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Infestação por Pediculus humanus (Anoplura: Pediculidae) no Município de São Paulo, SP, Brasil

Infestation by Pediculus humanus (Anoplura: Pediculidae) in a metropolitan area of Southeastern Brazil

Resumos

Adultos, ninfas e lêndeas da espécie Pediculus humanus foram encontrados em barraco, infestando roupas de cama e vestes de três habitantes em uma favela na cidade de São Paulo, Estado de São Paulo, Brasil. Lêndeas, num total de 198, foram encontradas aderidas em 15,0 cm² de fibras de vestes infestadas, dando uma média de 13,2 por cm². Dada a freqüência em diversas cidades do Brasil, de precárias condições de vida, promiscuidade, ausência de saneamento básico e negligência das autoridades sanitárias tal ocorrência poderá ser maior do que um simples caso isolado.

Pediculus; Pediculose; epidemiologia


Adults, nymphs and nits of the Pediculus humanus were found in a frame-house infesting the clothes and bedding of three inhabitants in a shanty town in S. Paulo county, S. Paulo State. A total of 198 nits were found glued in 15.0 cm² of fibres of the infested clothing, giving a ratio of 13.2 nits/cm². Having in view that the precarious living conditions, promiscuity, absence of basic sanitation and negligence of the sanitary authorities in various Brazilian cities, this situation should not be underestimated. This find should be more frequent than an isolated observation.

Pediculus; Pediculosis; epidemiology


Infestação por Pediculus humanus (Anoplura: Pediculidae) no Município de São Paulo, SP, Brasil

Infestation by Pediculus humanus (Anoplura: Pediculidae) in a metropolitan area of Southeastern Brazil

Pedro Marcos Linardi, José Maria Soares Barata , Paulo Roberto Urbinatti,

Doralice de Souza, José Ramiro Botelho e Mário De Maria

Departamento de Parasitologia, Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Belo Horizonte, MG - Brasil (P.M.L., J.R.B.); Departamento de Epidemiologia da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo. São Paulo, SP - Brasil (J.M.S.B., P.R.U.); Vigilância Epidemiológica da Secretaria de Estado da Saúde. São Paulo, SP - Brasil (D.S.); Departamento de Zoologia do Instituto de Ciências Biológicas da UFMG. Belo Horizonte, MG - Brasil (M.M.).

Resumo Adultos, ninfas e lêndeas da espécie Pediculus humanus foram encontrados em barraco, infestando roupas de cama e vestes de três habitantes em uma favela na cidade de São Paulo, Estado de São Paulo, Brasil. Lêndeas, num total de 198, foram encontradas aderidas em 15,0 cm2 de fibras de vestes infestadas, dando uma média de 13,2 por cm2. Dada a freqüência em diversas cidades do Brasil, de precárias condições de vida, promiscuidade, ausência de saneamento básico e negligência das autoridades sanitárias tal ocorrência poderá ser maior do que um simples caso isolado. Pediculus. Pediculose, epidemiologia. Abstract Adults, nymphs and nits of the Pediculus humanus were found in a frame-house infesting the clothes and bedding of three inhabitants in a shanty town in S. Paulo county, S. Paulo State. A total of 198 nits were found glued in 15.0 cm2 of fibres of the infested clothing, giving a ratio of 13.2 nits/cm2. Having in view that the precarious living conditions, promiscuity, absence of basic sanitation and negligence of the sanitary authorities in various Brazilian cities, this situation should not be underestimated. This find should be more frequent than an isolated observation. Pediculus. Pediculosis, epidemiology.

Na família Pediculidae, duas espécies infestam o homem: Pediculus humanus Linnaeus (piolho do corpo) e Pediculus capitis De Geer (piolho da cabeça). Morfologicamente, podem elas ser separadas pelo tamanho, coloração e proporção entre determinadas estruturas anatômicas do corpo (Busvine1, 2, 1966, 1969). A principal diferença entre as duas espécies é o seu habitat. O piolho de cabeça deposita os ovos junto à base dos cabelos, enquanto o do corpo nas fibras e dobras internas das vestes, especialmente ao longo das linhas de costura (Busvine1, 1966). De um modo geral, a infestação dos indivíduos parasitados está estratificada por grupos etários: P. capitis ocorre preferencialmente em crianças e jovens em idade escolar e P. humanus em pessoas de idade mais avançada (Linardi e col.10, 1989). Embora as duas espécies sejam cosmopolitas, a infestação por P. humanus é menos constatada nos países industrializados, onde a lavagem e troca do vestuário é hábito freqüente. Não é o caso de P. capitis, cujo recrudescimento nos últimos 25 anos tornou-se um sério problema de saúde pública em todo o mundo (Sholdt e col.12, 1979).

No Brasil, os estudos sobre pediculose até então realizados referem-se à prevalência e epidemiologia de P. capitis (Linardi e col.7-10, 1987, 1988, 1989), não obstante outros ensaios tenham sido conduzidos visando, exclusivamente, a verificar a ação da decametrina em amostragens de crianças previamente selecionadas (Patrus e col.11, 1983; Curiati3, 1984).

Em 12/06/91 foi notificada ao Centro de Saúde Jardim Sinhá, bairro Sapopemba, São Paulo/SP, pertencente ao ERSA-3 da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo, a ocorrência de piolhos no interior de um barraco na favela do Jardim Sinhá, em todas as dependências, no corpo do morador e dos filhos menores. Formou-se uma equipe, constituída pelo pessoal de entomologia, um médico pediatra, uma enfermeira sanitarista e uma enfermeira visitadora da vigilância epidemiológica do ERSA-3 que, por duas ocasiões, respectivamente, em 19/06/91 e 11/07/91, inspecionaram o local. Constatou-se, nas primeiras visitas, que a família — formada pelo pai, ex-motorista com 58 anos e dois filhos menores, um menino e uma menina com, respectivamente, 13 e 7 anos — morava há seis anos em um barraco de dois cômodos, em precárias condições de higiene (Figura 1). Embora abastecido com energia elétrica, o barraco não dispunha de água, nem de dependências sanitárias. O adulto não possuía emprego e nem renda fixa; as crianças não freqüentavam a escola. Os filhos, apresentando peso e estatura abaixo dos padrões da normalidade, exibiam um quadro clínico sem anemia, porém com sinal de desnutrição de primeiro e segundo graus. Ambos apresentavam lêndeas e piolhos na cabeça, sendo que a menina, com maior infestação especialmente na região occipital, denotava escoriações e queratoses no couro cabeludo. As roupas que vestiam na ocasião não exibiam qualquer indício de infestação. O adulto, de aparência normal, exibia uma ferida em cicatrização na perna esquerda, na região acima do tendão de Aquiles e por ele referida como "traumatismo domiciliar". Entretanto, apresentava escoriações eczematosas, queratoses e pele com evidente ressecamento na região lombar e nas cinturas escapular e pélvica. As roupas, que vestia no momento, estavam infestadas com lêndeas viáveis e eclodidas, bem como por piolhos adultos e formas imaturas.

DataColetaLocalPediculus capitisPediculus humanusTotalMFNLTMFNLTMFNLT13/6/1991ERSA 3Roupas de cama + colchão-----10115-2610115-2619/6/1991FSP/USPVestes (camiseta) + roupas de cama11-- 2 5 31- 9 6 41-11 Cabeça menina A. L.-5-1217------ 5-121711/7/1991FSP/USPRoupas de cama -1-- 1------ 1-- 1 Vestes (casaco) --------++---++Total 17-1220 15146+35162161255 M= Macho F= Fêmea N= Ninfa L= Lêndeas T= Total + = Inúmeras lêndeas

Tabela - Data de coleta, locais de infestação e espécies de Pediculidae em barraco em favela do Jardim Sinhá, São Paulo, SP, Brasil.

Table - Collection dates, infested places and Pediculidae species in a frame-house in Jardim Sinhá shanty town, S. Paulo, SP, Brazil.

Figura 1 -
Barraco de madeira com pessoas e roupas infestadas por Pediculus humanus.
Figure 1 - Inhabitants' clothes and bedding in a wooden frame-house infested by Pediculus humanus.

Amostras de piolhos recolhidas das vestes e das roupas de cama dos portadores e da cabeça da menor A. L., bem como fragmentos de vestes contendo lêndeas, foram enviadas, acondicionadas em álcool 70o, para identificação. Em três fragmentos de vestes (tipo esportivo) medindo 6 cm X 0,9 cm; 4,8 cm X 1,0 cm e 6 cm X 0,8 cm foram contadas, respectivamente, 66, 75 e 57 lêndeas cimentadas junto às fibras das dobras internas (Figuras 2 e 3), o que corresponde a um número médio de 12,22; 15,62 e 11,87 lêndeas por cm2, respectivamente. Conseqüentemente, o número médio global de lêndeas por cm2 de fragmento foi de 13,2. As espécies de Pediculidae identificadas na amostragem, bem como sua distribuição quantitativa por sítios de infestação são apresentadas na Tabela.

Ainda que a prevalência de Pediculus humanus seja maior nos países de clima temperado e frio, devido ao uso de indumentária mais agasalhada, menor freqüência de trocas de roupas e raridade de banhos, a sua ocorrência está praticamente limitada a populações com forma de vida gregária, em caráter de promiscuidade (penitenciárias, asilos, manicômios, instituições de caridade, soldados em campanha e outros) ou, ainda, entre mendigos e vagabundos. Na India, Haiti e col.5 (1974) assinalaram uma prevalência de 41,34% para P. capitis e 9,74% para P. humanus, além de 5,41% para duplas infestações, nas áres de Joshimath e Badrinath, concluindo que, quanto maior a altitude, maior o índice de infestação. Na Etiópia, Sholdt e col.2 (1979) inspecionando 2.435 pessoas, de 49 diferentes cidades e/ou localidades, encontraram índices de infestação de 24,4% e 59,1%, respectivamente, para P. capitis e P. humanus. Em uma amostragem de 698 prisioneiros de 23 cidades, os mesmos autores constataram uma prevalência de 11,0% para P. capitis e 75,5% para P. humanus.

Embora com os presentes dados não seja possível estimar a prevalência das espécies ocorrentes, foi possível verificar que lêndeas, ninfas e/ou adultos de P.humanus foram encontrados nas roupas de cama, colchão e vestes dos três habitantes, e P. capitis (adultos e lêndeas), na cabeça da menina A. L. e em vestes e roupas de cama. Os dados indicam ainda que transcorridos 22 dias após a segunda inspeção à habitação e conseqüente atendimento profilático elementar aos infestados (informações sobre métodos de controle natural, lavagens do corpo e de vestes com sabonete de benzoato de benzila), um adulto e lêndeas viáveis continuaram a ser encontradas, respectivamente, em roupas de cama e nas vestes dos moradores. Embora o potencial biótico de reprodução para P. humanus seja conhecido (longevidade, freqüência de oviposturas, número de ovos em cada postura), nenhum estudo, até o presente, procurou relacionar o número de ovos por superfície infestada. O número médio de 13,2 lêndeas por cm2 pode, portanto, balizar futuras investigações no que concerne à capacidade proliferativa desses insetos, sobretudo após programas de controle.

Figura 2 -
Pediculus humanus (adulto fêmea) em roupa do indivíduo infestado.
Figure 2 - Pediculus humanus (female adult) in infested inhabitant's clothes.
Figura 3 -
Manga de casaco tipo Adidas, exibindo lêndeas de Pediculus humanus cimentadas às fibras da costura interna.
Figure 3 - "Adidas" coat sleeve showing Pediculus humanus nits glued to internal threads of seams.

A pediculose do corpo é a infestação do homem por P. humanus, acompanhada por prurido, irritação e escoriações da pele que conduzem a infeções secundárias. Infestações prolongadas provocam um espessamento e pigmentação da epiderme, algumas vezes descritas como melanodermia ou doença dos vagabundos (Weidhass e Gratz13 , 1982). O quadro clínico apresentado pelo morador da habitação é típico de melanodermia.

Desde que, até o momento, não há no País qualquer relato sobre infestação por piolhos do corpo, a presente nota registra os primeiros casos. Considerando que: a) o controle das pediculoses no Brasil, quando preconizado, está restrito apenas a organismos municipais de saúde pública (Linardi e col.10, 1989); b) a infestação por P. humanus não se restringe apenas ao indivíduo, estendendo-se pelos colchões, roupas íntimas e de cama; c) a transmissão dessa espécie de um a outro indivíduo se processa tanto por contágio direto, como indireto (fômites); d) P. humanus é reconhecido vetor de graves etiologias, propõe-se que a vigilância e o controle da pediculose do corpo requeiram maior atenção por parte das autoridades sanitárias, estabelecendo-se programas profiláticos seguros que deverão incluir despiolhamento, com conseqüente aplicação de inseticidas não resistentes em ambiente domiciliar.

AGRADECIMENTOS

À equipe técnica do Centro de Saúde Jardim Sinhá, aos diretores do Serviço de Vigilância Epidemiológica da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, pela colaboração prestada durante a realização deste trabalho e à Faculdade de Saúde Pública pelos serviços de fotografia.

Correspondência para/Correspondence to: José Maria Soares Barata - Av. Dr. Arnaldo, 715 - 01246-904 São Paulo, SP - Brasil. E-mail: jmsbarat@usp.br

Edição subvencionada pela FAPESP (Processo nº 97/09815-2).

Recebido em 29.5.1996. Reapresentado em 10.7.1997. Aprovado em 21.8.1997.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Ago 2001
  • Data do Fascículo
    Fev 1998

Histórico

  • Aceito
    21 Ago 1997
  • Revisado
    10 Jul 1997
  • Recebido
    29 Maio 1996
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