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Economia Comportamental e Adesão à Inovação: Construindo Novas Habilidades para Superar Barreiras ao Cuidado Mediado pela Tecnologia

Palavras-chave
Telemedicina/economia; Telemedicina/legislação e jurisprudência; Telemedicina/tendências; Política Nacional de Ciência; Tecnologia e Inovação em Saúde; Telemedicina/métodos

Introdução

O Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou recentemente uma nova resolução sobre o uso da telemedicina no Brasil. A resolução número 2227 de 2018, que estabelece os critérios para o uso da telemedicina, foi publicado no Diário Oficial da União (DOU) em 6 de fevereiro de 2019.11 Conselho Federal de Medicina. Resolução Nº 2.227, de 13 de dezembro de 2018. Define a telemedicina como forma de prestação de serviços médicos mediado por tecnologias. Diário Oficial da União;Poder Executivo. Brasilia(DF), 6 fev 2019. Seção 1,p.58-59. [Internet]. [Citado em 20 maio 2019]. Disponível em: http://www.in.gov.br/materia/-asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/62181135
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Essa nova resolução, que definiu a telemedicina como uma maneira de oferecer serviços médicos por meio da tecnologia, é bem mais agressiva que a anterior publicada em 2002. Essa limitava o uso da telemedicina a consultas médicas realizadas por telefone ou internet, e exigia a presença de um profissional da saúde em cada uma das pontas do canal de comunicação. A resolução atual expandiu o conceito da telemedicina em prover soluções tecnológicas para o monitoramento e tratamento remoto (prescrição de medicamentos e intervenções cirúrgicas) dos pacientes, e análise de resultados laboratoriais. Contudo, logo após sua divulgação, o novo documento causou intensa discussão pública sobre o tema, dividindo partes a favor e contra a prática da telemedicina em todo o país. O debate foi tão intenso, que o Conselho Federal de Medicina revogou a resolução, conforme publicado do DOU em 6 de março de 2019.22 Conselho Federal de Medicina. Resolução Nº 2.228, de 06 de março de 2019. Revoga a Resolução CFM 2.227 e restabelece expressamente a vigência da Resolução CFM N.1643/2002, Diario Oficial da União: Poder Executivo de 26 de agosto de 2002. Seção 1. p.205 [Internet]. [Citado em 20 maio 2019]. Disponível em: http://www.in.gov.br/materia/-asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/65864894
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A revogação da resolução após intensa discussão da sociedade indica os grandes desafios acerca da implementação no Brasil do cuidado em saúde mediado pela tecnologia. Esse debate não deveria ser o fim, e sim o início de uma mobilização social para remodelar o uso da tecnologia conectada na saúde no país. Para vencer as barreiras à adesão do cuidado mediado por tecnologia no Brasil, deve-se compreender melhor a posição das partes interessadas, bem como considerar o meio político e cultura, as bases legais e éticas, e a infraestrutura de tecnologia disponível.33 Maldonado JMSV, Marques AB, Cruz A. Telemedicine challenges to dissemination in Brazil. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro. 2016;32(supl 2):e00155615

É fundamental um entendimento mais abrangente do cenário atual para que o cuidado mediado pela tecnologia possa se ajustar às necessidades dos brasileiros, e abordagens criadas possam não só beneficiar a sociedade como serem aceitas por médicos e outras partes interessadas.

Objetivos

Trata-se de um artigo exploratório, cujo objetivo é apresentar uma visão pessoal de potenciais barreiras para a incorporação e disseminação da telemedicina no Brasil. Outro objetivo é discutir abordagens para superar tais barreiras.

A) Análise das partes interessadas (stakeholders)

A.1) O Estado e a telemedicina - O governo como parte interessada

Do ponto de vista político, as iniciativas governamentais em relação à telemedicina foram tomadas principalmente pelo Ministério da Saúde e criadas para promover o seu uso na expansão e melhoria dos serviços de saúde. No entanto, as dimensões envolvidas encontram-se além dos limites estabelecidos pelo Ministério da Saúde. É necessária uma ação efetiva interministerial para estimular a economia (inovação e eficiência econômica) e a dimensão social (interesse da população e igualdade) para impulsionar a telemedicina em direção à expansão e melhoria do cuidado em saúde.

A.2) Desafiando o “status quo” - Fornecedores como parte interessada: instituições, médicos e outros profissionais

A cultura é outro fator limitante na disseminação da telemedicina do ponto de vista das instituições, médicos e outros profissionais. Desde a necessidade de se ajustar ao novo processo de trabalho, à desafiadora relação entre estrutura de poder e estrutura profissional, a adoção de uma nova tecnologia pode gerar grande resistência. A resistência à mudança é impulsionada pelos conceitos de aversão ao risco44 Kahneman D, Knetsch JL, Thaler RH. Anomalies: The Endowment Effect, Loss Aversion, and Status Quo Bias. Journal of Economic Perspectives., 19915(1):193-206. e incertezas comumente relacionadas à introdução de uma “nova maneira de se fazer as coisas”. Por outro lado, o cuidado viabilizado pela tecnologia pode superar o obstáculo de acesso imposto pela distância (especialmente em um país de dimensão continental como o Brasil), com ganhos esperados com tecnologias da informação e da comunicação, ou seja, aumentando o acesso e reduzindo-se os custos. No entanto, a interdependência entre a telemedicina e a organização dos serviços de saúde em direcionar novos investimentos pode causar uma mudança na arena de poder. Tais complexidades e incertezas impõem uma barreira importante à disseminação de novas tecnologias.

Ainda, existe uma resistência à telemedicina por parte dos profissionais.22 Conselho Federal de Medicina. Resolução Nº 2.228, de 06 de março de 2019. Revoga a Resolução CFM 2.227 e restabelece expressamente a vigência da Resolução CFM N.1643/2002, Diario Oficial da União: Poder Executivo de 26 de agosto de 2002. Seção 1. p.205 [Internet]. [Citado em 20 maio 2019]. Disponível em: http://www.in.gov.br/materia/-asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/65864894
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A telemedicina envolve agentes multidisciplinares, incluindo profissionais da saúde de várias disciplinas, experts em tecnologia da informação e comunicação, administradores e políticos. A adoção dessa tecnologia requer a reformulação dos processos de trabalho em seus múltiplos aspectos que geram tensões e conflitos. Os médicos, em geral, não são treinados para fazerem parte de um time e tendem a se comportar como chefes, o que pode aumentar a tensão entre os membros. Além disso, a telemedicina muda a típica relação médico-paciente, o que demanda um processo de aceitação, por todos, da mediação feita pela tecnologia. Mais que isso, os médicos acreditam que essas tecnologias possam constituir uma prática médica insegura, em parte pela inviabilidade de se realizar um exame físico à distância. Superar barreiras culturais profissionais e institucionais é um passo importante no processo de disseminação e consolidação da telemedicina. Finalmente, o reembolso é outra questão; os médicos se sentirão pressionados a cuidar de um maior número de pacientes, dedicando menos tempo para cada paciente, e recebendo menor taxa de reembolso.

A.3) Pacientes: o que eles desejam? Será que estão dispostos a negociar? Consumidores como parte interessada

Pela perspectiva do paciente, apesar de a telemedicina proporcionar um valor adicional à sua necessidade, bem como um acesso à saúde com menor custo, como consumidor da saúde, é possível que se recuse a comprar o produto “inovador” por esse demandar uma mudança de comportamento.55 Gourville JT. Eager sellers and stony buyers. Harvard Business Review. 2006;84(6):98-106,145. Apesar do menor custo em termos financeiros, existem custos psicológicos associados a mudanças de comportamento: as pessoas normalmente supervalorizam os benefícios que já possuem em relação àqueles que não possuem, de maneira irracional.66 Ariely D. The End of Rational Economics. Harv Bus Rev.2009; July-August; R0907H.

B) Economia comportamental e a adoção da inovação

A compreensão da psicologia dos ganhos e perdas, e mais profundamente, dos conceitos de aversão à perda, viés do status quo, e o efeito de dotação,44 Kahneman D, Knetsch JL, Thaler RH. Anomalies: The Endowment Effect, Loss Aversion, and Status Quo Bias. Journal of Economic Perspectives., 19915(1):193-206.,66 Ariely D. The End of Rational Economics. Harv Bus Rev.2009; July-August; R0907H. associados ao porquê do fracasso da adoção da inovação,55 Gourville JT. Eager sellers and stony buyers. Harvard Business Review. 2006;84(6):98-106,145. pode ajudar na criação de soluções específicas em que a telemedicina seja aceita por fornecedores e desejada pelos pacientes.77 Christensen CM, Bohmer R, Kenagy J. 2004. Will Disruptive Innovations Cure Health Care? Harv Bus Rev.HBSP # 6972 Exemplos de abordagens relacionadas à telemedicina que possam promover benefícios à sociedade e, ao mesmo tempo, serem justas para os médicos estão descritos a seguir:

B.1) Desenvolver produtos que sejam compatíveis em termos comportamentais: o desenvolvimento e a incorporação de sensores móveis podem oferecer um senso de segurança que esteja faltando nos médicos à distância. Se o indivíduo pudesse confiar nesse tipo de dispositivo para dar feedback de um exame físico “remoto”, os médicos se sentiriam mais seguros em orientar e opinar sobre a condição de um paciente por meio da tecnologia. Isso possivelmente minimizaria a resistência à telemedicina pelos médicos.

B.2) Buscar indivíduos carentes (sem acesso à saúde): a telemedicina tem o potencial de solucionar importantes desafios atuais. Além da extensão territorial do Brasil, existem milhares de localidades isoladas, de difícil acesso, onde os serviços e profissionais de saúde são extremamente escassos. Alguns médicos são enviados para trabalhar em áreas remotas (médicos militares). O incentivo ao desenvolvimento da infraestrutura necessária para a implementação da telemedicina em áreas remotas abrirá as portas para comunidades terem acesso não somente à saúde como também a outros recursos, como a educação. Isso promoverá ganhos secundários como o progresso da economia local e regional, e poderá atrair médicos e seus familiares a viverem em lugares que, em outras circunstâncias, não seriam seus lugares de escolha para morar.

B.3) Encontrar indivíduos que acreditam na telemedicina (Millenials, ou geração Y): de acordo com Ripton,88 Ripton, JT. 2017. Five ways Millennials are changing the healthcare industry. [Internet]. [Cited 2017 March 1(st)] Available from: https://www.beckershospitalreview.com/population-health/five-ways-millennials-are-changing-the-healthcare-industry.html
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a geração Y está mudando o cuidado em saúde, ao exigir soluções tecnológicas para o provimento dos serviços de saúde. O desenvolvimento de soluções tecnológicas voltadas a essa população poderia acelerar e sustentar a adoção da telemedicina não só no Brasil como em outros países. A demanda por parte da geração Y faria com que os médicos se adaptassem ao cuidado mediado por tecnologia (e o incorporassem) para se manterem competitivos no mercado.

B.4) Lutar por melhorias55 Gourville JT. Eager sellers and stony buyers. Harvard Business Review. 2006;84(6):98-106,145.: os benefícios promovidos pela telemedicina seriam tão significativos que superariam possíveis perdas temidas por médicos e pacientes. Além de conferir eficiência e reduzir custos, a telemedicina tem o potencial de expandir as ações dos profissionais de saúde, integrando-as aos serviços e sistemas de saúde. Ainda, pode-se explorar as economias potenciais e compartilhá-las com outros profissionais em um novo tipo de relação de trabalho e modelo de reembolso que possam melhorar a aceitação da telemedicina entre os médicos enquanto promove benefícios à sociedade.

C) Outras considerações

C.1) Aspectos éticos e legais na era digital: a tecnologia está evoluindo mais rápido que o esperado?

Além do que foi discutido anteriormente, existe também uma falta de sincronização entre o enorme potencial dessas tecnologias e o aparato ético e legal atual. Ao contrário de uma política nacional abrangente, há um cenário de fragmentação, caracterizado pela existência de diferentes normas e padrões com diferentes focos, estabelecidos por variadas entidades.33 Maldonado JMSV, Marques AB, Cruz A. Telemedicine challenges to dissemination in Brazil. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro. 2016;32(supl 2):e00155615 Embora um único instrumento dificilmente alcançaria esses objetivos, a fragmentação é mais um obstáculo a ser superado para se atingir o potencial da telemedicina.

C.2) Infraestrutura - os humanos são mais lentos que o esperado?

Ainda, deve-se mencionar a escassez de recursos e competência técnica, bem como aspectos de infraestrutura. O Brasil possui uma distribuição geográfica desigual de disponibilidade de banda larga.33 Maldonado JMSV, Marques AB, Cruz A. Telemedicine challenges to dissemination in Brazil. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro. 2016;32(supl 2):e00155615 Isso significa que a infraestrutura da rede de banda larga é um dos fatores mais limitantes para a expansão da telemedicina, especialmente nas zonas rurais do país.

C.3) Serviços de saúde no Brasil

Finalmente, deve-se mencionar a precariedade dos serviços de saúde no Brasil, incluindo as instalações da atenção primária, ambulatórios, e mesmo serviços de hospitais especializados. A escassez de recursos, problemas na administração, falta de profissionais, pagamento inadequado, instalações defasadas, falta de equipamentos e materiais de consumo, entre muitos outros aspectos, são recorrentemente citados como as principais causas dessa precariedade, testemunhada pelos profissionais e pelos usuários. Sabe-se que essa situação é ainda pior em áreas remotas e periféricas, e se trata de uma barreira importante para a disseminação e consolidação da telemedicina no Brasil.33 Maldonado JMSV, Marques AB, Cruz A. Telemedicine challenges to dissemination in Brazil. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro. 2016;32(supl 2):e00155615 Portanto, mesmo com a implementação de toda infraestrutura tecnológica necessária para a telemedicina, a qual é uma atividade tipicamente interdisciplinar, não se garantiria um melhor e maior acesso à saúde.

Conclusão

A principal característica da telemedicina é sua capacidade de democratizar os serviços de saúde. Para isso, são necessárias iniciativas legislativas (econômicas e sociais) que apoiem e encorajem o uso dessa tecnologia, um aparato regulatório, a mobilização de um grupo de empresas interessadas, e o desenvolvimento científico adequado. Do ponto de vista da saúde, a telemedicina é capaz de aumentar a integração do sistema de saúde, superando a ainda existente e deletéria fragmentação que previne o acesso completo aos direitos à saúde. Investimentos em infraestrutura são mandatórios para expandir a adoção da telemedicina. Além disso, outros desafios que limitam o desenvolvimento da telemedicina são, em sua maioria, relacionados aos conflitos, interdependência e demandas dos stakeholders. Nesse sentido, compreender alguns dos conceitos relacionados à economia comportamental e a falha na adoção da inovação poderia aumentar ou criar oportunidades e abordagens nas quais o uso do cuidado mediado pela tecnologia promovesse benefícios à sociedade e, ao mesmo tempo, fosse aceito por médicos e outras partes interessadas.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Nov 2019
  • Data do Fascículo
    Out 2019
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