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Caso 4/2007: mulher, 21 anos, com cardiomiopatia hipertrófica, que apresentou choque hemorrágico e coagulação intravascular disseminada após ooforectomia por cisto ovariano roto

CORRELAÇÃO ANATOMOCLÍNICA

Caso 4/2007 - Mulher, 21 anos, com cardiomiopatia hipertrófica, que apresentou choque hemorrágico e coagulação intravascular disseminada após ooforectomia por cisto ovariano roto

Márcio Silva Miguel Lima; Antônio Laurinavicius; Mauro Canzian

Instituto do Coração do Hospital das Clínicas - FMUSP, São Paulo, SP - Brasil

Correspondência Correspondência: Vera D. Aiello InCor - Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 44 05403-000 - São Paulo, SP - Brasil E-mail: anpvera@incor.usp.br

Palavras-chave: Cardiomiopatia hipertrófica, choque hemorrágico, coagulação intravascular disseminada, ovariectomia.

Paciente do sexo feminino de 21 anos de idade foi encaminhada ao hospital no período pós-operatório de laparotomia exploradora indicada em razão de abdome agudo hemorrágico.

A paciente tinha história de cardiopatia desde o nascimento. Ainda lactente, foi observado cansaço e na avaliação médica foi feito o diagnóstico de sopro cardíaco. Aos dois anos de idade foi submetida a cateterismo cardíaco que revelou achados compatíveis com cardiomiopatia hipertrófica. O ecocardiograma mostrou hipertrofia de ventrículo esquerdo, com função sistólica preservada (tab. 1).

O eletrocardiograma dessa época (1991) apresentava ritmo sinusal, intervalo PR 80 mseg, presença de onda delta positiva em I, II, aVF, V1 e V6, sobrecarga ventricular esquerda e alterações de repolarização ventricular tipo "strain" (fig. 1).


Evoluiu na infância com cansaço aos esforços grandes e palpitações, sintomas que permaneceram até a idade de 20 anos, quando se iniciaram episódios de síncope precedidos de dor precordial desencadeada por esforços moderados. Recebia prescrição de atenolol até os 18 anos (2003), quando foi substituído pelo carvedilol.

Foram realizados vários eletrocardiogramas dinâmicos em registros de 24 horas, que revelaram extra-sístoles atriais e ventriculares pouco freqüentes e isoladas até 2004, quando houve o registro de taquicardia ventricular sustentada.

Ao exame físico (jun/2004) mostrava pressão arterial 120x85 mmHg, freqüência cardíaca 80 bpm, semiologia pulmonar normal, bulhas normofonéticas e sopro sistólico 2+/6+ em área mitral. O exame do abdome revelou fígado a 3 cm do rebordo costal direito.

O eletrocardiograma (jun/2004) mostrou ritmo sinusal, freqüência cardíaca 62 bpm, PR curto, SÂQRS + 90° para frente, onda delta positiva em V1, ondas Q em V5 e V6, e alterações de repolarização ventricular. O padrão eletrocardiográfico não era significativamente diferentemente do padrão que apresentava desde 2002 (fig. 2).


Havia hipertrofia acentuada do ventrículo esquerdo ao ecocardiograma. A função sistólica foi interpretada como normal apesar de a primeira avaliação com base no ecocardiograma ter sugerido função sistólica rebaixada. Na revisão do exame, atribuiu-se a interpretação de função rebaixada ao movimento assincrônico do septo interventricular (tab. 1).

Depois do episódio de síncope, a investigação eletrofisiológica foi aprofundada. O estudo eletrofisiológico, realizado em junho de 2004, revelou a presença de duas vias anômalas de condução atrioventricular do estímulo cardíaco – uma de topografia póstero-septal esquerda e outra de topografia lateral esquerda.

A paciente foi submetida a ablação por radiofreqüência da via póstero-septal com sucesso. A outra via não foi abordada em razão da longa duração da intervenção. Recebeu alta hospitalar com prescrição de losartana 50 mg, carvedilol 50 mg e AAS 100 mg, tendo evoluído com diminuição das crises de palpitações e sem recorrência da síncope.

Foi reinternada em março de 2005 para ablação da via anômala póstero-lateral. Depois da ablação, a paciente apresentou freqüência cardíaca 28 bpm, seguida de parada cardíaca em atividade elétrica sem pulso, a qual foi revertida. Persistiu com choque cardiogênico, havendo necessidade de intubação orotraqueal e uso de agentes vasoativos.

O ecocardiograma (2005) revelou acentuada hipertrofia, dilatação de ventrículo esquerdo e função sistólica diminuída, novamente atribuída ao movimento paradoxal do septo.

A paciente se recuperou progressivamente e recebeu alta hospitalar.

A tabela 2 mostra os dados evolutivos do eletrocardiograma dinâmico.

Depois de dois meses (13/5/2005), procurou atendimento médico de emergência em hospital de seu bairro por forte dor abdominal. O exame clínico mostrou sinais considerados sugestivos de irritação peritoneal e anemia. Foi feito diagnóstico de abdome agudo por ruptura de cisto ovariano. A paciente foi internada, submetida a ooforectomia esquerda e recebeu alta hospitalar.

Uma semana depois, a paciente continuava com dor abdominal e houve piora da dispnéia. Foi atendida no Pronto-Socorro do Hospital das Clínicas, quando, depois da avaliação médica, foi submetida a nova laparotomia exploradora. A operação revelou resquícios de sangramento anterior, sem sangramento ativo e presença de hematoma retroperitoneal. Foi realizada cauterização em local da ooforectomia e a paciente evoluiu com choque e sangramento difuso em ferida operatória e em locais de punção venosa cutânea. Foram administrados, além das medidas terapêuticas para controle da pressão arterial, concentrados de hemácias e plasma fresco. A paciente foi transferida para o InCor.

Ao exame físico (20/5/2005), a pressão arterial era 90x60 mmHg, a freqüência cardíaca 80 bpm, os pulmões não apresentavam alteração semiológica, o coração era rítmico, sem modificação da ausculta. Havia hepatomegalia discreta e dor no local da incisão cirúrgica, mas não havia edema.

O eletrocardiograma (20/5/2005) revelou ritmo sinusal, freqüência cardíaca 83 bpm, PR curto, SÂQRS + 90° para frente, onda delta positiva em V1, ondas Q em V5 e V6 e alterações de repolarização ventricular.

Os exames laboratoriais (21/5/2005) mostravam hemoglobina 8 g/dl, hematócrito 26%, leucócitos 6.300/mm³, plaquetas 153.000/mm³, creatininemia 1,2 mg/dl, glicemia 92 mg/dl, sódio sérico 137 mEq/l e potássio 5,8 mEq/l. A paciente continuou com choque e sangramento difuso refratários ao tratamento e veio a falecer (22/5/2005).

Aspectos clínicos

Esse caso clínico relata uma paciente jovem com diagnóstico de cardiomiopatia hipertrófica (CMH), diagnosticada pouco tempo após o nascimento. Por definição, a CMH é doença de etiologia genética caracterizada por significativa hipertrofia miocárdica sem causa identificável clinicamente, ou seja, o aumento da massa muscular miocárdica não deve estar relacionado a potenciais etiologias como a hipertensão arterial sistêmica ou a estenose aórtica, por exemplo1. A prevalência da CMH na população geral é de aproximadamente 1:5002. É a cardiopatia de origem genética mais freqüente, encontrada em 0,5% dos pacientes não-selecionados encaminhados rotineiramente a serviço de ecocardiograma. As faixas etárias mais acometidas são crianças mais velhas e adultos jovens.

A hipertrofia é geralmente assimétrica tendo como regiões mais freqüentemente afetadas, em ordem decrescente, o septo, o ápice e a região médio-ventricular. A cavidade ventricular pode ser normal, mas em graus avançados tende a ser diminuída, obliterada no final da sístole. Histologicamente, a CMH se caracteriza por hipertrofia de miocardiócitos, desarranjo celular e fibrose.

A apresentação clínica é muito variável, mas a tríade que deve chamar a atenção ao diagnóstico é a associação de dispnéia, dor torácica e síncope em indivíduo jovem, sintomas claramente apresentados pela paciente em questão. A dispnéia foi o sintoma mais precoce, e esse sintoma pode ter evolução progressiva, dependendo da elevação da pressão diastólica por diminuição da complacência e pela conhecida obstrução dinâmica de via de saída ventricular esquerda. Tardiamente, a dispnéia pode ser causada pela disfunção sistólica.

A dor torácica referida pela paciente é explicada pela isquemia miocárdica que é desencadeada tanto pelo aumento da demanda metabólica como também pela diminuição da perfusão coronariana relacionada à obstrução da via de saída do ventrículo esquerdo ou à alteração de grandes vasos com pontes miocárdicas e redução luminal. Observa-se ainda alteração na microcirculação com baixa relação capilar-miócito.

O exame físico da paciente mostrou um sopro compatível com insuficiência mitral, que pode ocorrer na cardiomiopatia hipertrófica, sobretudo quando há grande movimento anterior sistólico da valva mitral. Tipicamente, é evidenciado sopro sistólico ao longo da borda esternal esquerda que varia de intensidade e duração com manobras que alteram o enchimento ventricular, como manobra de Valsava e movimento de agachar-levantar.

O diagnóstico da paciente foi feito ainda na primeira infância, por meio de exames complementares. Não existem achados patognomônicos em exames complementares para diagnosticar a CMH. O ECG mostra sinais clássicos de hipertrofia ventricular, como aumento de amplitude do QRS com desvio do eixo para esquerda e alteração de repolarização. No caso clínico, observou-se também indício de pré-excitação, representado pelas ondas delta, mas que também podem ocorrer em hipertróficos sem pré-excitação. O melhor exame para diagnóstico e acompanhamento é o ecocardiograma, que avalia tanto a parte estrutural, definindo-se a magnitude de aumento da massa miocárdica, como também a resultante funcional que seria a presença de gradiente intracavitário, movimento anterior da valva mitral, com ou sem insuficiência mitral, além da função global do ventrículo esquerdo. Conforme relatado, o movimento assincrônico do septo interventricular dificultou sobremaneira a avaliação da função sistólica. Nesse caso, outros métodos poderiam ter sido utilizados, como a ventriculografia por radioisótopos, obtendo-se medida mais objetiva da fração de ejeção. A ressonância cardíaca também poderia ser empregada na mensuração, tendo excepcional definição estrutural, tendendo a se tonar o exame padrão de referência no diagnóstico dessa doença, especialmente nas formas não-obstrutivas. Apesar de a paciente ter sido submetida a cineangiocoronariografia, esse exame não é fundamental para se estabelecer o diagnóstico. Tem como principal papel avaliar de forma mais acurada as pressões intracavitárias definindo a presença e a magnitude de gradientes.

É de suma importância a definição da existência ou não de obstrução da via de saída do ventrículo esquerdo, a qual é definida como gradiente maior que 30 mmHg no repouso ou maior que 50 mmHg em testes provocativos, como pelo uso de dobutamina. O gradiente obtido no ecocardiograma da paciente (15 mmHg) não representa, portanto, obstrução à via de saída de ventrículo esquerdo, que ocorre em 30% a 50% dos pacientes. Nesse caso, na ausência de gradiente intraventricular expressivo, manobras provocativas devem ser usadas para identificar potencial obstrução ao fluxo na via de saída de ventrículo esquerdo.

A mortalidade anual da cardiomiopatia hipertrófica é de 1% a 6%, sendo a maioria de forma súbita. Em um estudo epidemiológico abordando pacientes não-selecionados, foram observados três grandes grupos de modalidades de morte relacionadas a cardiomiopatia hipertrófica: morte súbita, insuficiência cardíaca e acidente vascular cerebral associado a fibrilação atrial3.

A paciente evoluiu com dor torácica, síncope e arritmia maligna detectada ao Holter, o que elevaria seu estado clínico a um alto risco de morte súbita, levando-se em consideração também que esse evento catastrófico é mais freqüente em pacientes mais jovens3. O consenso das sociedades americana e européia de Cardiologia em cardiomiopatia hipertrófica, chefiado, dentre outros, pelo Prof. Barry Maron, aponta a síncope inexplicada e a taquicardia ventricular sustentada espontânea como fatores de risco maiores para morte súbita. Outros fatores são: parada cardíaca prévia, história familiar de morte súbita, espessura de parede superior a 30 mm, resposta hipotensora ao esforço físico e taquicardia ventricular não-sustentada (TVNS) no Holter4. É importante salientar que 5% dos pacientes sem nenhum fator de risco identificado podem ter morte súbita5.

Síncope associada a taquicardia ventricular sustentada foi a principal indicação de implante de dispositivo cardioversor/desfibrilador (CDI) para prevenção primária de morte súbita em um estudo cujo objetivo foi validar essa terapêutica6. Importante também nesse estudo foi o fato de que a grande maioria das arritmias malignas ocorreu em pacientes assintomáticos ou com insuficiência cardíaca classe II, durante a inatividade ou em atividades leves. O CDI efetivamente protegeu os pacientes de alto risco revertendo taquicardias ventriculares sustentadas e fibrilação ventricular. Deve-se ter em mente, contudo, que o CDI é de alto custo e que não é inócuo, uma vez que choques inapropriados pioram a qualidade de vida, assim como também podem, paradoxalmente, desencadear arritmias potencialmente letais. Agentes antiarritímicos não se mostraram eficazes na proteção contra morte súbita5.

O estudo eletrofisiológico (EEF) não representa a melhor alternativa para estratificação de risco, pois traz resultados inconclusivos5. Behr e cols.7 avaliaram a acurácia do EEF em determinar o risco de morte súbita em pacientes portadores de CMH. A realização do estudo em população de alto risco com história de síncope e TVNS no Holter induziu taquicardias polimórficas, arritmia essa que também pode ser induzida em um terço das pessoas sem cardiopatia. Outro fato relevante é que em um terço dos recuperados de morte súbita não se conseguiu induzir nenhuma arritmia. Porém, no caso em questão, observa-se clara tentativa de tratamento das vias acessórias de pré-excitação, uma indicação pertinente.

A concomitância de achados característicos da CMH e de pré-excitação ventricular por via acessória na mesma paciente leva a questionar a possível ligação entre as duas condições, além da mera casualidade. Tal associação, embora incomum, já foi constatada por diversos autores e tem sido motivo de especulação etiológica e fisiopatológica. Braunwald e cols.8 hipotetizaram que a ativação ventricular anômala poderia resultar em hipertrofia miocárdica regional e que, por sua vez, a hipertrofia localizada poderia prejudicar o efeito isolante do anel atrioventricular. Uma condição levaria, portanto, a uma maior incidência da outra. No entanto, observações posteriores sugerem que a associação dos dois fenótipos poderia ser limitada a determinados grupos familiares (com padrão de herança autossômica dominante) refletindo então uma etiologia genética específica e distinta da observada nos casos de CMH isolada. Já foi descrita uma grande família na qual uma mutação no cromossomo 7q3 manifestou-se como hipertrofia ventricular, pré-excitação ventricular ou ambas9. Esses pacientes apresentavam, porém, algumas características peculiares: o exame histológico revelava proporção de fibrose superior à comumente encontrada na CMH isolada (mas já relatada em varias séries de casos de CMH associada a Wolff-Parkinson-White) e observou-se uma incidência maior de bloqueio atrioventricular total. A evolução para dilatação parece ser significativamente mais freqüente nos pacientes com ambas as condições quando comparados com portadores de CMH isolada10; e esse poderia ser o caso da paciente em questão.

A terapêutica é heterogênea, condizente com a apresentação clínica. O tratamento clínico com agentes cronotrópicos negativos está na primeira linha, tendo-se como preferência os betabloqueadores. Os antagonistas de canal de cálcio do tipo não-dihidropiridínicos (verapamil e diltiazem) e a disopiramida (antiarrítmico do tipo IA) são alternativas como monoterapia nos pacientes intolerantes ao betabloqueador ou como terapia adjuvante. A paciente foi inicialmente tratada com atenolol, com resultado não-favorável, o que pode ocorrer em uma minoria dos casos.

A refratariedade ao tratamento clínico é indicação ao uso de terapias invasivas para CMH. Disponíveis estão o uso de marcapasso dupla câmara, o infarto septal por injeção de álcool absoluto por cateterização seletiva de um ramo septal da artéria descendente anterior e a cirurgia de miotomia-miectomia septal, esta última com mais experiência disponível e resultados favoráveis consistentes publicados na literatura. Essas medidas estão indicadas em casos refratários ao tratamento clínico, como mencionado, e em casos com importante obstrução da via de saída do VE, o que não se aplica ao caso descrito. Como terapia à total refratariedade clínica e invasiva, e para estágios avançados de insuficiência cardíaca, tem-se a indicação de transplante cardíaco.

A evolução desfavorável é minoria. Felizmente, a grande maioria dos pacientes é assintomática durante toda a vida. Em recente publicação, Arteaga e cols.11 demonstraram em um seguimento de até 17 anos (média de sete anos) que a evolução geral da CMH é benigna, observando-se uma sobrevida acumulada de 87,9% em 15 anos. Em tempo, notaram como principais causas de morte relacionadas à doença – a classificação funcional segundo a NYHA e a espessura de parede maior que 30 mm, esta última já evidenciada em estudo específico prévio12.

Entre 5% e 10% dos pacientes, a CMH evolui para disfunção sistólica acentuada com progressivo afilamento da parede ventricular e dilação da cavidade. A evolução para ICC ainda na fase infantil é um fator prognóstico desfavorável importante. Mas, conforme observado neste relato de caso, essa não foi a evolução final. A paciente apresentou um evento agudo hemorrágico abdominal (ruptura de cisto ovariano) com complicações posteriores, evento esse passível de ocorrer em uma mulher jovem e sem relação causal com a cardiopatia de base.

(Dr. Márcio Silva Miguel Lima, Dr. Antônio Laurinavicius)

Hipótese diagnóstica

Cardiomiopatia hipertrófica, com acentuada disfunção diastólica; evento final – coagulação intravascular disseminada.

Necropsia

O cadáver apresentava-se em anasarca e, à abertura das cavidades torácicas e abdominais, foram evidenciados aproximadamente 280 ml de líquido transparente, de coloração amarelo-citrino, no saco pericárdico, além de coleção hemorrágica de aproximadamente 1.560 ml no abdome. O coração mostrou-se intensamente aumentado de volume, pesando 834 g após a abertura das cavidades e retirada de coágulos. Chamou a atenção a difusa hipertrofia do miocárdio ventricular, sendo a parede livre do ventrículo esquerdo discretamente mais espessa do que o septo interventricular (fig. 3). Átrios e cavidade ventricular direita não se mostraram dilatados, contrastando com o discreto aumento de volume da cavidade ventricular esquerda. Corte transversal no terço médio ventricular mostrou extensas áreas confluentes de fibrose (fig. 4), difusamente distribuídos. À análise microscópica do miocárdio foi observada difusa hipertrofia de cardiomiócitos, além de extenso desarranjo de fibras (fig. 5). Folhetos valvares, assim como artérias coronárias, não exibiram alterações dignas de nota.




O fígado, assim como os pulmões, apresentava sinais macro e microscópicos de congestão passiva crônica. Além disso, constatou-se a presença de microtrombos em sinusóides hepáticos (fig. 6) e em vasos pulmonares (fig. 7).



Nos rins foram observados infartos focais.

(Dr. Mauro Canzian)

Diagnósticos anatomopatológicos

Cardiomiopatia hipertrófica; alterações secundárias a insuficiência cardíaca congestiva; trombose recente em microvasculatura hepática e pulmonar compatível com coagulação intravascular disseminada; necrose tubular aguda secundária a choque hipovolêmico; infartos focais antigos dos rins.

(Dr. Mauro Canzian)

Comentários

Trata-se de paciente jovem portadora de cardiomiopatia hipertrófica, hospitalizada em urgência em virtude de abdome agudo hemorrágico secundário a ruptura de cisto ovariano, duas semanas antes do óbito. Foi submetida a laparotomia exploradora que evidenciou conteúdo hemorrágico na cavidade abdominal. No pós-operatório recente foi constatada nova coleção hemorrágica peritoneal, tendo evoluído com choque refratário, ainda que submetida a múltiplas transfusões sangüíneas e reposição volêmica. A paciente foi então submetida a nova laparotomia exploradora, evoluindo com quadro clínico compatível com coagulação intravascular disseminada (CIVD) no pós-operatório da nova intervenção cirúrgica. À análise microscópica foram observados focos de trombose aguda em microcirculação, principalmente no fígado, corroborando a hipótese de CIVD.

A cardiomiopatia hipertrófica é uma doença genética de penetrância variável relativamente comum (1:500 na população geral)13, também conhecida como estenose subaórtica hipertrófica idiopática ou cardiomiopatia obstrutiva hipertrófica, que se caracteriza fundamentalmente por hipertrofia do miocárdio, na ausência de outras possíveis causas. O quadro clínico é bastante variável, podendo-se observar desde sintomas praticamente imperceptíveis até importantes limitações da atividade física e arritmias recorrentes14. Em seu padrão morfológico clássico ocorre espessamento desproporcional e assimétrico do septo ventricular, predominantemente em sua região subaórtica, em relação à parede livre do ventrículo esquerdo; porém em 10% dos casos tal assimetria não é observada15. Como evidenciado no presente caso, os principais achados microscópicos são extensa hipertrofia de cardiomiócitos, associada a desarranjo de fibras e a fibrose intersticial15,16. É a principal causa de morte súbita em jovens e uma importante causa de morbidade e mortalidade em pacientes idosos. Mais de 150 mutações em dez diferentes genes codificadores de proteínas sarcoméricas já foram identificados. A maior parte das alterações genéticas foi observada nos codificadores da cadeia pesada da beta-miosina, da troponina T cardíaca, da alfa-tropomiosina e da proteína C ligante de miosina15,17,18. A taxa de complicações relacionadas a entidades como morte súbita, insuficiência cardíaca terminal ou acidente vascular cerebral fatal é de 1% a 2%14, e grande parte dos pacientes apresenta expectativa de vida similar ao restante da população. Em geral, o aumento da mortalidade correlaciona-se diretamente ao desenvolvimento de complicações13, como o presente caso em que o óbito se deu provavelmente em virtude de choque hipovolêmico, com possível contribuição séptica, ainda que nenhum foco infeccioso tenha sido evidenciado macro ou microscopicamente. Os infartos renais focais antigos foram provavelmente acarretados pela migração sistêmica de microtrombos formados nas câmaras cardíacas esquerdas.

(Dr. Mauro Canzian)

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Editor da Seção: Alfredo José Mansur (ajmansur@incor.usp.br)

Editores Associados: Desidério Favarato (dclfavarato@incor.usp.br) Vera Demarchi Aiello (anpvera@incor.usp.br)

  • Correspondência:

    Vera D. Aiello
    InCor - Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 44
    05403-000 - São Paulo, SP - Brasil
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Ago 2007
    • Data do Fascículo
      Jul 2007
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