente ainda. Esta relação pode mudar com o tempo, na medida em que estreitam laços de afinidade e atualizam sua relação. Por se tratar de uma relação de mutualidade, a “consideração” sempre depende de um gesto de atenção e pode ser atualizada ou não. Há uma relação contínua nas relações, pela qual a consideração pode se confirmar ou esmaecer.

Levantar uma casa requer engajamento de diversas pessoas e, conforme demonstrado, confirma sua centralidade por ser o espaço privilegiado de criação de pessoas, entrelaçando os sujeitos em relações de ajuda mútua. Para Pina-Cabral e Silva (2013PINA-CABRAL, João de & SILVA, Vanda Ap. da Silva. 2013. Gente Livre: Consideração e pessoa no Baixo-Sul da Bahia. São Paulo: Terceiro Nome. :89), as casas existem para que o casal viva com outros - geralmente filhos e parentes, além de amigos que visitam. O copertencimento a uma casa ou a várias casas ao mesmo tempo e a circulação são frequentes. As casas, assim como as pessoas, são singulares e partíveis, mas constituídas de forma plural (:93).

Mesmo assim, há casos em que os laços de solidariedade não são suficientes, sobretudo quando se trata de construir uma casa de blocos - algo que necessita de mais recursos financeiros. Jussara e Eloisa, irmãs que engravidaram jovens, levantaram suas casas de barro - uma ao lado da outra - em terrenos de familiares. O terreno da casa de Eloisa é dos seus pais. O terreno da casa de Jussara é da tia de seu marido, que prometeu vendê-lo quando o casal pudesse pagar. Ambas começaram a receber o benefício do PBF quando as casas estavam quase finalizadas, o que as ajudou a comprar os móveis e os utensílios domésticos. Igualmente, Lílian também recebia o Bolsa Família. Marisqueira de 26 anos, construiu uma casa de barro perto das casas de seus irmãos paternos, em uma grande área onde moravam as famílias de seis irmãos, a maioria em casas de barro.

Muitos habitantes da ilha moravam em casas de barro e nutriam a esperança de que o governo as transformasse em casas de alvenaria, como aconteceu anos antes. Estes casos nos auxiliaram a pensar na possível insuficiência das ajudas locais e na importância do papel do Estado para suas vidas. Ao longo do processo reprodutivo, o Estado revelou-se como um agente capaz de elevar as “condições de ter menino”, que constatamos ser de substancial importância.27 27 Ver Rezende e McCallum (2021). O PBF pesou aqui, bem como na constituição de casas. Para as mulheres do Riachão, o auxílio foi central para sua melhoria de vida e autoestima, como atestam estudos realizados anteriormente.28 28 Os efeitos do PBF aos beneficiários perpassam o alívio da pobreza, no suprimento de necessidades básicas e no empoderamento e na inserção das famílias no mercado de consumo (Zimmermann & Macêdo Espínola 2015; Pinto 2022); a percepção de melhoria da autoestima (Marins 2014) e redução de mortalidade infantil (Rasella 2013). Apesar dos resultados positivos, a complexidade social, política e econômica do PBF provocava desafios. Em relação à sua capacidade de contribuir na redução da desigualdade e na efetividade das condicionalidades, o baixo valor do auxílio e os limites da oferta e acessibilidade dos serviços de educação e saúde são problemas significativos (Zimmerman & Macêdo Espínola 2015). Observa-se dificuldade para as famílias beneficiárias romperem com o ciclo da pobreza quando há uma condição de carência extrema e violências de diversas ordens que vitimizam esses sujeitos e aprofundam a falta de perspectiva para o futuro (Pinto 2022). Os efeitos também são marcados por simbolismos e moralidades que afetam as performances e as identidades dos beneficiários a serem enquadrados nas categorias de “pobreza” ou “extrema pobreza” (Marins 2014; Pereira, Damo & Schabbach 2019; Pinto 2022). Sem ignorar as dificuldades, reiteramos aqui os destaques feitos pelos moradores do Riachão sobre o inegável (e evidente) efeito material do PBF que viabilizou melhores condições nas suas vidas cotidianas.

Além do Estado, outros sujeitos com poder socioeconômico eram fundamentais no apoio às mulheres. Eduarda, por exemplo, não pôde contar com a ajuda dos pais. De seu pai, Eduarda era muito distante. Sua mãe era “fraca29 29 Os termos “fraco” e “forte” referem-se, localmente, àqueles de menores ou maiores condições socioeconômicas. ”, sem condições. O parceiro, de quem Eduarda engravidou só passou a ajudá-la com recursos financeiros após o bebê nascer. Ela teve apoio da irmã, que possuía uma casa com condições de abrigá-la, além da família de sua comadre, que tem posses no Riachão - o que foi de suma importância na manutenção da jovem e na condução de sua gravidez. Um ano e meio depois que seu filho nasceu, Eduarda contou mais uma vez com a ajuda da família de sua comadre. Ajudaram-na a alugar uma pequena casa para viver com o bebê, comprometendo-se a pagar parte do aluguel, até que ela pudesse fazê-lo sozinha, pois sua renda era insuficiente para que arcasse com os custos de vida. A comadre, além de ajudá-la com o aluguel, arrecadou utensílios e móveis usados para a jovem.

Em suma, podemos observar como o feixe de relacionalidades em que as pessoas estão inseridas é fundamental para o processo reprodutivo que, por sua vez, também coloca as pessoas em relacionamentos. A constituição de casas é central para a criação de pessoas, na luta pelas “condições de ter menino”. As pessoas se engajam nesta luta, constituindo relações de solidariedade e ajudas mútuas, conformadas (e conformando-as) em relações de parentesco e afinidade.

Conclusão

No dia a dia de Riachão, os corpos em interação figuram como entes sociais - são divíduos ou partíveis (Pina-Cabral & Silva 2013PINA-CABRAL, João de & SILVA, Vanda Ap. da Silva. 2013. Gente Livre: Consideração e pessoa no Baixo-Sul da Bahia. São Paulo: Terceiro Nome. ) e não simples entes físicos individuais e isoláveis que formam conexões entre si. A reprodução sexual cria e recria elos entre as pessoas - redunda em redes de apoio, cuidado e solidariedade que envolvem uma multiplicidade de atores. Cria e recria, no mesmo passo, casas e configurações de casas. Com as medidas que auxiliam nas condições de vida, principalmente aquelas oriundas da rede de parentes e afins, mas também do próprio Estado, entrelaça as mulheres e os homens engajados em “ter menino” com diversos outros sujeitos. As pessoas e as casas são constituídas diariamente e micro-historicamente, no sentido apontado por Christina Toren.30 30 Para Toren, o significado é produzido intersubjetivamente em um processo histórico contínuo. Este uso implica a ontogênese micro-histórica do significado, um processo psicológico embutido na sociabilidade e produtivo dela. Esta abordagem é desenvolvida de modo coerente na obra da autora. Ver, por exemplo, de Toren (1999, 2013, 2017). Para uma discussão mais detalhada, ver McCallum (2023).

As casas são meios de efetivação da relacionalidade. Uma gravidez desencadeia um processo de separação da casa materna original, levando a uma transição entre casas. Esse processo por meio do qual a mulher “sai de casa” passa pela rua, ou por entre casas: a mulher e o homem têm relações sexuais nos espaços liminares que separam as casas e assim o homem a “tira de casa”. Nos casos emblemáticos descritos na linguagem local, o sexo - quando se “tira a menina de casa” - acontece nos interstícios entre as casas, nas ruelas e nos becos, não espaços que separam e conectam casas e configurações de casas. Obedece à lógica notada por Cortado (2020b CORTADO, Thomas Jacques. 2020b. “La maison des périphéries urbaines au Brésil: une institution du commun”. Brésil(s) [En ligne], 18.:5, §8) na sua discussão da “Casa e a Rua” no Brasil: “la rue et la Maison, au lieu d’incarner des pôles ideologiques opposés, sont le produit et le support d’affet et d’éngagements reciproque entre habitants” [“a rua e a casa, no lugar de encarnarem polos ideológicos opostos, são o produto e a sustentação do afeto e do engajamento recíprocos entre os habitantes”]. O sexo clandestino figura como uma prática que produz a rua, no mesmo ato em que a rua vira cenário e estopim da produção de relacionalidade.

Quando uma jovem mulher engravida, o sexo deve sair das penumbras e do beco para se tornar duplamente reprodutivo - produz uma família e uma casa. Uma vez que o homem “faz um filho” na mulher, seu corpo grávido assumirá uma dimensão pública e a paternidade assumida figura como fundamental para o próximo passo, a construção de uma casa. E a casa vira um símbolo público. Assim, a paternidade é a base sobre a qual se constrói relacionalidade através da casa.

Idealmente, para o povo de Riachão, ter condições de ter menino significa compor um casal, possuir emprego, ter uma rede consolidada de apoio e ter uma casa. Embora haja a necessidade de reconhecimento da paternidade e algum engajamento do homem para que uma nova casa seja viabilizada, vimos casos em que se prescindiu da ação do homem (novo pai) para que esta casa se realizasse. Na verdade, as mulheres têm importante papel nas negociações para tanto. Vimos mães, avós, tias, irmãs e comadres providenciando esta nova unidade doméstica. Mesmo assim, depende da saída desta mulher de casa pela ação de um homem. Portanto, a figura masculina é agente importante na consecução destes eventos.

Poderíamos dizer que a gravidez, quando assume dimensão pública, inicia um rearranjo no sentido da gênese de uma nova casa. Não cabe uma menina ficar dentro da casa dos pais, criando seu filho. Então, se constrói uma nova casa, mesmo que seja no quintal dos pais, mesmo que seja uma casa de barro. Por isso dizemos que o símbolo público central da relacionalidade aqui é a casa - ou as casas interrelacionadas temporalmente pelo sair de uma e entrar em outra. É a casa ou o conjunto de casas que se une a partir de uma gravidez reconhecida e assumida: Tem filho, tem que ter casa.

Apesar da origem essencialmente paterna na procriação (homens fazem os filhos”), a contribuição feminina é bastante visível. As casas costumam ficar com as mulheres, assim como as de heranças. São elas que viabilizam o levantamento das casas. Mas a constituição contínua das casas também envolve a participação de outros, entrelaçando as pessoas em uma rede de relações. Seja no empréstimo ou na doação do terreno, seja na doação da casa, seja na ajuda ao levantar a casa, ou ao “bater a laje”, seja na doação de material, a geração das casas é ao mesmo tempo a criação e a recriação da relacionalidade.

Em suma, o jogo sexual refere-se ao estatuto de uma eventual gravidez, que pode ser catalisador de novas relações sociais. Demonstramos que a geração de novas casas materializa em tijolo e cimento ou barro o processo de concretização da relacionalidade, enquanto a barriga da grávida é evidência da sua materialização em um ser de carne e osso. À medida que a gravidez evolui, se tem em mente o assentamento da paternidade. Nesse momento, as relações de “sangue”, lastro inicial de um eventual elo permanente entre a criança em formação e seu pai verdadeiro, se tornam uma preocupação. Pina-Cabral e Silva (2013) ponderam a dinâmica entre criação, consideração e conexão biológica assim:

Quando tentamos inquirir explicitamente sobre a palavra que caracterizaria o pai/mãe que não é “de criação”, foi nos respondido que “pai biológico é o que se costuma chamar de pai verdadeiro”. Em suma, como noutras tradições culturais de raiz europeia, os baianos atribuem um maior peso de evidência (maior “verdade”) [Pina-Cabral 2010PINA-CABRAL, João de. 2010. “The truth of personal names”. JRAI, v. 16, n. 2:297-312. URL: https://www.jstor.org/stable/40606101.
https://www.jstor.org/stable/40606101...
] à causalidade que originou a personalidade da criança. Está aqui implícita uma cosmologia em que corpo e espírito se diferenciam, mas em que o corpo é o aspecto que institui objetividade. (Pina-Cabral & Silva 2013PINA-CABRAL, João de & SILVA, Vanda Ap. da Silva. 2013. Gente Livre: Consideração e pessoa no Baixo-Sul da Bahia. São Paulo: Terceiro Nome. :30).

Os autores afirmam que, quando as pessoas em Valença falam de pai/mãe verdadeiros, “não pode ser seriamente considerada como remetendo a qualquer teoria biológica da concepção” (2013PINA-CABRAL, João de & SILVA, Vanda Ap. da Silva. 2013. Gente Livre: Consideração e pessoa no Baixo-Sul da Bahia. São Paulo: Terceiro Nome. ), o que significa que as pessoas do Baixo-Sul não estão lançando mão de uma teoria de cunho científico, nos moldes daquelas adotadas pela biomedicina de origem europeia. Já questionamos a associação entre “tradições culturais de raiz europeia” e a teoria biológica da procriação que ouvimos em Riachão e reafirmamos que não se trata de uma questão de uma tradição qualquer - embora, se fosse assim, valeríamo-nos de uma tradição indígena tupi, dada a agência masculina na “feitura dos bebês”. Um melhor caminho para compreender a condição ontológica “objetiva” da relação de paternidade seria deixar de lado os aspectos metadiscursivos, sejam estes vistos como “teorias nativas”, ou como influências dessa ou daquela herança cultural, e debruçar-se sobre outros processos que ocorrem de modo interligado, uma vez que uma gravidez está em desenvolvimento. A instituição da objetividade da paternidade através do crescimento do corpo do bebê não adquire a forma evidente ou experiencial, marcante ou desejada, sem a intervenção do outro processo emergente: o da gênese da casa.

Para nossas/os interlocutoras/es, são os homens que fabricam os bebês, sendo as mulheres gestoras do produto masculino. Enquanto o sexo leva as mulheres a gestarem o filho desse pai “verdadeiro”, ambos devem participar do processo em que o bebê gera uma casa. E esta, por sua vez, abrigará entre suas paredes a feitura de uma paternidade não apenas de sangue, mas também de consideração. Na cadeia de processos de geração, o pai gera o bebê do seu sangue, o bebê gera a casa e, através das suas contribuições para se terem “as condições de ter menino”, inicia-se o processo de geração da sua própria paternidade de consideração. Assim, nesse local onde as pessoas vivem “às margens”, no sistema socioeconômico altamente desigual que é o Brasil, lutando para construir suas vidas, suas casas e seus filhos, “in the wake of the plantation” (Biehl & Nieburg 2021BIEHL, Joāo & NEIBURG, Federico. 2021. “Oikography: Ethnographies of House-ing in Critical Times”. Cultural Anthropology, 36 (4):539-547.), os processos vividos de parentesco, habitar e reprodução se entrelaçam e se perpetuam, na geração de cada bebê e de cada casa.

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Notas

  • *
    Agradecemos ao coletivo de pesquisadoras/es do Programa de Pesquisa e Cooperação Técnica em Gênero e Saúde, do Instituto de Saúde Coletiva, da Universidade Federal da Bahia (MUSA/ISC/UFBA), que esteve presente nas discussões dos resultados e no apoio permanente que ofereceu para a realização desta pesquisa e deste trabalho. Este artigo deriva de pesquisa do doutorado realizada entre 2011-2015, com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e bolsa de doutorado sanduíche fornecida pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
  • 1
    Citações e registros das Notas de Campo (NC) de Patrícia Rezende.
  • 2
    Por razões éticas, os nomes da vila e das pessoas são fictícios, sugeridos ou consentidos pelas moradoras.
  • 3
    Ver, por exemplo, o dossier na Revista Mana (Comerford & Neiburg 2021COMERFORD, John, & NEIBURG, Federico. 2021. “A casa e a invenção da família afro-americana - vinte e cinco anos depois”. Mana[Internet], 27 (2).).
  • 4
    Biehl e Nieburg (2021BIEHL, Joāo & NEIBURG, Federico. 2021. “Oikography: Ethnographies of House-ing in Critical Times”. Cultural Anthropology, 36 (4):539-547.) citam o trabalho de Thomas (2019THOMAS, Deborah A. 2019. Political Life in the Wake of the Plantation: Sovereignty, Witnessing, Repair. Durham, N.C.: Duke University Press. ), que cunhou a expressão “living in the wake of the plantation”, sobre as formas em que o passado escravagista (“the plantation” se refere ao sistema de casa grande e senzala nas fazendas de plantação de cana-de-açúcar) participa ativamente no dia a dia atual dos que vivem “in the wake” (na esteira). Contemplar os processos de house-ing como acontecendo “in the wake” significa, para eles, decolonizar e reconfigurar a antropologia da casa.
  • 5
    As etnografias sobre parentesco realizadas nesse período já manifestaram as influências das críticas feministas ou de outras fontes: na antropologia social britânica, Carsten (1997CARSTEN, Janet. 1997. The Heat of the Hearth: The Process of Kinship in a Malay Fishing Community. Oxford: Clarendon Press.); Gow (1991GOW, Peter. 1991. Of Mixed Blood - Kinship and History in Peruvian Amazonia. Oxford: Clarendon Press . ); McCallum (2001MCCALLUM, Cecilia. 2001. Gender and Sociality in Amazonia: How Real People Are Made. Oxford and New York: Berg), entre outros; na América do Norte, também influenciados pela desconstrução da própria noção de parentesco de Schneider (1969SCHNEIDER, David. 1969. American Kinship: A Cultural Account. Chicago: Chicago University Press., 1984SCHNEIDER, David. 1984. A Critique of the Study of Kinship. Ann Arbor: University of Michigan Press.), ver, por exemplo, Weston (1991WESTON, Kath. 1991. Families We Choose: Lesbians, Gays, Kinship. New York: Columbia University Press. ). Para uma discussão da literatura sobre parentesco na época, ver Peletz (1995PELETZ, Michael G. 1995. “Kinship Studies in Late Twentieth-Century Anthropology”. Annual Review of Anthropology, v. 24:343-372. ).
  • 6
    McCallum e Bustamante (2012MCCALLUM, Cecilia & BUSTAMANTE, Vânia Nora Dejo. 2012. “Parentesco, gêne-ro e individuação no cotidiano da casa em um bairro popular de Salvador da Bahia”. Etnográfica [On-line], v. 16 (2).); Pina-Cabral e Silva (2013PINA-CABRAL, João de & SILVA, Vanda Ap. da Silva. 2013. Gente Livre: Consideração e pessoa no Baixo-Sul da Bahia. São Paulo: Terceiro Nome. ); Motta (2014MOTTA, Eugênia. 2014. “Houses and economy in the favela”. Vibrant, v. 11, n. 1:118-158., 2016MOTTA, Eugênia. 2016. “Casas e economia cotidiana”. In: Rute Imanishi Rodrigues (org.), Vida social e política nas favelas: pesquisas de campo no Complexo do Alemão. Rio de Janeiro: Ipea. pp.197-213. URL: http://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/6410
    http://repositorio.ipea.gov.br/handle/11...
    , 2021aMOTTA, Eugênia. 2021a. “The Dying Home: “Bad Deaths” and Spatial Inscriptions of Mourning in a Favela”. Cultural Anthropology, 36:556-562. , 2021bMOTTA, Eugênia. 2021b. “Fazendo casas, pessoas e mundos (no Recôncavo baiano e em uma favela carioca”. Mana [Internet] 27 (2), e272552. ); Cortado (2019CORTADO, Thomas Jacques. 2019. “Meia-água: producing space and kinship in an irregular housing subdivision in Rio de Janeiro”. Articulo Journal of Urban Research [On-line], 20., 2020aCORTADO, Thomas Jacques. 2020a. “Casas feitas de olhares: uma etnografia dos muros em um loteamento periférico do Rio de Janeiro”. Etnográfica [On-line], 24 (3):665-682., 2020bCORTADO, Thomas Jacques. 2020b. “La maison des périphéries urbaines au Brésil: une institution du commun”. Brésil(s) [En ligne], 18., 2021CORTADO, Thomas Jacques. 2021. “Interrogando a produção do espaço”. Mana[Internet] 27 (2), e272554.); Guedes (2017GUEDES, André Dumans. 2017. “Construindo e estabilizando cidades, casas e pessoas”. Mana, 23(3):403-435., 2021GUEDES, André Dumans. 2021. “Interstícios, distâncias e formas provisórias de existência”. Mana [Internet] 27 (2), e272551.); Biehl e Neiburg (2021BIEHL, Joāo & NEIBURG, Federico. 2021. “Oikography: Ethnographies of House-ing in Critical Times”. Cultural Anthropology, 36 (4):539-547.); e Comerford e Nieburg (2021COMERFORD, John, & NEIBURG, Federico. 2021. “A casa e a invenção da família afro-americana - vinte e cinco anos depois”. Mana[Internet], 27 (2).), entre outros. Embora haja distinções entre as abordagens dos autores, todos se referem ao trabalho de Marcelin e alguns antecessores, como Woortman (1987WOORTMAN, Klaus. 1987. A família das mulheres. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.).
  • 7
    Marcelin (1999MARCELIN, Louis Herns. 1999. “A linguagem da casa entre os negros no recôncavo baiano”. Mana, Rio de Janeiro, v. 5, n. 2:31-60. URL: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-93131999000200002&lng=en&nrm=iso>.
    http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
    :35-38) enfatiza a relação entre migrantes e casas de origem, e sua condição de matriz simbólica de referência no imaginário dos parentes. Pina-Cabral e Silva (2013PINA-CABRAL, João de & SILVA, Vanda Ap. da Silva. 2013. Gente Livre: Consideração e pessoa no Baixo-Sul da Bahia. São Paulo: Terceiro Nome. ) o equiparam à noção de vicinalidade e destacaram as trocas locais e cotidianas na sua constituição. Sobre a noção de “Casa e Configuração de casas”, ver Guedes (2017GUEDES, André Dumans. 2017. “Construindo e estabilizando cidades, casas e pessoas”. Mana, 23(3):403-435., 2021GUEDES, André Dumans. 2021. “Interstícios, distâncias e formas provisórias de existência”. Mana [Internet] 27 (2), e272551.); Bustamante e McCallum (2011BUSTAMANTE, Vânia Nora Dejo & MCCALLUM, Cecilia, 2011. “Parentesco y casas en un barrio de bajos ingresos asistido por el Programa de Salud Familiar en Salvador, Bahía, Brasil”. Salud Colectiva, 7 (3):365-376. ); Motta (2016MOTTA, Eugênia. 2016. “Casas e economia cotidiana”. In: Rute Imanishi Rodrigues (org.), Vida social e política nas favelas: pesquisas de campo no Complexo do Alemão. Rio de Janeiro: Ipea. pp.197-213. URL: http://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/6410
    http://repositorio.ipea.gov.br/handle/11...
    ); Cortado (2019CORTADO, Thomas Jacques. 2019. “Meia-água: producing space and kinship in an irregular housing subdivision in Rio de Janeiro”. Articulo Journal of Urban Research [On-line], 20.); Biehl e Neiburg (2021BIEHL, Joāo & NEIBURG, Federico. 2021. “Oikography: Ethnographies of House-ing in Critical Times”. Cultural Anthropology, 36 (4):539-547.).
  • 8
    Agier (1990AGIER, Michel. 1990. “Espaço urbano, família e status social: o novo operariado baiano nos seus bairros”. Cadernos CRH, 3 (13):39-62.); Bustamante (2009BUSTAMANTE, Vânia Nora Dejo. 2009. Cuidado infantil e construção social da pessoa: uma etnografia em um bairro popular de Salvador. Tese de Doutorado em Saúde Pública, Universidade Federal da Bahia.).
  • 9
    Ver Cortado (2021CORTADO, Thomas Jacques. 2021. “Interrogando a produção do espaço”. Mana[Internet] 27 (2), e272554.) sobre a tensão (ou contradição) presente no tratamento de parentesco em Marcelin (1996MARCELIN, Louis Herns. 1996. L’Invention de la Famille Afro-americaine: famille, parenté et domesticité parmi les noirs du Recôncavo da Bahia, Brésil. Tese de Doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro., 1999MARCELIN, Louis Herns. 1999. “A linguagem da casa entre os negros no recôncavo baiano”. Mana, Rio de Janeiro, v. 5, n. 2:31-60. URL: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-93131999000200002&lng=en&nrm=iso>.
    http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
    ). O autor dá destaque a conceitos-chave da abordagem clássica estruturalista, ao passo que abre o caminho para uma abordagem processual que evitaria aquelas pressuposições sobre corpos biológicos atreladas às análises estruturalistas e dos estudos clássicos sobre parentesco, mas acaba relegando essa abertura para o segundo plano. No caso da sua reconceitualizaçāo da casa, a partir do conceito de “configuração de casas”, esta redução a uma materialidade imanente cede lugar para algo bem mais rico e instigante. Nas palavras de Biehl e Neiburg (2021BIEHL, Joāo & NEIBURG, Federico. 2021. “Oikography: Ethnographies of House-ing in Critical Times”. Cultural Anthropology, 36 (4):539-547.), aqui a casa se revela como “an emplacement of tensions and a relational process, simultaneously open-ended and foreclosing” (:543) (tradução das autoras: “um colocar-no-lugar de tensões e um processo relacional, simultaneamente aberto e excludente”).
  • 10
    Para a discussão sobre o papel de Schneider na virada nos estudos sobre parentesco e relacionalidade, ver Carsten (2000CARSTEN, Janet. 2000. Cultures of Relatedness: New Approaches to the Study of Kinship. Cambridge: Cambridge University Press . , 2011CARSTEN, Janet. 2011. “Substance and Relationality: Blood in Contexts”. Annual Review of Anthropology, v. 40:19-35. ).
  • 11
    Ver Marcelin (1999MARCELIN, Louis Herns. 1999. “A linguagem da casa entre os negros no recôncavo baiano”. Mana, Rio de Janeiro, v. 5, n. 2:31-60. URL: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-93131999000200002&lng=en&nrm=iso>.
    http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
    :38-45), onde “sangue” é discutido como categoria nativa explícita e “princípio genealógico” tratado como categoria nativa implícita.
  • 12
    Sobre gravidez como estopim para o processo de construir uma casa, ver Bustamante (2009BUSTAMANTE, Vânia Nora Dejo. 2009. Cuidado infantil e construção social da pessoa: uma etnografia em um bairro popular de Salvador. Tese de Doutorado em Saúde Pública, Universidade Federal da Bahia.) e Motta (2016MOTTA, Eugênia. 2016. “Casas e economia cotidiana”. In: Rute Imanishi Rodrigues (org.), Vida social e política nas favelas: pesquisas de campo no Complexo do Alemão. Rio de Janeiro: Ipea. pp.197-213. URL: http://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/6410
    http://repositorio.ipea.gov.br/handle/11...
    ).
  • 13
    Jordan (1993 JORDAN, Brigitte. 1993 [1978]. Birth in Four Cultures. (4th edition), revised and expanded by R. Davis-Floyd. Prospect Heights, Ohio: Waveland Press.[1978]) marca o início desse campo prolífico. A coletânea organizada por Ginsburg e Rapp (1995GINSBURG, Faye & RAPP, Rayna. 1995. Conceiving the New World Order: The Global Politics of Reproduction. Berkeley: University of California Press .) revisita suas ideias em enfoque etnográfico e comparativo. Para uma revisão da literatura antropológica sobre reprodução, ver Inhorn (2006INHORN, Marcia C. 2006. “Defining Womens Health: A Dozen Messages from More than 150 Ethnographies”. Medical Anthropology Quarterly, New Series, v. 20, n. 3:345-378.).
  • 14
    Para discussão da couvade nos estudos na etnologia indígena, ver Costa (2017COSTA, Luiz. 2017. The Owners of Kinship. Asymmetrical Relations in Indigenous Amazonia. Chicago: Hau Books.:97-103).
  • 15
    Ver Heilborn et al. (2002HEILBORN, Maria Luiza; SALEM, Tânia; ROHDEN, Fabíola; BRANDÃO, Elaine; KNAUTH, Daniela Riva; VÍCTORA, Ceres; AQUINO, Estela Maria Leão de. 2002. Aproximações socioantropológicas sobre a gravidez na adolescência. Horizontes Antropológicos [internet], v. 8, n.17:13-45.) e Bustamante (2009BUSTAMANTE, Vânia Nora Dejo. 2009. Cuidado infantil e construção social da pessoa: uma etnografia em um bairro popular de Salvador. Tese de Doutorado em Saúde Pública, Universidade Federal da Bahia.) acerca da noção de gravidez social, estabelecida na literatura brasileira sobre reprodução.
  • 16
    Para uma desconstrução dos modelos clássicos de parentesco numa perspectiva feminista, ver Franklin (1997FRANKLIN, Sarah. 1997. “Embodied Progress: A Cultural Account of Assisted Conception”. New York: Routledge. :17-72); e sobre a relação entre as críticas schneideriana e feminista, ver Franklin (2019FRANKLIN, Sarah. 2019. “The Anthropology of Biology: A lesson from the new kinship studies”. In: Sandra Bamford (org.), The Cambridge Handbook of Kinship. Cambridge: Cambridge University Press . pp. 107-132.).
  • 17
    Referimo-nos às reflexões e escolhas de escrita na primeira pessoa do plural (nós), por tratar-se de autoria coletiva. Porém, em referência ao trabalho de campo realizado por Patrícia Rezende, usamos a primeira pessoa do singular (eu).
  • 18
    Criado em 2004, o PBF foi um grande programa condicionado de transferência e principal medida de enfrentamento à pobreza no país. O auxílio era dado preferencialmente às mulheres mães e dependia de condicionalidades como exigências de frequência aos serviços de saúde, vacinação e escolas. Dentre seus impactos, vimos a redução de pessoas em situação de pobreza e extrema pobreza, da insegurança alimentar, da mortalidade infantil e, em 2014, a saída do Brasil do mapa da fome. No final de 2021 foi substituído pelo Programa Auxílio Brasil (MP 1061/2021), carregando incertezas quanto à sua eficácia (Guimarães 2022GUIMARÃES, Cátia. 2022. “O Brasil se despede do Bolsa Família”. Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/FIOCRUZ. 17 de jan. URL: https://www.epsjv.fiocruz.br/noticias/reportagem/o-brasil-se-despede-do-bolsa-familia
    https://www.epsjv.fiocruz.br/noticias/re...
    ). Em 2023, o novo governo, sob a presidência de Luiz Inácio Lula da Silva, relançou o programa com novas diretrizes, por Medida Provisória (MP 1.164/23), prometendo reverter o desmonte iniciado pela gestão anterior.
  • 19
    Os dados etnográficos tratam das experiências reprodutivas das mulheres, mas foram produzidos nas interações cotidianas com os moradores de toda ordem: homens, mulheres, crianças, idosos, adolescentes e adultos.
  • 20
    Thales de Azevedo documentou as “regras de namoro” na Bahia na década de 1970 (Azevedo 1986AZEVEDO, Thales de. 1986. As regras do namoro à antiga: (aproximações socioculturais). São Paulo: Editora Ática.).
  • 21
    Pina-Cabral e Silva (2013PINA-CABRAL, João de & SILVA, Vanda Ap. da Silva. 2013. Gente Livre: Consideração e pessoa no Baixo-Sul da Bahia. São Paulo: Terceiro Nome. :25-50) documentam casos em que a consideração é a base do parentesco no Baixo-Sul. Ver Marcelin (1999MARCELIN, Louis Herns. 1999. “A linguagem da casa entre os negros no recôncavo baiano”. Mana, Rio de Janeiro, v. 5, n. 2:31-60. URL: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-93131999000200002&lng=en&nrm=iso>.
    http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
    ) sobre as relações de consideração e de consanguinidade que emergem no cenário das casas e a partir da vida destas. Pina-Cabral (2007PINA-CABRAL, João de. 2007. “Mães, pais e nomes no Baixo Sul (Bahia, Brasil)”. In: J. Pina-Cabral & S. M. Viegas (orgs.), Nomes: Género, Etnicidade e Família. Lisboa: Edições Almedina AS. pp. 63-89.), ao tratar “consideração” como princípio organizador das relações familiares, explora a relação entre a proximidade geográfica e o engajamento nas relações entre as pessoas, para a permanente atualização dos laços parentais.
  • 22
    Ver nota 23.
  • 23
    Observação de Luísa Elvira Belaunde, em comunicação pessoal. Essa teoria reafirma aquelas documentadas de povos falantes de línguas tupis. Segundo Viveiros de Castro et al. (2017VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo; CAUX, Camila de & HEURICH, Guilherme Orlandini. 2017. Araweté: um povo Tupi da Amazônia. São Paulo: SESC Edições.), a teoria da concepção dos Araweté apresenta o genitor como aquele que “faz” ou “dá” a criança, sendo as mulheres apenas o receptáculo destas, lócus onde cresce e desenvolve suas formas humanas.
  • 24
    Consideramos práticas biomédicas inseridas nas políticas e nos programas nacionais e internacionais, que tendem a focar a saúde reprodutiva feminina (Dudgeon & Inhorn 2003DUDGEON, Mathew & INHORN, Marcia. 2003. “Gender, Masculinity, and Reproduction: Anthropological Perspectives”. International Journal of Men’s Health, v. 2, n. 1:31-56.). Os significados elencados pelos discursos e as práticas biomédicos são múltiplos e diversos, pois emergem em contextos históricos e culturais distintos. Ver Rohden e McCallum (2015ROHDEN, Fabíola & MCCALLUM, Cecilia. 2015. Corpo e Saúde na Mira da Antro-pologia: ontologias, práticas, traduções. Salvador: Edufba.). A literatura antropológica aponta a naturalização da reprodução como domínio do corpo feminino em contextos diversos, como nas maternidades brasileiras (Tornquist 2002TORNQUIST, Carmen Susana. 2002. “Armadilhas da nova era: natureza e maternidade no ideário da humanização do parto”. Revista Estudos Feministas, v. 10, n. 2:483-492.; McCallum & dos Reis 2005MCCALLUM, Cecilia & DOS REIS, Ana Paula 2005. “Childbirth as Ritual in Brazil: Young Mother´s Experiences”. Ethnos (Stockholm),v. 70:335-360.; McCallum, Menezes & dos Reis 2016MCCALLUM, Cecilia; MENEZES, Greice & DOS REIS, Ana Paula. 2016. “O Dilema de uma Prática: Experiências de aborto em uma maternidade pública de Salvador-Bahia”. Manguinhos: História, Ciências, Saúde, v. 23, n. 1:37-56.) e nos hospitais norte-americanos (Martin 1987MARTIN, Emily. 1987. The Woman in The Body: A Cultural Analysis of Reproduction. Boston: Beacon Press.; Davis-Floyd 1992DAVIS-FLOYD, Robbie. 1992. Birth as an American Rite of Passage. Berkeley: University of California Press.).
  • 25
    Sobre solidariedade no processo de levantar as casas no Baixo-Sul e em Salvador, ver Marcelin (1999MARCELIN, Louis Herns. 1999. “A linguagem da casa entre os negros no recôncavo baiano”. Mana, Rio de Janeiro, v. 5, n. 2:31-60. URL: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-93131999000200002&lng=en&nrm=iso>.
    http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
    ); Pina-Cabral e Silva (2013PINA-CABRAL, João de & SILVA, Vanda Ap. da Silva. 2013. Gente Livre: Consideração e pessoa no Baixo-Sul da Bahia. São Paulo: Terceiro Nome. ); McCallum e Bustamante (2012MCCALLUM, Cecilia & BUSTAMANTE, Vânia Nora Dejo. 2012. “Parentesco, gêne-ro e individuação no cotidiano da casa em um bairro popular de Salvador da Bahia”. Etnográfica [On-line], v. 16 (2).).
  • 26
    Os mais velhos explicavam que suas casas teriam sido levantadas em lotes recebidos pelos trabalhadores da fazenda como pagamento pelo trabalho. Casas herdadas geralmente ficavam com o último descendente que a habitava, mas todos os irmãos se sentiam coproprietários, tendo livre acesso ao imóvel. Embora seja um acordo informal entre partes, procura-se respeitar a vontade do antigo dono. Recomendam-se estudos que tratem do tema da propriedade imobiliária local, que não foi aprofundado aqui.
  • 27
    Ver Rezende e McCallum (2021REZENDE, Patrícia & MCCALLUM, Cecilia. 2021. O Estado brasileiro como agente no processo reprodutivo em uma vila do Baixo-Sul Baiano. Physis Revista de Saúde Coletiva, v. 31, n. 3.).
  • 28
    Os efeitos do PBF aos beneficiários perpassam o alívio da pobreza, no suprimento de necessidades básicas e no empoderamento e na inserção das famílias no mercado de consumo (Zimmermann & Macêdo Espínola 2015ZIMMERMANN, Clóvis Roberto & MACÊDO ESPÍNOLA, Gepherson. 2015. “Programas Sociais no Brasil: um estudo sobre o Programa Bolsa Família no interior do Nordeste brasileiro”. Caderno CRH, 28 (73), jan.-abril, 147-164.; Pinto 2022PINTO, Michele de Lavra. 2022. “Programa de transferência de renda: Bolsa Família, consumo e moralidade”. Civitas: Revista de Ciências Sociais, 22, e41670. https://doi.org/10.15448/1984-7289.2022.1.41670
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    ); a percepção de melhoria da autoestima (Marins 2014MARINS, Mani Tebet. 2014. “Repertórios morais e estratégias individuais de beneficiários e cadastradores do Bolsa Família”. Sociol. Antropol., Rio de Janeiro, v. 4, n. 2:543-562.) e redução de mortalidade infantil (Rasella 2013RASELLA, Davide. 2013. Impacto do Programa Bolsa Família e seu efeito conjunto com a Estratégia Saúde da Família sobre a mortalidade no Brasil. Tese de Doutorado em Saúde Pública, Universidade Federal da Bahia, Salvador.). Apesar dos resultados positivos, a complexidade social, política e econômica do PBF provocava desafios. Em relação à sua capacidade de contribuir na redução da desigualdade e na efetividade das condicionalidades, o baixo valor do auxílio e os limites da oferta e acessibilidade dos serviços de educação e saúde são problemas significativos (Zimmerman & Macêdo Espínola 2015ZIMMERMANN, Clóvis Roberto & MACÊDO ESPÍNOLA, Gepherson. 2015. “Programas Sociais no Brasil: um estudo sobre o Programa Bolsa Família no interior do Nordeste brasileiro”. Caderno CRH, 28 (73), jan.-abril, 147-164.). Observa-se dificuldade para as famílias beneficiárias romperem com o ciclo da pobreza quando há uma condição de carência extrema e violências de diversas ordens que vitimizam esses sujeitos e aprofundam a falta de perspectiva para o futuro (Pinto 2022PINTO, Michele de Lavra. 2022. “Programa de transferência de renda: Bolsa Família, consumo e moralidade”. Civitas: Revista de Ciências Sociais, 22, e41670. https://doi.org/10.15448/1984-7289.2022.1.41670
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    ). Os efeitos também são marcados por simbolismos e moralidades que afetam as performances e as identidades dos beneficiários a serem enquadrados nas categorias de “pobreza” ou “extrema pobreza” (Marins 2014MARINS, Mani Tebet. 2014. “Repertórios morais e estratégias individuais de beneficiários e cadastradores do Bolsa Família”. Sociol. Antropol., Rio de Janeiro, v. 4, n. 2:543-562.; Pereira, Damo & Schabbach 2019PEREIRA, Talita Jabs Eger; DAMO, Arlei Sander & SCHABBACH, Letícia Maria. 2019. “Entre" pobres" e" vulneráveis": a fluidez das categorias de intervenção no processo de implementação do Programa Bolsa Família a partir de uma etnografia junto a assistentes sociais”. Revista brasileira de sociologia, v. 7, n. 15:54-80.; Pinto 2022PINTO, Michele de Lavra. 2022. “Programa de transferência de renda: Bolsa Família, consumo e moralidade”. Civitas: Revista de Ciências Sociais, 22, e41670. https://doi.org/10.15448/1984-7289.2022.1.41670
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    ). Sem ignorar as dificuldades, reiteramos aqui os destaques feitos pelos moradores do Riachão sobre o inegável (e evidente) efeito material do PBF que viabilizou melhores condições nas suas vidas cotidianas.
  • 29
    Os termos “fraco” e “forte” referem-se, localmente, àqueles de menores ou maiores condições socioeconômicas.
  • 30
    Para Toren, o significado é produzido intersubjetivamente em um processo histórico contínuo. Este uso implica a ontogênese micro-histórica do significado, um processo psicológico embutido na sociabilidade e produtivo dela. Esta abordagem é desenvolvida de modo coerente na obra da autora. Ver, por exemplo, de Toren (1999TOREN, Christina. 1999. Mind, Materiality and History: Explorations in Fijian Ethnography. London: Routledge . , 2013TOREN, Christina. 2013. “Imagining the world that warrants our imagination: the revelation of ontogeny”. In: N. J. Long & H. Moore (eds.), Sociality: New Directions. Oxford: Berghahn Books. pp. 43-59. , 2017TOREN, Christina. 2017. “The evanescence of experience and how to capture it”. In: J. H. Z Remme & K. Sillander (eds.), Human Nature and Social Life: Perspectives on Extended Sociality. Cambridge: Cambridge University Press . pp. 26-40. ). Para uma discussão mais detalhada, ver McCallum (2023MCCALLUM, Cecilia. 2023. “Gender, Sociality and the Person”. In: C. McCallum; S. Posocco & M. Fotta (orgs.), Cambridge Handbook of the Anthropology of Gender and Sexuality. Cambridge: Cambridge University Press . pp. 155-183.).

Editado por

Editora-Chefe:

María Elvira Díaz Benítez

Editor Associado:

John Comeford

Editora Associada:

Adriana Vianna

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    24 Abr 2021
  • Aceito
    19 Fev 2024
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