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Tempo é Músculo

Palavras-chave
Infarto do Miocárdio com Supradesnível do Segmento ST/fisiopatologia; Infarto do Miocárdio/mortalidade; Infarto do Miocárdio/diagnóstico; Infarto do Miocárdio/terapia; Fatores de Tempo; Taxa de Sobrevida; Terapia Trombolítica; Angioplastia

Antes dos anos 80, o tratamento dos pacientes com infarto agudo do miocárdio com supra do segmento ST (IAMCSST) tinha como meta o controle da dor, da arritmia e a redução do trabalho cardíaco, visando limitar a extensão da necrose miocárdica. Estas medidas foram parcialmente efetivas, mas a morbidade e mortalidade do IAM permaneciam altas.11 Braunwald E. Evolution of the management of acute myocardial infarction: a 20th century saga. Lancet. 1998;352(9142):1771-4.

A partir dos achados de DeWood,22 DeWood MA, Spores J, Notske R, Mouser LT, Burroughs R, Golden MS, et al. Prevalence of total coronary occlusion during the early hours of transmural myocardial infarction. N England J Med. 1980;303(16):897-902. mostrando angiograficamente a presença da oclusão coronariana por trombo na artéria culpada do IAMCSST, surgiram estratégias de reperfusão tanto por trombolítico como por angioplastia coronária transluminal percutânea (ACTP). O tratamento do IAMCSST muda da contemplação para a intervenção.

Há cerca de 50 anos, Eugene Braunwald, concebeu uma hipótese revolucionária: tempo é músculo. Foi demonstrado que a gravidade e a extensão da lesão isquêmica do miocárdio, resultante da oclusão coronariana, poderiam ser radicalmente alteradas por uma intervenção adequada até 3 horas após a oclusão coronária.33 Maroko PR, Kjekshus JK, Sobel BE, Watanabe T, Covell JW, Ross J Jr, et al. Factors influencing infarct size following experimental coronary artery occlusions. Circulation. 1971;43(1):67-82.

A melhor estratégia para obtenção da reperfusão coronariana tem sido, ao longo das últimas décadas, um constante tema de discussão, essencialmente prejudicado pela equivocada análise competitiva entre as possibilidades de obtenção da abertura do vaso. Na maioria se ignora o já muito bem definido e claro nas diretrizes mundiais; a melhor estratégia é a que está disponível dentro de prazos bem estabelecidos, sendo indiferentes nas primeiras duas horas de dor.

Em publicação de Balk et al.,44 Balk M, Gomes HB, de Quadros AS, Saffi MAL, Leiria TLL. Análise Comparativa entre Pacientes com IAMCSST Transferidos e Pacientes de Demanda Espontânea Submetidos à Angioplastia Primária. Arq Bras Cardiol. 2019;112(4):402-407. nessa edição, os autores, em análise retrospectiva de um banco de dados, analisaram comparativamente os tempos totais de isquemia entre pacientes submetidos a ACTP transferidos de outros hospitais (grupo A = 406) comparados aos que procuraram o serviço espontaneamente (grupo B = 215).

Mesmo considerando tratar-se de estudo retrospectivo com informações de banco de dados, há vieses potenciais muito importantes. Dentre estes destaca-se que 292 pacientes com traçados de eletrocardiograma (ECG) com supra desnivelamento do segmento ST não vieram transferidos ou não constavam no banco de dados. Quantos desses teriam sido submetidos a trombólise no local, transferidos para outro centro, ou ido a óbito enquanto aguardavam? Eram os mais graves?

O tema é de suma importância e as diretrizes mundiais estabelecem que se adote a estratégia benéfica dentro da janela limite de transferência para ACTP de no máximo 120 minutos.55 Piegas LS, Timerman A, Feitosa GS, Nicolau JC, Mattos LAP, Andrade MD, et al. V Diretriz da Sociedade Brasileira de Cardiologia sobre Tratamento do Infarto Agudo do Miocárdio com Supradesnível do Segmento ST. Arq Brás Cardiol. 2015;105(2 Supl 1):1-105.

6 Ferez F, Costa RA, Siqueira D, Costa Jr JR, Chamié D, Staico R, et al. Diretriz da Sociedade Brasileira de Cardiologia e da Sociedade Brasileira de Hemodinâmica e Cardiologia Intervencionista sobre Intervenção Coronária Percutânia. Arq Bras Cardio. 2017;109(1 Supl. 1):1-81.
-77 O'Gara PT, Kushner FG, Ascheim DD, Casey DE Jr, Chung MK, de Lemos JA, et al. 2013 ACCF/AHA guideline for the management of ST-elevation myocardial infarction: a report of the American College of Cardiology Foundation/American Heart Association Task Force on Practice Guidelines. Circulation. 2013;127(4):e362-425. No artigo nada é mencionado quanto a trombólise no primeiro local. O tempo médio de delta T para todos os pacientes do estudo foi 334 minutos. O delta T médio dos pacientes transferidos com contato médico de emergência via Secretaria de Saúde (grupo A) foi de 385 minutos, com um atraso decorrente do transporte de 147 minutos. Já o delta T médio dos pacientes do grupo B foi de 307 minutos, refletindo valores de mundo real bem distantes dos descritos nos ensaios clínicos.

Muitos hospitais sem serviço de hemodinâmica estão transferindo pacientes com IAMCSST para uma suposta ACTP sem um protocolo de transporte garantindo tempo hábil. O ato médico é transferido para outra instituição e muitos pacientes entram na triste estatística de “chance perdida” de reperfusão, em que muitos nada recebem e outros são tratados fora das janelas de tempo ideal para o melhor resultado, fato constatado nos registros mundiais em que o Brasil colabora.88 Eagle KA, Goodman SG, Avezum A, Budaj A, Sullivan CM, López-Sendón J, et al. Practice variation and missed opportunities for reperfusion in ST-segment-elevation myocardial infarction: findings from the Global Registry of Acute Coronary Events (GRACE). Lancet. 2002;359(9304):373-7.

A decisão da melhor estratégia no local de primeiro atendimento, em que se respeita as limitações de tratamento e os atrasos na transferência, ganhou força com a tecnologia para envio de traçados de ECG e teleconsultoria. Há exemplos de sucesso no mundo e no Brasil99 Danchin N, Blanchard D, Steg PG, Sauval P, Hanania G, Goldstein P, et al. Impact of prehospital thrombolysis for acute myocardial infarction on 1-year outcome: results from the French Nationwide USIC 2000 Registry. Circulation. 2004;110(14):1909-15.

10 Westerhout CM, Bonnefoy E, Welsh RC, Steg PG, Boutitie F, Armstrong PW. The influence of time from symptom onset and reperfusion strategy on 1-year survival in ST-elevation myocardial infarction: a pooled analysis of an early fibrinolytic strategy versus primary percutaneous coronary intervention from CAPTIM and WEST. Am Heart J. 2011;161(2):283-90.

11 Abreu LM, Escosteguy CC, Amaral W, Monteiro Filho MY. Tratamento Trombolítico do Infarto na Emergência com Teleconsultoria (TIET): resultados de cinco anos. Rev SOCERJ. 2005;18(5):418-28.

12 Ribeiro AL, Alkmim MB, Cardoso CS, Carvalho GCR, Caiaffa WT, Andrade MV, et al. Implementation of a telecardiology system in the state of Minas Gerais: the Minas Telecardio Project. Arq Bras Cardiol. 2010;95(1):70-8.
-1313 Caluza ACV, Barbosa AH, Gonçalves I, Oliveira CA, Mato L,Zeefried C, et al. ST-elevation myocardial infarction network: systematization in 205 cases reduced clinical events in the public health care system. Arq Bras Cardiol. 2012;99(5):1040-48. que demonstraram redução da mortalidade e maior preservação de miocárdio na reperfusão pré-hospitalar ao dar ênfase a organização de uma rede regional preestabelecida para transferências rápidas permitindo a escolha do melhor tratamento.

A estratégia fármaco-invasiva vem como proposta para situações onde não há garantia de tempo de transferência adequado e para o período fora do horário de rotina do centro de referência para angioplastia primária. Tem como grande mérito oferecer as duas terapias ao paciente. Aqueles sem tempo para transferência adequada fariam a terapia trombolítica no primeiro local de atendimento, seguindo protocolo pré-estabelecido, e com mais tempo seriam transferidos para um centro de hemodinâmica capacitado a complementar o tratamento com abordagem da artéria culpada. O estudo STREAM1414 Armstrong PW, Gershlick AH, Goldstein P, Wilcox R, Danays T, Lambert Y, et al. Fibrinolysis or primary PCI in ST-segment elevation myocardial infarction. N Engl J Med. 2013;368(15):1379-87. demonstrou benefício e segurança da estratégia sendo esta adotada pela última diretriz europeia.1515 Ibanez B, James S, Agewall S, Antunes MJ, Bucciarelli-Ducci C, Bueno H, et al. 2017 ESC Guidelines for the management of acute myocardial infarction in patients presenting with ST-segment elevation: The Task Force for the management of acute myocardial infarction in patients presenting with ST-segment elevation of the European Society of Cardiology (ESC). Eur Heart J. 2018:39(2):119-77.

Concordo com a conclusão dos autores de que seus resultados podem servir de auxílio aos gestores do sistema de saúde para identificar oportunidades para melhorar, mas como um todo. Na atenção básica, identificando os grupos de risco, promovendo prevenção e educando para reconhecimento precoce da dor anginosa; nos locais de primeiro atendimento adotar protocolos de infarto, quando necessário com teleconsultoria, com a estratégia que respeite os prazos e perfil clínico, com uma estrutura de transferência (SAMU) para rede de cobertura para os casos mais graves, para intervenção de resgate, e para complementação terapêutica na linha fármaco-invasiva. Seria o Sistema Único de Saúde (SUS) pleno. Os ganhos serão de todos.

O miocárdio agradece.

  • Minieditorial referente ao artigo: Análise Comparativa entre Pacientes com IAMCSST Transferidos e Pacientes de Demanda Espontânea Submetidos à Angioplastia Primária

References

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Abr 2019
  • Data do Fascículo
    Abr 2019
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