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Sobre Análise do Relato Verbal

Resumos

Neste artigo caracterizamos descritivamente aspectos básicos de um trabalho coordenado pela Professora Carolina Bori, junto ao Ciclo Básico da Universidade Federal de São Carlos, em 1977, trabalho este que desencadeou duas vertentes de pesquisa no Brasil: uma no âmbito do ensino de Química e a outra no âmbito da pesquisa com relatos verbais em Psicologia. Descrevemos, em seguida, as principais características de cada uma dessas vertentes, em termos das questões que as originaram e dos primeiros trabalhos que daí resultaram. Finalmente, contextualizamos a contribuição da abordagem ao relato verbal assim construída para a pesquisa em psicologia, especialmente à luz de colocações de Vygotsky sobre o papel dos relatos verbais na pesquisa experimental.

Relatos verbais; Métodos de ensino; Análise do discurso; Análise de conteúdo; Vygotsky, Lev Semenovich, 1896-1934


This paper describes the basic aspects of the work developed under the supervision of Professor Carolina Bori at the Preparatory Course in the Universidade Federal de São Carlos in 1977, which brought about two new lines of research in Brazil. The first line of research had to do with the teaching of Chemistry at the university level, and the second line dealt with a new procedure in Psychology to collect and analyse verbal reports. The main characteristics of each line are described, as well as the questions that led to them and their preliminary results. The contributions of this new approach to verbal reports are analysed within the realm of research in Psychology, particularly under the light of Vygotsky’s propositions about the role of verbal reports in experimental research.

Verbal reports; Teaching methods; Discourse analysis; Content analysis; Vygotsky. Lev Semenovich, 1896-1934


SOBRE ANÁLISE DO RELATO VERBAL

Elizabeth Tunes

Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília

Lívia Mathias Simão

Instituto de Psicologia - USP

Neste artigo caracterizamos descritivamente aspectos básicos de um trabalho coordenado pela Professora Carolina Bori, junto ao Ciclo Básico da Universidade Federal de São Carlos, em 1977, trabalho este que desencadeou duas vertentes de pesquisa no Brasil: uma no âmbito do ensino de Química e a outra no âmbito da pesquisa com relatos verbais em Psicologia. Descrevemos, em seguida, as principais características de cada uma dessas vertentes, em termos das questões que as originaram e dos primeiros trabalhos que daí resultaram. Finalmente, contextualizamos a contribuição da abordagem ao relato verbal assim construída para a pesquisa em psicologia, especialmente à luz de colocações de Vygotsky sobre o papel dos relatos verbais na pesquisa experimental.

Descritores: Relatos verbais. Métodos de ensino. Análise do discurso. Análise de conteúdo. Vygotsky, Lev Semenovich, 1896-1934.

Origens

Em 1977, a Professora Carolina Bori dirigia o Centro de Educação e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Carlos. Naquele momento, a Universidade defrontava-se com problemas no ensino de graduação, especialmente no que se chamava, à época, Ciclo Básico, na área das Ciências Exatas. A pedido do Reitor, Dr. Luis Edmundo de Magalhães, ela se propôs a coordenar ações visando à melhoria dos padrões de ensino nas disciplinas básicas. Para tanto, organizou um grupo de trabalho com docentes do centro que dirigia. A principal tarefa desse grupo era a proposição de procedimentos que orientassem os professores do Ciclo Básico na descrição e análise de problemas de ensino existentes nas disciplinas que ministravam (Bori, Botomé, De Rose & Tunes, 1978).

Foram planejadas, assim, reuniões semanais para as quais foram convidados os professores do Ciclo Básico, que, em sua grande maioria, participaram dos encontros realizados, demonstrando, desse modo, sua disposição para o empreendimento proposto. O grupo de trabalho formado pela Professora Carolina tinha como objetivo promover e orientar discussões dos professores acerca dos problemas de ensino que enfrentavam; portanto, a questão que o norteava era: "Quais são os problemas de ensino nas disciplinas básicas?" Em cada reunião, as informações, comentários e opiniões dos professores eram anotados por vários membros do grupo de trabalho. Posteriormente, as anotações eram cotejadas, analisadas e sistematizadas de maneira a compor um quadro de referência para a discussão seguinte. Nessa sistematização, o grupo tomava como eixo as falas dos professores que se referiam a características de desempenho dos alunos, separando-as de outras que diziam respeito a possíveis causas de desempenhos, propostas de solução etc. O resultado dessa análise era apresentado aos professores sob a forma de um caderno onde todas as suas falas eram dispostas conforme o conteúdo a que se referiam, de modo a orientá-los a identificarem e formularem os elos lógicos entre suas idéias. A adoção dessa estratégia foi decorrente do fato de ter-se percebido que, nas discussões, era muito freqüente os professores apontarem causas e proporem soluções para problemas de ensino que não estavam caracterizados ou sequer identificados.

Assim, a cada encontro, os professores recebiam um caderno contendo tudo o que falaram em reuniões anteriores, sendo solicitados a corrigir, completar ou mesmo modificar o que haviam dito, buscando tornar cada vez mais claras as relações que se estabeleciam entre as idéias que formulavam. Ao cabo de algumas reuniões, foi possível chegar a uma caracterização dos problemas de ensino nas disciplinas do Ciclo Básico, identificando-se algumas de suas causas e reconhecendo-se perspectivas de ação para os professores envolvidos. Estando os professores, agora, instrumentalizados para procederem, autonomamente, nas disciplinas, às modificações necessárias à melhoria dos padrões de ensino, desfez-se, então, o grupo de trabalho.

Antes de falarmos sobre esses desenvolvimentos posteriores, vale lembrar que nessa época (meados da década de 70), vivíamos a plenitude do regime militar iniciado em 1964 que, como todos sabemos, criou mecanismos de controle e cerceamento bastante fortes de discussões e participação no âmbito das universidades brasileiras. Hoje, poderia parecer trivial que se focalizassem nos próprios professores as iniciativas e os esforços de reflexões e mudanças na estrutura e nas práticas de ensinar. Porém, não era esse o cenário da época. Em 1968, foram impostos ao ensino universitário brasileiro uma estrutura e um modo de funcionar impeditivos de qualquer prática democrática na construção do saber científico, a despeito de veementes protestos da comunidade de docentes e alunos. Protestos que, como todos sabemos, dirigiam-se a essas e outras imposições e que chegaram a custar vidas. Naquele cenário, pois, as discussões e as participações coletivas na vida universitária não somente eram desencorajadas como, em geral, desenvolviam-se numa atmosfera de medo. A idéia de propiciar, encorajar e garantir a participação ativa dos professores no trabalho do Ciclo Básico da UFSCar deve ser vista como parte de iniciativas que, à época, tentavam fazer ressurgir um ambiente dinâmico, vivo, de intenso envolvimento dos atores na vida institucional do país. Esta iniciativa estava, pois, fundamentalmente consonante com as várias formas de atuação da Professora Carolina Bori, através das quais ela se mantém continuamente ligada a seu compromisso com a participação democrática.

Desenvolvimentos na pesquisa em ensino de Química e Ciências

Imediatamente após o encerramento dos trabalhos referentes às disciplinas do Ciclo Básico, um grupo de professores do Departamento de Química que participara das reuniões manifestou o seu desejo de continuar a poder contar com orientações para proceder à reformulação da disciplina Química Geral Experimental. Com a mesma metodologia empregada anteriormente, os professores foram assessorados na definição de objetivos e estratégias de ensino, bem como na elaboração do material didático que seria usado junto aos alunos (Dal Pian, De Rose & Tunes, 1978). A nova proposta para a disciplina foi aplicada e reformulada várias vezes, de 1978 a 1984, resultando, finalmente, na publicação de um livro (Silva, Bocchi & Rocha-Filho, 1990) que tem sido utilizado em cursos de graduação de Química de várias universidades brasileiras.

As duas iniciativas mencionadas acabaram por propiciar a constituição de um grupo de pesquisa sobre o ensino de Química, na Universidade Federal de São Carlos, cujas ações estenderam-se à reformulação do currículo do curso de graduação e do programa do vestibular para a Química, na Universidade Federal de São Carlos (Senapeschi, Mendes, Rodrigues, Bocchi, Silva & Rocha-Filho, 1985; Senapeschi, Tolentino, Silva & Rocha-Filho, 1988; Silva, Botomé & Souza, 1986; Silva, Marques, Senapeschi & Rocha-Filho, 1986; Silva, Rocha-Filho, Senapeschi & Tolentino, 1989; Tolentino, Silva, Rocha-Filho & Senapeschi, 1988).

O grupo de pesquisa constituído por professores de Química e de Psicologia também realizou estudos ligados ao ensino médio, à compreensão do papel da aula expositiva no ensino de Química e ao ensino de conceitos químicos (Bori et al., 1980a, 1980b; Nogueira et al., 1981; Rocha-Filho, Tunes, Tolentino, Silva & Souza, 1988; Silva, Rocha-Filho, Tunes & Tolentino, 1986; Silva, Tunes, Simão & Bori, 1981; Tolentino, Silva, Rocha-Filho & Tunes, 1986; Tunes, Tolentino, Silva, Souza & Rocha-Filho, 1989).

Em 1991, a mesma metodologia foi empregada para implantar o Projeto Integração Universidade-Escola, no Laboratório de Pesquisas em Ensino de Química, do Departamento de Química, Universidade de Brasília, com o objetivo de prestar assessoria a professores de Química e de Ciências do ensino médio e fundamental das redes oficial e privada do Distrito Federal, a partir de uma investigação dos tipos de problemas que viviam em sua prática pedagógica (Mello, 1993; Mello, Tunes & Silva, 1996).

Esse projeto encontra-se em atividade até o momento e tornou-se um pólo importante de aperfeiçoamento de professores e de preparação de estudantes universitários para a docência e a pesquisa sobre o ensino da Química e das Ciências, no âmbito da Universidade de Brasília.

Os estudos sobre o ensino de Química e de Ciências aqui referidos tiveram, por sua vez, os seus desdobramentos. O volume, a qualidade e, especialmente, os efeitos dos trabalhos produzidos, efeitos esses que se traduziram em mudanças importantes até mesmo de cunho institucional na organização do ensino de Química, permitem-nos afirmar que foi criada uma tradição particular de pesquisa nessa área. Uma tradição profícua tanto na geração de novos conhecimentos quanto na formação, preparação e aperfeiçoamento de pessoal para a atividade científica e de docência.

Em síntese, na esfera do ensino de Química e de Ciências, a metodologia de análise dos relatos verbais, ao permitir um conhecimento útil, mostrava-se profícua no sentido de desencadear diversas ações e estratégias voltadas, principalmente, para o trabalho com professores e colaborando para uma efetiva melhoria da qualidade do ensino.

Vale ainda ressaltar o caráter coletivo que a Professora Carolina Bori imprimiu aos trabalhos que coordenou, caráter esse da maior importância política e que se perpetuou na tradição por ela forjada. Particularmente no âmbito acadêmico-científico, a demonstração concreta da possibilidade de diálogo produtivo da Psicologia com outras áreas de conhecimento teve como conseqüência o aumento tanto na amplitude do domínio de ação da Psicologia, como na amplitude do "sentido de interdisciplinaridade" para os pesquisadores que com ela trabalharam. Este último aspecto se evidencia claramente nas origens dos desdobramentos em Psicologia, que passaremos a expor.

Desenvolvimentos na pesquisa com relatos verbais em Psicologia

A partir de reflexões sobre o trabalho no Ciclo Básico da Universidade Federal de São Carlos, observou- se que o então recém - elaborado procedimento de coleta, análise e sistematização de relatos verbais poderia trazer contribuições valiosas para a pesquisa básica em processos psicológicos humanos, uma vez que parecia permitir acesso e transformação em processos subjetivos dos participantes de pesquisa. Surgiram, a partir daí, duas questões interrelacionadas. A primeira delas dizia respeito a como se davam o acesso e as transformações em processos subjetivos dos participantes. A segunda dizia respeito a se o procedimento poderia também gerar informações relevantes sobre outros problemas, em diferentes contextos de pesquisa.

Essas duas questões, em seus vários desdobramentos, nortearam uma série de pesquisas implementadas e/ou orientadas pela Professora Carolina, e acabaram por gerar, ao longo dos anos, novas linhas de pesquisa no Brasil, que são atualmente desenvolvidas por docentes-pesquisadores e seus orientandos, em diversos núcleos universitários do país. Abordaremos aqui, a título de ilustração, os três primeiros trabalhos orientados pela Professora Carolina na perspectiva daquelas duas questões. O primeiro estudo empreendido nessa direção resultou numa tese de doutorado orientada pela Professora Carolina Bori e defendida no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (Tunes, 1981). Nesse trabalho, a pesquisadora procurou demonstrar que o novo procedimento desenvolvido para coleta, análise e sistematização do relato verbal permitia um conhecimento cientificamente válido sobre fenômenos particulares do sujeito, isto é, sobre acontecimentos de natureza privada, aos quais somente o sujeito tinha acesso. Sua finalidade era investigar a natureza e a origem das dificuldades de alunos de pós-graduação para formularem problema de pesquisa.

Nesse trabalho, uma das tarefas, de natureza teórica, foi a demonstração de que era necessário e possível tomar relatos verbais como dados, dentro da ótica da análise experimental do comportamento (Tunes, 1984). Definindo como eixo analítico do comportamento verbal o significado que, conforme Skinner (1978), é algo que está fora do comportamento e é dele inferido, a pesquisadora demonstrou que o uso de relatos verbais como dados a respeito de processos privados é uma questão que "diz respeito ao grau de confiabilidade e precisão das inferências feitas e não à inacessibilidade do evento. Portanto, a questão é de natureza empírica." (Tunes, 1984, p.7). Assim, admitindo que os alunos não eram analistas nem observadores de si próprios, a pesquisadora procurou mostrar que aquela particular maneira de tratar o relato verbal permitia-lhe identificar as dificuldades que os alunos apresentavam para formular problema de pesquisa. Como resultado, o trabalho evidenciou que a identificação das mencionadas dificuldades dos alunos constituía-se num processo de natureza psicológica, processo este apenas indiretamente acessível ao pesquisador, por meio da fala dos sujeitos, já que o processo não é relatável pela pessoa que o tem, embora somente esta tenha acesso às informações sobre ele (Engelmann, 1969, 1979, 1983, 1985).

Construindo um sistema de classes de conteúdo verbal que possibilitava descrever o relatado nos relatos, por meio das suas relações de significado, a pesquisadora verificou que o procedimento adotado para coleta, análise e sistematização do relato verbal permitia inferir, de modo sistemático, as dificuldades dos alunos, bem como o processo de sua solução. Desse modo, viabilizou-se o conhecimento sobre um processo de solução de problema (um processo de pensamento, portanto) que coincidia, exatamente, com a gênese de um problema de pesquisa.

A identificação inferencial das relações de significado entre os conteúdos das falas dos participantes permitiu os resultados resumidos a seguir. Dada uma situação em que o participante reconhece defrontar-se com um problema que estará solucionado quando houver formulado seu problema de pesquisa, conhecendo, portanto, a solução daquele problema, mas não o modo de chegar até ela, isto é, reconhecendo que existem "dificuldades", ele atinge a solução dadas as condições planejadas e apresentadas pelo pesquisador. Num primeiro momento desse processo, ele verbaliza sobre vários aspectos relacionados ao seu problema. Seus enunciados, todavia, evidenciam a existência de relações "psico-lógicas" entre os conteúdos específicos dos relatos. Isto é, o participante estabelece relações entre condições concretas de sua experiência acadêmica, ou que giram em torno dela, mas que não pertencem ao domínio das relações lógicas características do sistema de conceitos que descreve o que se define como problema de pesquisa, sendo, portanto, circunstanciais a tal sistema. São poucas e precárias as relações lógico-verbais existentes entre os conteúdos de sua fala. Num segundo momento, emergem ações precursoras à solução do problema, concomitantemente ao fato de começarem a esboçar-se relações lógico-verbais entre os conteúdos de sua fala. Ao mesmo tempo, começam a desaparecer de seu discurso as verbalizações cujos conteúdos não se apresentam interrelacionados de maneira lógica. Finalmente, deixam de ocorrer ações precursoras. Nesse ponto, o discurso do participante apresenta-se encadeado quase que exclusivamente por relações lógico-verbais; atingiu-se, então,a solução do problema. Assim, foi possível ao pesquisador constatar que as ações precursoras são indicativas de início e término do processo. O processo descrito é psicológico; o produto resultante é de natureza lógico-verbal. Requerem, portanto, parâmetros analíticos diferentes.

As questões mencionadas ao início desta seção foram também examinadas em outros dois estudos. O primeiro deles foi uma dissertação de mestrado, realizada sob orientação da Professora Carolina Bori e apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (Simão, 1982a, 1982b, 1982c, 1986). Teve como objetivo descrever relações professor-aluno segundo controles comportamentais que nelas atuavam.

As relações professor-aluno foram tomadas enquanto relações sociais, no sentido weberiano do termo (Weber, 1944), de modo que os comportamentos da professora e dos alunos foram entendidos como sendo função de duas ordens de ocorrências: aquelas observáveis e atuantes no momento das interações, e aquelas não observáveis e anteriores às interações. Para ter acesso a esta última ordem de ocorrências - que justamente era a que mais interessava, pela escassez de estudos que a consideravam, àquela época - foi utilizado um procedimento de coleta, sistematização e análise de relatos verbais diretamente derivado do trabalho original de Bori, Botomé, De Rose & Tunes (1978) e do trabalho de Tunes (1981).

A partir da análise dos relatos da professora assim coletados e sistematizados, a pesquisadora pode inferir sobre controles comportamentais presentes nas relações de ensino-aprendizagem da professora com seus alunos. Desta forma, o conhecimento produzido assentava-se, em última instância, na perspectiva da professora, que era um dos atores da situação estudada, e que detinha a experiência cotidiana do fenômeno em estudo, por fazer parte dele.

Os conteúdos das classes de relato verbal da professora e as relações entre as classes, obtidas como resultado, permitiram apreender novos aspectos das relações professor-aluno em seu caráter de relações sociais. Estes resultados disseram respeito, portanto, à questão acerca das possibilidades de o procedimento gerar informações relevantes em outros contextos de pesquisa. Entretanto, as classes descritivas das relações professora-alunos foram obtidas como resultado da análise de relatos verbais gerados em um contexto específico, apontando para a questão de como se davam, através do procedimento, o acesso e as transformações em processos subjetivos dos participantes.

A este respeito, foi possível delinear algumas das formas de interação que caracterizaram as atuações da professora e da pesquisadora durante a implementação do procedimento, traduzindo, portanto, a participação da pesquisadora e da professora na geração dos chamados "dados de pesquisa" (Simão, 1982a, 1982b, 1982c, 1986). Dentre essas formas de interação, destacamos aqui os papéis recíprocos de "selecionadora de variáveis relevantes do fenômeno em estudo", desempenhado pela professora, e de "organizadora daquilo que foi selecionado", desempenhado pela pesquisadora. Evidenciava-se, assim, no caso estudado, uma" inversão na complementaridade de papéis", com relação aos papéis tradicionalmente atribuídos ao sujeito e ao pesquisador em grande parte da pesquisa psicológica, à época. Outro aspecto relevante do procedimento, evidenciado nesse trabalho, foi o de que a reapresentação, organizada pela pesquisadora, daquilo que havia sido selecionado pela professora, através de seus relatos, parecia ser a principal via de manutenção da interação entre elas por representar o produto das ações conjuntas de ambas, controladas por diferentes classes de variáveis (Simão, 1986).

Assim, neste trabalho, o exame de alguns aspectos do procedimento de coleta, análise e sistematização de relatos verbais trouxe à tona a questão do conhecimento produzido enquanto construção conjunta de dois atores: a pesquisadora e a professora. Esta última passava, assim, do status de sujeito, isto é, daquele que se submete a um procedimento, para o status de participante da pesquisa. Assim nasceu a problemática do terceiro trabalho que mencionaremos aqui, a título de ilustração. Trata-se de tese de doutoramento, também sob orientação da Professora Carolina Bori, e defendida no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (Simão, 1988, 1989, 1992). Teve como objetivo identificar classes de ações interativas pesquisador-sujeito, bem como sua função na construção de conhecimento sobre um fenômeno que era tema dos relatos do sujeito, durante sessões de coleta de informações planejadas pelo pesquisador. A participante do estudo era uma professora e o fenômeno-tema abordado era a relação desta com os pais de seus alunos. Nesse trabalho a relação pesquisadora-participante foi tomada enquanto um processo psicológico de interação social em que ambas, através do diálogo, construíam conjuntamente os chamados "dados de pesquisa". Nesse contexto, uma das questões mais relevantes era qual o papel de cada uma delas na construção científica, diante de suas diferentes perspectivas.

Conforme mencionamos em outro lugar (Simão, 1992), essa questão, em seu caráter mais amplo e abstrato, toca à relação entre o fato particular e significativo para a pessoa que o experimenta e o detém subjetivamente - a participante - e o significado geral daquele mesmo fato para a pessoa que tenta compreendê-lo cientificamente - a pesquisadora. A questão assim formulada toca, em última instância, ao que Gadamer (1966/1992) considerou como "a pergunta básica da época moderna, caracterizada pela ciência", que é a da "relação que guarda nossa imagem natural do mundo, a experiência de mundo que temos como seres humanos participantes em nossa história vital e em nosso destino vital, com essa autoridade inapreensível e anônima, que é a voz da ciência." (p.213).

Nesse trabalho, a análise das interações verbais durante a implementação do procedimento de coleta de dados permitiu chegar a um sistema de categorias de interação verbal pesquisadora - professora que expressavam como as ações verbais de cada uma delas propiciaram condições para a ocorrência dos relatos verbais da professora sobre o tema da pesquisa (sua relação com os pais dos alunos). Evidenciou-se, assim, que o relato verbal era "uma" das classes de ação verbal da professora, que ocorria sob condições interativas envolvendo outras classes de ações verbais, dela e da pesquisadora. O segundo resultado desse estudo foi a descrição de modificações na natureza cognitiva dos relatos inferenciais da professora, sob as condições do procedimento de coleta de relatos verbais.

O significado destes resultados para a compreensão de processos de construção de conhecimento durante interações pesquisador-participante da pesquisa foram discutidos em termos das acepções de Weber (1944), Mannheim (1946) e Von Cranach (1979), evidenciando-se, dentre outros aspectos, o papel do contexto situacional e das normas na orientação das ações da pesquisadora e da participante, bem como a organização hierárquica característica das ações sociais. Foram também discutidas, em termos das concepções de Vygotsky (1987), Luria (1979) e Engelmann (1983, 1985), como as funções da linguagem se faziam presentes através daquelas classes de interações verbais, propiciando construção conjunta de conhecimento sobre o tema de pesquisa. Aqui é importante notar que o que chamamos atualmente de "ação verbal", seria considerado por Vygotsky na categoria de "reflexo verbal objetivo", sendo um indicador da consciência (Van der Veer & Valsiner, 1996). Assim, as respostas verbais do sujeito às perguntas de um pesquisador indicariam aspectos da consciência do sujeito, relativos àquela experiência. Esses indicadores seriam interpretados por outra pessoa que não o próprio sujeito. Eles o seriam pelo pesquisador (Engelmann, 1983, 1985).

Destacando que os relatos que a participante fazia eram representações de suas ações, a pesquisadora demonstrou que, ao interagirem, ela, pesquisadora, caminhava da representação ao fato, enquanto que a participante caminhava do fato à sua representação. Caminhar interativamente nessas direções era, em realidade, construir e reconstruir conhecimento. Uma vez que o conhecimento se dá pelas funções comunicativa e do significado da palavra, as mudanças que se operavam eram, na verdade, mudanças na relação entre pensamento e palavra.

Cabe mencionar, ainda, que este referencial de interpretação, envolvendo conjuntamente teóricos da ação social e da mediação semiótica, tais como Vygotsky e Weber, está sendo retomado atualmente na literatura internacional como uma das vertentes mais produtivas para se dar conta das complexas relações que envolvem o papel da linguagem nos processos interativos de construção de conhecimento (veja-se, por exemplo, Bronckart, 1995 e Wertsch, 1991). À época em que este trabalho foi desenvolvido (de 1983 a 1987), este enfoque pode ser aventado e delineado graças à orientação rigorosa, porém sempre intelectualmente aberta, da Professora Carolina Bori.

Prospecção

As questões relativas à validade do emprego do relato verbal na pesquisa psicológica são quase tão antigas quanto a própria Psicologia. Elas se esboçam nas críticas feitas à instrospecção e atingem o seu ápice nas primeiras décadas deste século. Negando os fundamentos idealistas desta e, no plano metodológico, a possibilidade de o sujeito ser observador de si mesmo, essas críticas delinearam uma nova trajetória histórica para a Psicologia, mas resultaram num fato curioso:" jogou-se fora a água do banho com o bebê". A instrospecção foi abandonada e com ela desceu aos porões a possibilidade de se operar com o informe verbal dos sujeitos num experimento psicológico.

Houve reações, à época. Ao que tudo indica, entretanto, poucas e, por circunstâncias históricas, relativamente ignoradas. L. S. Vigotski1 1 O seu nome é grafado de fomas diferentes, conforme seu texto tenha sido traduzido diretamente do russo ou do inglês para o português. , um professor russo estudioso da Psicologia, uma dessas vozes, apresenta-se no II Congresso Nacional de Psiconeurologia, em Leningrado, a 6 de Janeiro de 1924, tecendo críticas à reflexologia pelo fato de esta recusar-se a incluir em seus experimentos o informe verbal dos sujeitos. Ele procura demonstrar, em sua fala (Vigotski, 1996)2 2 O artigo baseado na comunicação de Vigotski foi publicado em 1926, em Moscou, sob a redação de K. N. Kornilov (ver Vigotski, 1996, p.3, nota de rodapé). , a importância que teria para a Psicologia objetiva levar em conta os informes e interrogatórios verbais do sujeito, bem como o seu papel num sistema de experimentação rigorosa e cientificamente verificável:

Seria um suicídio para a ciência, dado o enorme papel que a psique - isto é, o grupo de reflexos inibidos - desempenha na estrutura da conduta, renunciar a ter acesso a ela através de um caminho indireto: sua influência em outros sistemas de reflexos (p.13).

Além disto, ele estabelece o divisor de águas com a instrospecção, caracterizando de um outro modo o experimento psicológico. Para fins de nossa argumentação posterior, vale transcrever um trecho mais longo da apresentação de suas idéias:

O próprio interrogatório não consiste em extrair do sujeito suas próprias vivências. A questão é radicalmente distinta em princípio. A pessoa submetida à prova não é a testemunha que declara sobre um crime que presenciou (seu antigo papel), mas é o próprio criminoso e, o que é mais importante, no momento do crime.3 3 Conforme enfatizam Van der Veer e Valsiner (1996, p.54), na perspectiva de Vygotsky, dado que os sujeitos seriam os próprios criminosos no momento em que estão cometendo o crime, confiar em suas declarações seria tolice, mas seria igualmente tolice ignorá-las. Não se trata de um interrogatório depois [grifo do autor] do experimento; é uma parte orgânica, integrante do próprio e não se diferencia em absoluto dele, salvo na utilização dos próprios dados no curso do experimento [grifos nossos].

O interrogatório não é uma superestrutura do experimento, mas o próprio experimento que ainda não terminou e que prossegue [grifos nossos]. Por isso o interrogatório deve ser construído não como uma conversa, um discurso, como o interrogatório de um fiscal, mas como um sistema de excitantes [grifos do autor], em que se tenha a exata medida de cada som e se escolham rigorosamente somente aqueles sistemas de reflexos refletidos, que possam ter no experimento um indubitável valor científico e objetivo.

É por isso que todo o sistema de modificações (a surpresa, o método gradual, etc.) do interrogatório é de grande importância [grifos nossos]. Devem ser criados um sistema e uma metodologia de interrogatório estritamente objetivos, como parte dos excitantes introduzidos no experimento. E é evidente que a instrospecção não organizada, assim como a maioria dos testemunhos, não pode ter valor objetivo[grifos nossos]. É preciso saber o que se irá perguntar. ...

Por conseguinte, impõe-se uma reforma radical na utilização do interrogatório e das instruções e no controle dos testemunhos do sujeito. Afirmo que é possível criar em cada caso individual uma metodologia objetiva que transforme o interrogatório do sujeito num experimento científico rigorosamente exato. (p.15-6).

Vigotski prossegue, argumentando que negar o estudo dos fenômenos subjetivos, psíquicos, é adotar uma posição idealista, a mesma da introspecção, na medida em que estes fazem parte da conduta geral do homem ("A psique não existe fora do comportamento, assim como este não existe sem aquela", grifos do autor, p.24). Nesse momento, então, admite a consciência como um "aparelho de resposta", o "reflexo dos reflexos" ("É consciente o que se transmite na categoria de excitante para outros sistemas e produz neles uma resposta", grifos nossos, p.25)4 4 Esta concepção de Vygotsky sobre a consciência baseava-se fortemente em William James, para quem a consciência era "a experiência da experiência" (Van der Veer & Valsiner, 1996, p.54). e demonstra a necessidade de se fazer o interrogatório do sujeito, de considerar o seu informe verbal ("...os fenômenos subjetivos estão unicamente em meu alcance, somente eu os percebo como excitantes de meus próprios reflexos", grifos nossos, p.25).

Pedimos licença ao leitor para, novamente, transcrever um trecho mais longo:

Falemos claro. Os enigmas da consciência, da psique, não podem ser eludidos como subterfúgios, nem metodológicos nem teóricos. Não se pode fazer rodeios para deixar a consciência de lado. (...) Psicologicamente, a consciência é um fato indubitável, uma realidade primordial e um fato, nem secundário, nem casual, de enorme importância. Ninguém o discute. Podemos adiar o problema, mas não eliminá-lo por completo. Na nova psicologia, as coisas não andarão bem até que nos coloquemos audaz e claramente o problema da psique e da consciência e até que não o resolvamos experimentalmente, segundo um procedimento objetivo. Em que etapa surgem os traços conscientes dos reflexos, qual é seu significado biológico, são perguntas que devemos fazer, e é preciso preparar-se para resolvê-los experimentalmente. O problema depende apenas de formular corretamente a questão e a solução chegará mais cedo ou mais tarde. (...) A reflexologia não abandonará esse estado de primitiva ignorância sobre a psique enquanto se mantiver afastada dela e continuar encerrada no estreito círculo do materialismo fisiológico. Ser materialista em fisiologia não é difícil. Mas provem como sê-lo em psicologia e, se não o conseguirem, continuem a ser idealistas [grifos do autor]. (p.27).

Em 1925, Vigotski (1996) publica o artigo "A consciência como problema da psicologia do comportamento", onde desenvolve com mais detalhes e precisão a sua defesa do uso do relato ver.5 5 Ao final desse artigo, o autor escreve a seguinte nota de rodapé: "O presente artigo já se encontrava na fase de correção das provas quando tomei conhecimento de alguns trabalhos relacionados com esse problema e pertencentes a psicólogos behavioristas. Estes autores propõem e resolvem o problema da consciência de forma próxima às idéias aqui desenvolvidas, como um problema de relação entre reações (cotejar com comportamento comportamento verbalizado)." (p.85). Suas idéias permaneceram algo adormecidas por um longo tempo, devido a circunstâncias históricas da ex-União Soviética pós-revolucionária. A sua reanimação vem ocorrendo recentemente.

Entretanto, segundo o que conhecemos, o problema apontado por ele não vem sendo vigorosamente tratado pela Psicologia, desde então, embora alguns esforços tenham sido empreendidos nesse sentido. Um deles, a nosso ver, se concretizou no procedimento de coleta, análise e sistematização do relato verbal, tal como proposto nos trabalhos desenvolvidos e orientados pela Professora Carolina Bori: uma das soluções necessárias, originais e promissoras para um velho problema da Psicologia. Aqui a pesquisa psicológica com relatos verbais, seu objeto de estudo e o próprio relato verbal são assim concebidos:

1. o relato verbal não é uma superestrutura da coleta de dados da pesquisa, mas parte orgânica e integrante do mesma;

2. o relato verbal permite o estudo de fenômenos subjetivos a que somente o sujeito tem acesso; ele é o representante de parte da consciência do sujeito (Engelmann, 1983);

3. na pesquisa o sujeito não é observador de si mesmo, mas selecionador daquilo que, na sua realidade, ele recorta e relata. Ao pesquisador cabe organizar, inferencialmente, o conteúdo das falas do sujeito, atribuindo-lhes significado, de modo a estabelecer condições para a emergência de novos relatos, isto é, alterações do fenômeno consciente;

4. nessa medida, a participação do pesquisador na pesquisa vincula-se ao processo mais amplo da gênese social da consciência humana;

5. o relato verbal é, ele próprio, utilizado pelo pesquisador para planejar o prosseguimento da pesquisa;

6. o relato verbal é diferente dos informes cotidianos, na medida em que a ação do pesquisador, ao planejar a pesquisa, é orientada para uma meta : ele sabe o que deve perguntar e por que;

7. o relato verbal permite o estudo do fenômeno em seu caráter processual, no momento mesmo de sua emergência e desenvolvimento, ambos intencionalmente provocados pela ação do pesquisador. Por isso, o processo é gradual;

8. a admissão do caráter processual do fenômeno consciente implica a admissão de sua constante mutabilidade e transitoriedade;

9. a pesquisa com relatos verbais não se propõe ao exame da veracidade do que é referido no relato do sujeito, mas à busca de precisão e confiabilidade das inferências feitas pelo pesquisador, na medida em que o fenômeno consciente é forjado na própria implementação do procedimento de coleta, análise e sistematização de informações;

10. a precisão e a confiabilidade das inferências do pesquisador podem ser avaliadas no curso do próprio procedimento, uma vez que é tratado como indício do processo em curso tudo o que é referido no relato. Importa, pois, nessa avaliação, a lógica das relações que o pesquisador vai estabelecendo entre os indícios, no ato mesmo de atribuição de significados ao relatado;

11. a pesquisa com relatos verbais implica admitir, portanto, que a própria pesquisa psicológica com seres humano é de natureza social o que, a propósito, Wundt já admitia (ver, por exemplo, Wundt, 1911);

12. a pesquisa com relatos verbais constitui-se numa situação singular de interação pesquisador-participante, irreplicável, mesmo que se mantenham os mesmos atores dialogando sobre o mesmo fenômeno-tema, dada a transitoriedade do fenômeno consciente em constante desenvolvimento;

13. a pesquisa com relatos verbais permite extrair das interações pesquisador-sujeito os princípios que regem, historicamente, a constituição dos fenômenos conscientes.

Em síntese, podemos dizer que, na concepção aqui exposta, o relato verbal é tomado como representante da consciência dos indivíduos que interagem verbalmente durante o processo de coleta de dados. Por isso, a análise do relato verbal permite o acesso inferencial do pesquisador aos processos subjetivos do participante. Esses processos subjazem à versão da realidade que ele tem para si como relevante, em dado contexto, e sobre a qual ele relata ao pesquisador. O pesquisador, por sua vez, utiliza a análise do relato verbal para planejar o prosseguimento da pesquisa, visando atingir sua meta, que toca ao acesso a processos subjetivos do participante. E, ao assim agir, ele cria condições para o desenvolvimento in loco do fenômeno em estudo.

Estes aspectos se evidenciaram, por exemplo, em um recente estudo (Manzini, 1995) sobre formas de raciocínio de jovens considerados deficientes mentais leves e limítrofes, em que se utilizou um procedimento de coleta de informações derivado do de Bori, Botomé, De Rose e Tunes (1978). A análise dos diálogos pesquisador - participante durante as reuniões mostrou que, através de suas intervenções, o pesquisador colocava aos participantes tarefas com exigências cognitivas tais que lhes oportunizava fazer relatos nos quais estabeleciam relações espaciais e temporais, faziam suposições, explicitavam e resolviam contradições e tiravam conclusões sobre seu processo de profissionalização e sobre suas possibilidades de inserção no mercado de trabalho. Ou seja, pode-se ter acesso aos processos de raciocínio envolvidos nas concepções daqueles jovens sobre aspectos essenciais de suas vidas.

Finalmente, um aspecto dos mais relevantes (e polêmicos) da pesquisa com relatos verbais diz respeito ao fato de ela possibilitar uma análise objetiva dos fenômenos conscientes. Essa questão foi recentemente examinada em um trabalho realizado por Silva (1997). Definindo o significado como unidade molecular para o estudo do pensamento verbal, segundo acepção de Vygotsky (1987), a autora estudou concepções de professores das áreas de Ciências acerca do processo ensino-aprendizagem, buscando identificar os modos como estes articulavam os papéis sociais de professor e aluno e como relacionavam entre si os diversos componentes da situação pedagógica.

Baseou-se na formulação de Vygostky (1987) segundo a qual o sentido é o agregado de todos os fatos psicológicos que emergem na nossa consciência como um resultado da palavra. Partindo da idéia de que ele é constituído de inúmeras zonas diferentes entre si quanto à estabilidade e dentre as quais uma é a do significado, a mais precisa e unificada, a autora demonstra que a interação pesquisador-participante dá-se na circunscrição sentido-significado e que, portanto, a subjetividade própria dos relatos dos participantes contém a dimensão objetiva a que deseja chegar o pesquisador, desfazendo-se, assim, a dicotomia objetivo-subjetivo, tantas vezes recorrida para se tecerem as críticas relativas ao emprego do relato verbal.

Com seus resultados, a autora também pode firmar a conclusão de que os participantes de sua pesquisa não estabeleciam as dicotomias ensinar-aprender, fazer-dizer, teoria-prática. Ao contrário, aquilo que, em suas falas, poderia denotá-las a um observador apressado, eram, na verdade, contradições engendradas nas condições concretas do exercício de sua profissão que se espelhavam em antagonismos entre o vivido e o desejado. Ao serem desfeitas as dicotomias fazer-dizer, objetivo-subjetivo, tornam-se ainda mais promissoras as perspectivas da utilização do relato verbal como dado de pesquisa.

TUNES, E.; SIMÃO, L.M. On The Analysis of Verbal Reports. Psicologia USP, São Paulo, v.9, n.1, p.303-324, 1998.

This paper describes the basic aspects of the work developed under the supervision of Professor Carolina Bori at the Preparatory Course in the Universidade Federal de São Carlos in 1977, which brought about two new lines of research in Brazil. The first line of research had to do with the teaching of Chemistry at the university level, and the second line dealt with a new procedure in Psychology to collect and analyse verbal reports. The main characteristics of each line are described, as well as the questions that led to them and their preliminary results. The contributions of this new approach to verbal reports are analysed within the realm of research in Psychology, particularly under the light of Vygotsky’s propositions about the role of verbal reports in experimental research.

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  • 1
    O seu nome é grafado de fomas diferentes, conforme seu texto tenha sido traduzido diretamente do russo ou do inglês para o português.
  • 2
    O artigo baseado na comunicação de Vigotski foi publicado em 1926, em Moscou, sob a redação de K. N. Kornilov (ver Vigotski, 1996, p.3, nota de rodapé).
  • 3
    Conforme enfatizam Van der Veer e Valsiner (1996, p.54), na perspectiva de Vygotsky, dado que os sujeitos seriam os próprios criminosos no momento em que estão cometendo o crime, confiar em suas declarações seria tolice,
    mas seria igualmente tolice ignorá-las.
  • 4
    Esta concepção de Vygotsky sobre a consciência baseava-se fortemente em William James, para quem a consciência era "a experiência da experiência" (Van der Veer & Valsiner, 1996, p.54).
  • 5
    Ao final desse artigo, o autor escreve a seguinte nota de rodapé: "O presente artigo já se encontrava na fase de correção das provas quando tomei conhecimento de alguns trabalhos relacionados com esse problema e pertencentes a psicólogos behavioristas. Estes autores propõem e resolvem o problema da consciência de forma próxima às idéias aqui desenvolvidas, como um problema de relação entre reações (cotejar com comportamento comportamento verbalizado)." (p.85).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Nov 1998
    • Data do Fascículo
      1998
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