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Caso 1/2015 Homem de 76 Anos de Idade com Anomalia de Ebstein em Evolução Natural

Anomalia de Ebstein; Cardiopatias Congênitas

Dados clínicos: cansaço de pequenos a médios esforços há 2 meses com episódios de palpitações precordiais. Ignorava a existência de cardiopatia, nunca recebeu medicação específica ao longo da vida e não relatava cianose. Foi medicado com furosemida, hidroclorotiazida, ácido acetilsalicílico (AAS) e losartana com melhora dos sintomas. Exames laboratoriais mostraram hematias (H) = 6.800.000/mm3; hematócrito (Hct) = 63%; hemoglobina (Hg) = 20,6 g/dL; ureia de 103; creatinina de 2,03; peptídeo natriurético cerebral (BN P) = 286.

Exame físico: eupneico, cianótico +, pulsos arrítmicos, turgência jugular ++. Peso de 65 kg, altura de 170 cm, pressão arterial (PA) de 100/60 mmHg, frequência cardíaca (FC) de 82 bpm, saturação de oxigênio de 88%. Aorta (Ao) palpada + na fúrcula.

No precórdio, ictus cordis difuso no quarto e quinto espaço intercostal esquerdo (eice) e impulsões sistólicas discretas na borda esternal esquerda (BE E). Bulhas cardíacas hipofonéticas; sopro sistólico, +, rude, borda esternal esquerda e ponta. O fígado não era palpado.

Exames complementares

Eletrocardiograma (ECG) mostrou ritmo de fibrilação atrial e sinais de sobrecarga diastólica de ventrículo direito (VD) e hemibloqueio anterossuperior do ramo esquerdo. O complexo QRS era de baixa voltagem com morfologia qr em V1, RS em V6 com distúrbio final de condução pelo ramo direito. AQRS: - 70º, AT: + 30° (Figura 1).

Figura 1
Radiografia de tórax mostra área cardíaca aumentada, à custa das cavidades direitas com trama vascular pulmonar próxima do normal. Eletrocardiograma salienta a fibrilação atrial com sobrecarga diastólica de ventrículo direito e hemibloqueio anterior esquerdo.

Radiografia de tórax mostrou área cardíaca aumentada em grau moderado (índice cardiotorácico: 0,61), decorrente das cavidades direitas. A trama vascular pulmonar era discretamente diminuída, o arco médio escavado e havia aumento do botão aórtico. (Figura 1).

Ecocardiograma (Figura 2) mostrou valva tricúspide displásica e espessada, com acolamento da cúspide septal de 19 mm, com falha de coaptação central e acentuada insuficiência tricúspide. As cavidades direitas eram muito dilatadas (VD = 47 mm; ventrículo esquerdo − VE = 38 mm; AE = 41 mm; Ao = 36 mm), sendo a área do átrio direito acrescida da do VD atrializado (com 56,5 cm2), do VD funcional (com 17,6 cm2), do AE (com 13,9 cm2) e do VE (com 15,6 cm2). Índice de Celemajer calculado em 1,2. A veia cava inferior era dilatada com 23 mm, com contraste espontâneo. O anel tricúspide tinha 57 mm, o mitral 35 mm, o pulmonar 20 mm e o aórtico 24 mm. Fração de ejeção do VE de 66% e as artérias pulmonares com 14 mm. Havia forame oval com shunt bidirecional com septo atrial abaulado para a esquerda. A pressão sistólica de VD era de 30 mmHg.

Figura 2
Ecocardiograma apical de 4 câmaras salienta, em A, o grande aumento das cavidades cardíacas direitas com acolamento nítido da cúspide septal no septo interventricular (seta). O septo interatrial está abaulado para a esquerda e as cavidades esquerdas rechaçadas nitidamente. Em corte subcostal, nota-se o aumento acentuado do átrio direito (AD) em B e, no corte de eixo longo, na borda esternal, o grande aumento do ventrículo direito (VD), com ventrículo esquerdo (VE) rechaçado posteriormente, em C. AE: átrio esquerdo.

Diagnóstico clínico: anomalia de Ebstein com displasia acentuada da valva tricúspide e acentuada insuficiência tricúspide, com hipoxemia discreta crônica em evolução natural.

Raciocínio clínico: os elementos clínicos de cardiopatia cianogênica com hipofluxo pulmonar e hipoxemia de longa data se expressam por cansaço e elevação do hematócrito. As bulhas hipofonéticas orientam a normoposição arterial e o hipofluxo pulmonar, decorrentes de insuficiência tricúspide acentuada e com sopro sistólico discreto, pela contiguidade de câmaras de baixa pressão. O átrio direito, o VD atrializado e o VD funcional comportam-se como verdadeira câmara única. Sobrecarga diastólica de VD no eletrocardiograma (ECG) orienta o diagnóstico da insuficiência tricúspide. Radiografia de tórax salienta o aumento acentuado das cavidades direitas com trama vascular pulmonar discretamente diminuída. Esses elementos, em conjunto, orientam o diagnóstico da anomalia de Ebstein.

Diagnóstico diferencial: cardiopatias com hipoxemia e dilatação das cavidades direitas são também encontradas em evolução natural na estenose pulmonar de longa duração, mas com sobrecarga sistólica de VD. Dificilmente outras cardiopatias se exteriorizam da maneira exposta.

Conduta: Em face da repercussão hipoxêmica de longa data, com manifestações clínicas desfavoráveis, considerou‑se até a operação cardíaca para substituição valvar tricúspide, apesar do risco maior em vista da idade avançada do paciente. Para tal, outros estudos da viabilidade do VD se mostram necessários, para determinar mais adequadamente a função do VD e, por sua vez, para reforçar a conduta mais adequada. Como precaução, foi adotada conduta clínica viabilizando o tratamento da arritmia cardíaca e da insuficiência cardíaca, tendo principalmente como foco a idade avançada do paciente.

Comentários: raros casos semelhantes de anomalia de Ebstein são encontrados em evolução natural em idades igualmente avançadas1Lincoln T, Stewart C, Shah P. An unusual first presentation of Ebstein’s anomaly in a 72-year-old patient. Ann Thorac Surg. 2012;93(2):e19-20.

D’Andrea A, Scognamiglio G, Giordano F, Cuomo S, Russo MG, Rinaldi G, et al. An atypical assessment of Ebstein’s anomaly in an 86-year-old man. Monaldi Arch Chest Dis. 2011;76(2):104-5.
-3Ukoh VA, Adesanya AA. Complex Ebstein’s anomaly in a 80 year old Nigerian woman. Niger J Clin Pract. 2007;10(3):255-8.. É conhecido de que apenas 5% desses pacientes sobrevivem naturalmente além da 5ª década da vida. O fato é que mesmo com insuficiência tricúspide acentuada, por vezes são identificados esses casos que extrapolam os fenômenos de compensação cardíaca a tão longo prazo. Pode-se afirmar que essa anomalia se torna bem tolerada desde que o VD se mostre com função preservada, como parece ter ocorrido nesse paciente. No entanto, quando o VD mostra disfunção, a evolução se torna encurtada, imposta pela maior sobrecarga de volume. A arritmia cardíaca supraventricular, como a fibrilação atrial, acresce maior risco a essa evolução, dada a possibilidade maior da formação de trombos e embolias. Mesmo com o conhecimento de evolução potencialmente desfavorável, a dificuldade de indicação cirúrgica reside em aspectos adquiridos, como fibrose miocárdica e alterações hipoxêmicas em outros órgãos, como rim e fígado, e que, sem dúvida, acrescem riscos em paciente com idade avançada. Daí a orientação lógica para a conduta clínica expectante.

References

  • 1
    Lincoln T, Stewart C, Shah P. An unusual first presentation of Ebstein’s anomaly in a 72-year-old patient. Ann Thorac Surg. 2012;93(2):e19-20.
  • 2
    D’Andrea A, Scognamiglio G, Giordano F, Cuomo S, Russo MG, Rinaldi G, et al. An atypical assessment of Ebstein’s anomaly in an 86-year-old man. Monaldi Arch Chest Dis. 2011;76(2):104-5.
  • 3
    Ukoh VA, Adesanya AA. Complex Ebstein’s anomaly in a 80 year old Nigerian woman. Niger J Clin Pract. 2007;10(3):255-8.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan 2015

Histórico

  • Recebido
    23 Jul 2014
  • Revisado
    08 Ago 2014
  • Aceito
    08 Ago 2014
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