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Carolina

CAROLINA 1 1 Discurso proferido durante a entrega do título de Professor Emérito pela Universidade de São Paulo a Carolina M. Bori, em 1994, no Salão Nobre do Instituto de Psicologia da USP.

Sylvia Leser de Mello

Instituto de Psicologia - USP

Sinto-me honrada e muito emocionada, pela primeira vez no cargo de Diretora do Instituto de Psicologia, ao entregar o título de professora Emérita à Doutora Carolina Bori e poder dar às minhas palavras de afeto um caráter público. Sei que outros irão falar de suas realizações no campo da institucionalização dos cursos e da pesquisa em Psicologia. Por isso estou à vontade para falar da Carolina, carinhosamente, como sua orientanda. Em 1970 muitas coisas aconteceram na e para a Universidade de São Paulo. A criação do Instituto de Psicologia, saído da Faculdade de Filosofia, respondeu a novos princípios impostos à USP pela reforma universitária. Mas o momento não era, apenas, do desmembramento da Faculdade de Filosofia. Em alguns setores a Universidade ressentia-se fortemente do afastamento e da perseguição a professores, Mestres, compulsoriamente "aposentados" pelo governo militar. Não era, também, e apenas, a expulsão de professores que marcava aquele momento da vida universitária. Dentro da Universidade vivíamos o fracionamento simbólico do país como uma verdadeira guerra civil, mantida pelo servilismo político e pelo terror militar.

A Universidade teve a sua quota de vítimas, algumas fatais. Carolina e a Universidade de Brasília também foram atingidas pela cegueira bruta do totalitarismo. Fui uma vítima menor desse momento, deslocada do meu lugar como professora e, ao final de um processo longo de preparação do doutorado, impossibilitada de concluí-lo por não ter mais à disposição o material da pesquisa.

Às vezes brincamos ao dizer que a orientação é quase uma relação materna, sobretudo quando se trata de trabalhos nas áreas das ciências humanas onde, com freqüência, os problemas sob exame não estão longe de constituir parte das dificuldades vitais do orientando. Assim foi comigo. De repente vi-me órfã com o afastamento de minha orientadora. Carolina recebeu-me, ainda antes da criação do novo Instituto, não sendo, porém, minha madrasta mas sim a madrinha delicada que eu então necessitava. Juntas pudemos descobrir um caminho diferente para o doutorado.

Tínhamos todos, àquela época, problemas demais para enfrentar e estávamos sensibilizados pela violência institucional que tomara conta do país. Eu não conhecia a Carolina quando vim procurá-la e nunca poderei esquecer o acolhimento que ela me dispensou, dando-me do seu tempo e de sua disposição para permitir-me encontrar tempo e disposição a fim de começar um novo trabalho de pesquisa. Penso que se não fosse pela amizade com que Carolina ofereceu-me seu apoio eu nunca poderia retomar o doutorado.

Aqueles eram anos sombrios e nesses anos, em que tantos se perdem e perdem o rumo dos valores essenciais à convivência dos homens, gestos como o de Carolina são simbólicos. Eles valem para lembrar que mesmo quando as circunstâncias representam uma derrota do humanismo é possível vivê-las com dignidade e companheirismo e imprimir às nossas relações uma dimensão maior de respeito pelo outro, ajudando a superar as trevas do quotidiano, carregado de medo, rancor e repressão. Hoje é, pois, por todos os motivos, um dia de júbilo, não só porque homenageamos pela primeira vez um membro do corpo docente do nosso Instituto com o título de Professor Emérito, mas porque essa honra coube à Carolina Bori, colega sempre presente, amiga na necessidade.

Sei que não fui a única pessoa a receber a sua ajuda cordial e que a muitos ela abriu caminhos sem esperar recompensa. Por todos os outros e por mim, embora tantos anos já tenham se passado, muito obrigada, Carolina, por uma lição inesquecível.

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    Discurso proferido durante a entrega do título de Professor Emérito pela Universidade de São Paulo a Carolina M. Bori, em 1994, no Salão Nobre do Instituto de Psicologia da USP.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Nov 1998
    • Data do Fascículo
      1998
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