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Débito Cardíaco Contínuo Não Invasivo: Mito ou Realidade

Palavras-chave
Débito Cardíaco; Intervenções Farmacológicas; Impedância Elétrica; Exercício Respiratório

O débito cardíaco (DC) é um parâmetro importante da função do sistema cardiovascular. Alterações na função cardíaca são comumente encontradas como resposta ao treinamento físico e intervenções farmacológicas.11 Coats AJ, Adamopoulos S, Radaelli A, McCance A, Meyer TE, Bernardi L, et al. Controlled trial of physical training in chronic heart failure. Exercise performance, hemodynamics, ventilation, and autonomic function. Circulation. 1992;85(6):2119-31. Infelizmente os métodos para avaliar o DC são invasivos, levando a complicações bem conhecidas e considerados inconvenientes para a prática do dia a dia.22 Cannesson M, Pestel G, Ricks C, Hoeft A, Perel A. Hemodynamic monitoring and management in patients undergoing high risk surgery: a survey among North American and European anesthesiologists. Crit Care. 2011;15(4):R197. Por este motivo, a procura por novos métodos não invasivos que possam detectar com precisão o DC tanto em repouso como no exercício ou como resposta a uma intervenção clínica tornou-se um desejo nos meios acadêmicos e não acadêmicos. O método ideal para medir o DC em repouso e durante o exercício deve ser não invasivo, seguro, reproduzível e barato.33 Vignati C, Cattadori G. Measuring Cardiac Output during Cardiopulmonary Exercise Testing. Ann Am Thorac Soc. 2017;14(Suppl1):S48-52.

O teste de exercício cardiopulmonar (TCP) é recomendado na avaliação da aptidão cardiorrespiratória e da tolerância ao exercício em atletas, população geral e pacientes.44 Balady GJ, Arena R, Sietsema K, Myers J, Coke L, Fletcher GF, et al. Clinician’s Guide to cardiopulmonary exercise testing in adults: a scientific statement from the American Heart Association. Circulation. 2010;122(2):191-225. Resumidamente, o DC e volume sistólico podem ser estimados durante o TCP pelo VO2 medido.55 Stringer WW, Hansen JE, Wasserman K. Cardiac output estimated noninvasively from oxygen uptake during exercise. J Appl Physiol. 1997;82(3):908-12. Em 2001, Williams et al.,66 Williams SG, Cooke GA, Wright DJ, Parsons WJ, Riley RL, Marshall P, et al. Peak exercise cardiac power output; a direct indicator of cardiac function strongly predictive of prognosis in chronic heart failure. Eur Heart J. 2001;22(16):1496-503. foram os primeiros a integrar o TCP com medidas não invasivas de DC usando respiração repetida (RR) de dióxido de carbono, mas a técnica foi rapidamente abandonada devido à sua dificuldade e imprecisão. Outro método não invasivo é a bioimpedância elétrica torácica (BET), descrita pela primeira vez em 1966 por Kubicek et al.,77 Kubicek WG, Karnegis JN, Patterson RP, Witsoe DA, Mattson RH. Development and evaluation of an impedance cardiac output system. Aerosp Med. 1966;37(12):1208-12. que mede a resistência torácica como resultado de mudanças na velocidade do sangue durante o ciclo cardíaco e usa um algoritmo para calcular o DC.

Outra técnica mais promissora baseia-se na biorreatância torácica (BT) (dispositivo NICOM; Cheetah Medical Inc., Wilmington, DE), que analisa as variações da tensão batimento a batimento após a aplicação de uma corrente de alta frequência transtorácica. Este dispositivo registra a fase da corrente elétrica no peito. O volume sistólico é diretamente proporcional ao deslocamento de fase.88 Keren H, Burkhoff D, Squara P. Evaluation of a noninvasive continuous cardiac output monitoring system based on thoracic bioreactance. Am J Physiol Heart Circ Physiol. 2007;293(1):H583-589. Apesar de alguns estudos controversos, essa técnica parecia ser mais confiável.88 Keren H, Burkhoff D, Squara P. Evaluation of a noninvasive continuous cardiac output monitoring system based on thoracic bioreactance. Am J Physiol Heart Circ Physiol. 2007;293(1):H583-589.

9 Raval NY, Squara P, Cleman M, Yalamanchili K, Winklmaier M, Burkhoff D. Multicenter evaluation of noninvasive cardiac output measurement by bioreactance technique. J Clin Monit Comput. 2008;22(2):113-9.
-1010 Rich JD, Archer SL, Rich S. Noninvasive cardiac output measurements in patients with pulmonary hypertension. Eur Respir J. 2013;42(1):125-33. Vale ressaltar que a medida do DC é simples de executar e não requer cooperação do paciente, tanto em repouso quanto no pico do exercício. Deve-se notar que condições, como derrame pleural significativo, impactam negativamente na acurácia deste método.1111 Jones TW, Houghton D, Cassidy S, MacGowan GA, Trenell MI, Jakovljevic DG. Bioreactance is a reliable method for estimating cardiac output at rest and during exercise. Br J Anaesth. 2015;115(3):386-91.

Em uma metanálise, os erros percentuais para os dispositivos de monitoramento de DC foram de 42% para BET e BT, 40% para RR de dióxido de carbono e 62% para métodos de análise de onda de pulso.1212 Joosten A, Desebbe O, Suehiro K, Murphy LS-L, Essiet M, Alexander B, et al. Accuracy and precision of non-invasive cardiac output monitoring devices in perioperative medicine: a systematic review and meta-analysis†. Br J Anaesth. 2017;118(3):298-310. Na metanálise mais recente avaliando pacientes adultos e pediátricos em várias situações clínicas (a maioria em ambiente hospitalar) mostrou que a acurácia da BET apresentou alta heterogeneidade entre os estudos e que o erro percentual médio agrupado em todos os subgrupos estava acima dos 30% aceitáveis. Portanto, a BET não poderia substituir a termodiluição e a ecocardiografia transtorácica para a medição de valores absolutos de DC.1313 Sanders M, Servaas S, Slagt C. Accuracy and precision of non-invasive cardiac output monitoring by electrical cardiometry: a systematic review and meta-analysis. J Clin Monit Comput. 2019 Jun 7 [Epub ahead of print]

Okwose et al.,1414 Okwose NC, Chowdhury S, Houghton D, Trenell MI, Eggett C, Bates M, et al. Comparison of cardiac output estimates by bioreactance and inert gas rebreathing methods during cardiopulmonary exercise testing. Clin Physiol Funct Imaging. 2018;38(3):483-90. mostraram que os métodos de RR de gás inerte e BT tiveram níveis aceitáveis de concordância para estimar o DC em graus mais altos de demanda metabólica durante um TCP. No entanto, eles concluíram que não poderiam ser usados de forma intercambiável devido à grande disparidade nos resultados de repouso e nos exercícios de baixa a moderada intensidade. Ao contrário deste estudo, Torto et al.,1515 del Torto A, Skattebo Ø, Hallén J, Capelli C. Cardiac output with modified cardio-impedance against inert gas rebreathing during sub-maximal and maximal cycling exercise in healthy and fit subjects. Eur J Appl Physiol. 2019;119(1):163-70. mostraram que a cardio-impedância poderia ser menos ideal para intensidades supra máximas de exercício.

Nesta edição, Coll et al.,1616 Cool MT. Confiabilidade Teste-Reteste de Medição Não-Invasiva de Débito Cardíaco durante Exercício em Voluntários Saudáveis sob Condições Clínicas de Rotina. Arq Bras Cardiol. 2019; 113(2):231-239. avaliaram a confiabilidade teste-reteste do DC e trabalho cardíaco durante TCP, pela BT em adultos saudáveis sob condições clínicas de rotina em ambiente não controlado. Eles concluíram que pelos achados, existe o impedimento do uso clínico da BT em indivíduos saudáveis enquanto os erros de medição (outliers) não forem identificados (32% da amostra inicial). Ou seja, em condições clínicas de rotina quase um terço dos pacientes apresentaram erros de medição, e segundo os autores, estes outliers foram devidos provavelmente por uma causa técnica subjacente, sendo necessário melhorias adicionais na BT como, por exemplo, em relação à aplicação e à qualidade dos eletrodos. Este estudo contestou os resultados do estudo de Jones et al.,1111 Jones TW, Houghton D, Cassidy S, MacGowan GA, Trenell MI, Jakovljevic DG. Bioreactance is a reliable method for estimating cardiac output at rest and during exercise. Br J Anaesth. 2015;115(3):386-91. que havia demonstrado que a BT poderia ser viável em condições de controle rigoroso e em ambiente de pesquisa.

Os resultados dos estudos publicados até o momento, mostraram que mesmo em situações de uso hospitalar e de ambiente controlado (anestesia, terapia intensiva e mesmo ambulatorial) em que os pacientes estavam em repouso, a monitorização não invasiva do DC encontrou grande variabilidade entre os métodos não invasivos e muitas vezes apresentaram erros inaceitáveis em relação aos procedimentos considerados padrão ouro, como a termodiluição. Em um cenário de exercícios e não controlado, tanto para o diagnóstico de doenças como para aprimoramento do condicionamento de atletas, os métodos não invasivos para monitoramento do DC parecem ser mais um mito do que realidade nos dias atuais quando comparados aos métodos padrões para o cálculo do DC.

É preciso continuar a busca para determinação do DC por métodos não invasivos no repouso e no exercício. Nossa esperança é que em um futuro próximo e com o progresso no desenvolvimento tecnológico, o monitoramento do DC não invasivo possa ser usado em ambientes controlados e não controlados, além do cenário perioperatório atual.

  • Minieditorial referente ao artigo: Confiabilidade Teste-Reteste de Medição Não-Invasiva de Débito Cardíaco durante Exercício em Voluntários Saudáveis sob Condições Clínicas de Rotina

References

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Set 2019
  • Data do Fascículo
    Ago 2019
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