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Psoríase e Doença Cardiovascular: Lesão além da Pele

Palavras-chave
Doenças Cardiovasculares; Aterosclerose; Inflamação; Fatores de Risco; Doença Aterosclerótica Sistêmica; Psoríase

Interessante encontrarmos um artigo11 Oliveira AN, Simões MM, Simões R, Malachias MVB, Rezende BA. Cardiovascular Risk in Psoriasis Patients: Clinical, Functional and Morphological Parameters. Arq Bras Cardiol. 2019; 113(2):242-249. aparentemente dermatológico em revista cardiológica. Por que ler sobre psoríase? Enfermidade que por muitos colegas, e por vários anos, foi considerada eminentemente cutânea e de curso benigno, principalmente na sua forma em placa. Todavia, estudos epidemiológicos22 Radner H, Lesperance T, Accortt NA, Solomon DH. Incidence and prevalence of cardiovascular risk factors among patients with rheumatoid arthritis, psoriasis, or psoriatic arthritis. Arthritis Care Res. 2017;69(10):1510-8.,33 Mehta NN, Azfar RS, Shin DB, Neimann AL, Troxel AB, Gelfand JM. Patients with severe psoriasis are at increased risk of cardiovascular mortality: cohort study using the General Practice Research Database. Eur Heart J. 2010;31(8):1000-6. e um registro internacional44 Egeberg A, Thyssen JP, Jensen P, Gislason GH, Skov L. Risk of myocardial infarction in patients with psoriasis and psoriatic arthritis: a nationwide cohort study. Acta Derm Venereol. 2017;97(7):819-24. observaram um aumento em torno de 50% no risco de eventos cardiovasculares neste grupo frente à população geral, marcadamente em pacientes mais jovens.55 Gelfand JM, Neimann AL, Shin DB, Wang X, Margolis DJ, Troxel AB. Risk of myocardial infarction in patients with psoriasis. JAMA. 2006;296(14):1735-41. Como explicar tudo isso? Inflamação sistêmica parece ser o “elo perdido” entre doença cardiovascular (CV), neoplasias e doenças sistêmicas inflamatórias crônicas (ex, psoríase ou artrite reumatóide).66 Zhao TX, Mallat Z. T argeting the immune system in atherosclerosis: JACC state-of-the-art review. J Am Coll Cardiol. 2019;73(13):1691-1706.

O interesse da cardiologia neste tema interdisciplinar não é novo. Nas últimas duas décadas se consolidou o entendimento da aterosclerose como doença inflamatória sistêmica vascular e que seus mecanismos fisiopatológicos são acelerados por atividade inflamatória sistêmica sustentada. Utilizando a atrite reumatóide como modelo fisiopatológico, Sattar et al.77 Sattar N, McCarey DW, Capell H, McInnes IB. Explaining how “high-grade” systemic inflammation accelerates vascular risk in rheumatoid arthritis. Circulation. 2003;108(24):2957-63. em 2003, sistematizaram o processo de aterosclerose acelerada. A inflamação sistêmica aumentaria a síntese hepática de proteína C reativa (PCR), induziria lipólise com liberação de ácidos graxos livres, intensificaria a resistência insulínica e oxidação de lipoproteínas de baixa densidade (LDL), culminando com disfunção endotelial em conjunto com maior expressão de moléculas de adesão, acelerando a doença aterosclerótica. Em 2011, Boehnck et al.88 Boehncke WH, Boehncke S, Tobin A-M, Kirby B. The ‘psoriatic march’: a concept of how severe psoriasis may drive cardiovascular comorbidity. Exp Dermatol. 2011;20(4):303-7. cunharam o termo “psoriatic march” para descrever, no modelo fisiopatológico da psoríase, possíveis mecanismos para justificar o aumento dos eventos CV. Como era de se esperar, o esqueleto e as etapas do processo são extremamente assemelhadas ao visto na artrite reumatóide. A inflamação sistêmica sustentada desencadeada pela psoríase elevaria a síntese de PCR, de fator de crescimento do endotélio vascular (VEGF), p-selectina, resistina e leptina. Tais proteínas estariam envolvidas com o aumento da resistência insulínica, que em última análise intensificaria a disfunção endotelial e estimularia a expressão de moléculas de adesão. Com o reconhecimento destas etapas, fica clara a importância, neste processo fisiopatológico, da fase subclínica da aterosclerose (disfunção endotelial, rigidez vascular e hiperexpressão de moléculas de adesão vascular) e dos biomarcadores (PCR, leptina, resistina). No artigo que ensejou este minieditorial, os autores compararam rigidez arterial por velocidade de onda de pulso (VOP), espessamento médio intimal (EMI) carotídeo, dados para síndrome metabólica e níveis de PCR numa coorte de indivíduos com psoríase e voluntários. Os resultados descritos, com significância estatística, corroboraram com a hipótese de que pacientes com psoríase com atividade de doença intensa teriam mais síndrome metabólica, PCR elevada e indícios de aterosclerose subclínica (EMI e rigidez arterial aumentados) frente ao grupo controle.

O desenvolvimento de biomarcadores para auxiliar no diagnóstico, prognóstico e seguimento terapêutico da doença aterosclerótica é uma realidade. No caso da doença arterial coronariana, a PCR está bem estabelecida. Para insuficiência cardíaca, os peptídeos natriuréticos. No caso específico da psoríase e risco de eventos cardiovasculares, diversos biomarcadores foram estudados: PCR, interleucina-6 (IL - 6), leptina e adiponectina. Os resultados foram semelhantes aos da população geral, com aumento do risco CV em vigência de PCR, IL-6 elevadas. A leptina tem achados conflitantes e a adiponectina, por ser uma adipocina com efeitos protetores cardiovasculares, aparece reduzida na maior parte dos estudos.99 Kaur S, Kingo K, Zilmer M. Psoriasis and cardiovascular risk-do promising new biomarkers have clinical impact? Mediators Inflamm. 2017;2017:7279818. Além destes, uma nova molécula poderá vir a ser um biomarcador protagonista: GlycA. Molécula analisada via espectometria por ressonância nuclear magnética. Este marcador tem correlação com risco de doença arterial coronariana e inflamação vascular. Nos pacientes com psoríase, teve tanto correlação com atividade de doença estimada pelo psoriasis area and severity índex (PASI) quanto com risco de eventos CV independente dos fatores de risco tradicionais, incluindo a PCR. Ademais, houve redução dos níveis de GlycA e de inflamação vascular nos pacientes submetidos a terapia com drogas anti fator de necrose tumoral alfa (anti-TNF),1010 Joshi AA, Lerman JB, Aberra TM, Afshar M, Teague HL, Rodante JA, et al. GlycA is a novel biomarker of inflammation and subclinical cardiovascular disease in psoriasis. Circ Res. 2016;119(11):1242-53. sugerindo que também tem correlação com resposta clínica terapêutica.

Devido à importância do tema, as Sociedades Americana de Dermatologia1111 Elmets CA, Leonardi CL, Davis DMR, Gelfand JM, Lichten J, Mehta NN, et al. Joint AAD-NPF guidelines of care for the management and treatment of psoriasis with awareness and attention to comorbidities. J Am Acad Dermatol. 2019;80(4):1073-1113. e a Europeia de Reumatologia1212 Agca R, Heslinga SC, Rollefstad S, Heslinga M, McInnes IB, Peters MJ, et al. EULAR recommendations for cardiovascular disease risk management in patients with rheumatoid arthritis and other forms of inflammatory joint disorders: 2015/2016 update. Ann Rheum Dis. 2017;76(1):17-28. já publicaram recomendações sobre como avaliar o risco cardiovascular e fazer as intervenções necessárias para reduzir tais riscos. Dentre os diversos escores para estimar risco cardiovascular existentes, o grupo European League Against Rheumatism (EULAR) optou pelo Systematic Coronary Risk Evaluation (SCORE), desenhado pela Sociedade Europeia de Cardiologia. Infelizmente nenhum escore ou ferramenta para estimar a probabilidade de eventos consegue determiná-lo de forma segura nestas populações de alto risco (dada pela inflamação sistêmica crônica). Para compensar, a diretriz de dermatologia sugere, nos pacientes psoriásicos com doença ativa em >10% da superfície corpórea ou que tenham indicação de fototerapia ou terapia medicamentosa sistêmica, que o risco CV estimado seja aumentado em 50%. O mesmo foi recomendado pelo grupo EULAR, sendo que a correção de 1,5 vezes foi indicada nos pacientes com artrite reumatoide com acometimento extra axial, doença > 10 anos e presença de Fator Reumatoide (FR) ou anticorpo anti peptídeo cítrico citrulinado (anti CCP) séricos.

Outro ponto tão importante quanto a estratificação do risco seria o tratamento. Quais são as possíveis intervenções medicamentosas para controle de eventos CV na psoríase? A redução da inflamação parece ser o cerne para a diminuição das doenças cardiovasculares. Numa coorte de portadores de psoríase, o uso de drogas anti-TNF reduziram EMI de carótidas em homens e rigidez aórtica em ambos os gêneros.1313 Eder L, Joshi AA, Dey AK, Cook R, Siegel EL, Gladman DD, et al. Association of tumor necrosis factor inhibitor treatment with reduced indices of subclinical atherosclerosis in patients with psoriatic disease. Arthritis Rheumatol. 2018;70(3):408-16. Mais impressionante ainda foi a análise dos dados coletados pelo registro dinamarquês de artrite psoriásica, no qual o uso dos imunobiológicos e metotrexato reduziu a mortalidade global.1414 Ahlehoff O, Skov L, Gislason G, Gniadecki R, Iversen L, Bryld LE, et al. Cardiovascular outcomes and systemic anti-inflammatory drugs in patients with severe psoriasis: 5-year follow-up of a Danish nationwide cohort. J Eur Acad Dermatol Venereol. 2015;29(6):1128-34. Uma metanálise ajudou a estimar o impacto de terapias anti-inflamatórias na população psoriásica.1515 Roubille C, Richer V, Starnino T, McCourt C, McFarlane A, Fleming P, et al. The effects of tumour necrosis factor inhibitors, methotrexate, non-steroidal anti-inflammatory drugs and corticosteroids on cardiovascular events in rheumatoid arthritis, psoriasis and psoriatic arthritis: a systematic review and meta-analysis. Ann Rheum Dis. 2015;74(3):480-9. O uso dos anti-TNF reduziu desfechos maiores cardiovasculares (MACE) - morte cardiovascular, infarto agudo do miocárdio (IAM) ou acidente vascular encefálico (AVE) não fatais - de forma robusta em 70%. O metotrexato impactou queda de 19% no risco de IAM e de eventos globais em 28%. Por outro lado, o tratamento com anti-inflamatórios não esteroidais inibidores COX2 seletivos mais que dobrou o risco de AVE, enquanto que o corticosteroide elevou os MACE em relevantes 62%.

Até o momento, o estudo clínico randomizado mais debatido e que confirmou a hipótese de que o controle da inflamação sistêmica, em pacientes de muito alto risco (pacientes pós IAM que mesmo após terapia secundária otimizada mantinham PCR-t elevada), reduziria eventos CV foi o Canakinumab Anti-Inflammatory Thrombosis Out- comes Study (CANTOS).1616 Ridker PM, Everett BM, Thuren T, MacFadyen JG, Chang WH, Ballantyne C, et al. Antiinflammatory therapy with canakinumab for atherosclerotic disease. N Engl J Med. 2017;377(12):1119-31. Tal trabalho demonstrou que o bloqueio da interleucina 1b com um anticorpo monoclonal controlou a inflamação sistêmica e reduziu, de forma adicional ao tratamento otimizado, a mortalidade cardiovascular, IAM e AVE em 15% numa população de altíssimo risco de recorrência de eventos CV. Este fato abriu caminhos para mudanças paradigmáticas no entendimento da fisiopatologia da doença arterial coronariana e contribuirá de forma muito significativa no desenvolvimento futuro de novos medicamentos, com alvos até então inexplorados.

  • Minieditorial referente aoo artigo: Risco Cardiovascular em Pacientes Psoriásicos: Avaliação de Parâmetros Clínicos, Funcionais e Morfológicos

References

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Set 2019
  • Data do Fascículo
    Ago 2019
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