Acessibilidade / Reportar erro

Uso da Terapia Diurética em Pacientes com Insuficiência Cardíaca Descompensada e Lesão Renal Aguda. O Que Fazer nesse Dilema?

Palavras-chave
Insuficiência Cardíaca/complicações; Insuficiênca Renal Crônica/complicações; Mortalidade; Saúde Pública; Envelhecimento; Hospitalização; Diuréticos/uso terapêutico; Creatinina; Marcadores Biológicos; Lipocalinas; Impedância Elétrica

A insuficiência cardíaca (IC) é um grave problema de saúde pública devido a sua alta prevalência, morbidade e mortalidade,11. Benjamin EJ, Virani SS, Callaway CW, Chamberlain AM, Chang AR, Cheng S, et al. Heart disease and stroke statistics-2018 update: a report from the American Heart Association. Circulation. 2018;137(12):e67-492. liderando entre as causas de hospitalização nos Estados Unidos,22. Heidenreich PA, Albert NM, Allen LA, Bluemke DA, Butler J, Fonarow GC, et al. Forecasting the impact of heart failure in the United States: a policy statement from the American Heart Association. Circ Heart Fail. 2013;6(3):606-19. A prevalência da doença aumenta com a idade, tornando os pacientes idosos ainda mais suscetíveis às repercussões desta doença.11. Benjamin EJ, Virani SS, Callaway CW, Chamberlain AM, Chang AR, Cheng S, et al. Heart disease and stroke statistics-2018 update: a report from the American Heart Association. Circulation. 2018;137(12):e67-492. Isso aumenta a importância do tratamento preciso da IC e suas complicações, entre elas a IC descompensada (ICd).

Em pacientes com ICd, que necessitam de terapia diurética, é comum observamos a presença de lesão renal aguda (LRA) concomitante. A grande dúvida na hora de realizar o tratamento com diuréticos nas situações em que a função renal está alterada é saber o motivo da disfunção: Trata-se de um paciente ainda congesto, necessitando de otimização da terapia diurética (síndrome cardiorrenal tipo I)? Ou trata-se de um paciente que a terapia diurética foi realizada de forma excessiva, causando hipovolemia, o que levou a uma baixa perfusão renal (LRA pré-renal) ou até a uma necrose tubular aguda?

Essa dúvida ganha muita importância na prática clínica por implicar em abordagens terapêuticas diametralmente opostas nas duas situações: uma delas intensificar a terapia diurética e a outra suspender os diuréticos, ou até mesmo iniciar hidratação venosa parcimoniosa. E o fato destes pacientes muitas vezes serem idosos, multicomorbidos, em contexto de infecção concomitante, torna a leitura do perfil hemodinâmico um grande desafio clínico. Dificilmente um médico que trabalhe em unidades de emergência ou de terapia intensiva nunca esteve diante deste dilema.

Publicações anteriores corroboram esta dúvida, com alguns artigos entendendo a congestão como o grande fator associado a piora da lesão renal em pacientes com ICd, indicando uma terapia diurética mais agressiva,33. Testani JM, Chen J, McCauley BD, Kimmel SE, Shannon RP. Potential effects of aggressive decongestion during the treatment of decompensated heart failure on renal function and survival. Circulation. 2010;122(3):265-72.,44. Grodin JL, Stevens SR, Fuentes LL, Kiernan M, Birati EY, Gupta D, et al. Intensification of medication therapy for cardiorenal syndrome in acute decompensated heart failure. J Card Fail. 2016;22(1):26-32. enquanto outros reconhecem o potencial efeito deletério da terapia diurética agressiva, entre eles a hipovolemia, indicando assim uma terapia diurética mais cautelosa,55. Butler J, Forman DE, Abraham WT, Gottlieb SS, Loh E, Massie BM, et al. Relationship between heart failure treatment and development of worsening renal function among hospitalized patients. Am Heart J. 2004;147(2):331-8. principalmente em pacientes idosos66. Maeder MT, Rickli H, Pfisterer ME, Muzzarelli S, Ammann P, Fehr T, et al. Incidence, clinical predictors, and prognostic impact of worsening renal function in elderly patients with chronic heart failure on intensive medical therapy. Am Heart J. 2012;163(3):407-14. (Figura 1).

Figura 1
Representação esquemática da fisiopatologia e conduta em relação a terapia diurética de portadores de insuficiência cardíaca descompensada em tratamento.

Os métodos laboratoriais e de imagem comumente disponíveis para acessar o perfil volêmico e hemodinâmico costumam pouco ajudar nesse quesito, já que não existe um método considerado padrão-ouro, tão pouco diretrizes ou protocolos que guiem quanto a melhor forma de responder essa questão. Métodos comumente usados em contexto de UTI, como a variação da pressão de pulso e a visualização da colapsibilidade das veias cavas superior e inferior, são validados apenas para a responsividade à infusão de fluídos, pouco ajudando quando a dúvida é a retirada de fluidos, além de serem eficazes apenas em pacientes em ventilação mecânica. Já a dosagem plasmática do peptídeo natriurético tipo B (BNP) e a do fragmento N-terminal do peptídeo natriurético tipo B (NT-ProBNP) tem uma importância bem estabelecida no diagnóstico e prognóstico da ICd, porém foi pouco estudada como uma ferramenta para acessar o perfil hemodinâmico nestes pacientes, com um estudo disponível mostrando uma performance ruim.77. Almeida Junior GLG, Clausll N, Garcia MI, Esporcatte R, Rangel FOD, Rocha RM, et al. Natriuretic peptide and clinical evaluation in the diagnosis of heart failure hemodynamic profile: comparison with tissue doppler echocardiography. Arq Bras Cardiol. 2018;110(3):270-7.

O artigo de Villacorta et al.,88. Villacorta H, Villacorta AS, Villacorta LSC, Xavier ALR, Kanaan S, Rohen FM, et al. Agravamento da Função Renal e Congestão em Pacientes com Insuficiência Cardíaca Aguda: Estudo com Análise Vetorial de Bioimpedância Elétrica (BIVA) e Lipocalina Associada à Gelatinase Neutrofílica (NGAL). Arq Bras Cardiol.2021; 116(4):715-724. reportado no atual volume dos Arquivos Brasileiros de Cardiologia,88. Villacorta H, Villacorta AS, Villacorta LSC, Xavier ALR, Kanaan S, Rohen FM, et al. Agravamento da Função Renal e Congestão em Pacientes com Insuficiência Cardíaca Aguda: Estudo com Análise Vetorial de Bioimpedância Elétrica (BIVA) e Lipocalina Associada à Gelatinase Neutrofílica (NGAL). Arq Bras Cardiol.2021; 116(4):715-724. busca justamente investigar se o mecanismo da piora da função renal após o tratamento diurético agressivo em pacientes com ICd ocorre por congestão ou por lesão tubular renal. O artigo busca também avaliar se a presença de LRA durante o tratamento ou a presença de congestão no momento da alta atuam como preditores de desfecho após um episódio de ICd. Foram avaliados 85 pacientes, utilizando o NGAL como marcador para lesão tubular renal e o index de hidratação com a bioimpedância elétrica para definir a presença de congestão no momento da alta. O estudo chegou à conclusão de que a congestão persistente, mas não a LRA, está associada a piores desfechos em pacientes hospitalizados por ICd; além disso, mostrou que a LRA foi consequência da congestão, não de uma lesão tubular renal.

Os autores encerram o artigo88. Villacorta H, Villacorta AS, Villacorta LSC, Xavier ALR, Kanaan S, Rohen FM, et al. Agravamento da Função Renal e Congestão em Pacientes com Insuficiência Cardíaca Aguda: Estudo com Análise Vetorial de Bioimpedância Elétrica (BIVA) e Lipocalina Associada à Gelatinase Neutrofílica (NGAL). Arq Bras Cardiol.2021; 116(4):715-724. mostrando algumas publicações que advogam a favor da terapia diurética agressiva e concluindo que, desde que a redução agressiva da congestão seja promovida, a LRA não terá impacto negativo nos desfechos.

O artigo88. Villacorta H, Villacorta AS, Villacorta LSC, Xavier ALR, Kanaan S, Rohen FM, et al. Agravamento da Função Renal e Congestão em Pacientes com Insuficiência Cardíaca Aguda: Estudo com Análise Vetorial de Bioimpedância Elétrica (BIVA) e Lipocalina Associada à Gelatinase Neutrofílica (NGAL). Arq Bras Cardiol.2021; 116(4):715-724. acrescenta à visão atual sobre o assunto principalmente de duas maneiras. Primeiro, pelo simples fato de trazer para debate esse tema tão importante e comum na prática médica, mas relativamente pouco debatido e estudado. Segundo, por trazer algumas novidades na forma de avaliar a questão, mais precisamente o uso do NGAL, um marcador de lesão renal mais preciso e precoce que a creatinina, e o uso da bioimpedância elétrica para detectar congestão subclínica, o que aumentaria a precisão da avaliação e a capacidade de predizer desfechos.

Apesar disso, por se tratar de uma questão complexa e de difícil avaliação com os métodos disponíveis na prática médica, o manejo de pacientes com LRA em contexto de ICd ainda continua um enorme desafio clínico, com muitas perguntas e poucas respostas definitivas. Dessa forma, mais estudos são necessários para ampliar o entendimento sobre o assunto. No cenário atual, a individualização dos casos e a percepção clínica do avaliador ainda são fundamentais.

  • Minieditorial referente ao artigo: Agravamento da Função Renal e Congestão em Pacientes com Insuficiência Cardíaca Aguda: Estudo com Análise Vetorial de Bioimpedância Elétrica (BIVA) e Lipocalina Associada à Gelatinase Neutrofílica (NGAL)

Referências

  • 1
    Benjamin EJ, Virani SS, Callaway CW, Chamberlain AM, Chang AR, Cheng S, et al. Heart disease and stroke statistics-2018 update: a report from the American Heart Association. Circulation. 2018;137(12):e67-492.
  • 2
    Heidenreich PA, Albert NM, Allen LA, Bluemke DA, Butler J, Fonarow GC, et al. Forecasting the impact of heart failure in the United States: a policy statement from the American Heart Association. Circ Heart Fail. 2013;6(3):606-19.
  • 3
    Testani JM, Chen J, McCauley BD, Kimmel SE, Shannon RP. Potential effects of aggressive decongestion during the treatment of decompensated heart failure on renal function and survival. Circulation. 2010;122(3):265-72.
  • 4
    Grodin JL, Stevens SR, Fuentes LL, Kiernan M, Birati EY, Gupta D, et al. Intensification of medication therapy for cardiorenal syndrome in acute decompensated heart failure. J Card Fail. 2016;22(1):26-32.
  • 5
    Butler J, Forman DE, Abraham WT, Gottlieb SS, Loh E, Massie BM, et al. Relationship between heart failure treatment and development of worsening renal function among hospitalized patients. Am Heart J. 2004;147(2):331-8.
  • 6
    Maeder MT, Rickli H, Pfisterer ME, Muzzarelli S, Ammann P, Fehr T, et al. Incidence, clinical predictors, and prognostic impact of worsening renal function in elderly patients with chronic heart failure on intensive medical therapy. Am Heart J. 2012;163(3):407-14.
  • 7
    Almeida Junior GLG, Clausll N, Garcia MI, Esporcatte R, Rangel FOD, Rocha RM, et al. Natriuretic peptide and clinical evaluation in the diagnosis of heart failure hemodynamic profile: comparison with tissue doppler echocardiography. Arq Bras Cardiol. 2018;110(3):270-7.
  • 8
    Villacorta H, Villacorta AS, Villacorta LSC, Xavier ALR, Kanaan S, Rohen FM, et al. Agravamento da Função Renal e Congestão em Pacientes com Insuficiência Cardíaca Aguda: Estudo com Análise Vetorial de Bioimpedância Elétrica (BIVA) e Lipocalina Associada à Gelatinase Neutrofílica (NGAL). Arq Bras Cardiol.2021; 116(4):715-724.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Abr 2021
  • Data do Fascículo
    Abr 2021
Sociedade Brasileira de Cardiologia - SBC Avenida Marechal Câmara, 160, sala: 330, Centro, CEP: 20020-907, (21) 3478-2700 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil, Fax: +55 21 3478-2770 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revista@cardiol.br