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Caso 5 /2018 - Insuficiência Respiratória Aguda e Choque Cardiogênico em Mulher no Primeiro Trimestre de Gravidez e Portadora de Prótese Mitral Mecânica

Palavras-chave
Insuficiência Respiratória; Cardiopatias Congênitas; Próteses Valvulares Cardíacas; Gravidez; Choque Cardiogênico.

Trata-se de paciente do sexo feminino, 36 anos, natural do estado de Alagoas, e procedente da região de Guarulhos, grande São Paulo, casada, analfabeta, admitida no Serviço de Ginecologia e Obstetrícia após diagnóstico clínico de infecção de vias aéreas superiores no curso da 9ª semana da 1ª gestação.

Fazia acompanhamento no ambulatório especializado em cardiopatias congênitas por cardiopatia congênita complexa que incluía comunicação interatrial associada à persistência do canal arterial e comunicação interventricular, além de defeito do septo atrioventricular esquerdo. Operada aos oito anos de idade com realização de atriosseptoplastia, ventriculosseptoplastia e troca valvar mitral por prótese mecânica. Apresentava fibrilação atrial paroxística, com evento tromboembólico prévio, acidente vascular cerebral isquêmico em hemisfério esquerdo, sem sequelas neurológicas, mantendo-se assintomática do ponto de vista cardiovascular, em classe funcional I (classificação NYHA) na última consulta em abril de 2018. Fazia uso apenas de varfarina, em acompanhamento regular do controle de tempo de protrombina/INR, mantido em últimos controles entre 2-3.

Durante internação no serviço de obstetrícia, a varfarina foi substituída por enoxaparina 1mg/kg, via subcutânea, de 12/12 horas, e na evolução apresentou fibrilação atrial de alta resposta ventricular acompanhada de dispneia ao repouso e ortopneia, sendo então encaminhada ao serviço de emergência do hospital de cardiologia.

O exame físico de entrada (30 de maio de 2018) mostrava paciente em regular estado geral, corada, hidratada, anictérica, vigil, orientada, sem alterações ao exame neurológico. Exame cardiovascular em ritmo cardíaco regular, com frequência cardíaca em 115 batimentos por minuto, sopro holossistólico, com perfil de prótese, em borda esternal esquerda alta 2+/6+, boa perfusão periférica. Aparelho respiratório com estertores crepitantes em base pulmonar esquerda, dispneia leve ao repouso. Abdome gravídico, sem sinais de congestão hepática. Extremidades sem edema, panturrilhas livres.

Os resultados dos exames laboratoriais de entrada (30 de maio de 2018): hemoglobina 12,4 g/dL; leucócitos 13050/mm³ (bastões 1%; segmentados 79%; eosinófilos 1%); plaquetas 120mil/mm³; Proteína C reativa: 74,6mg/dL; Urina I: Leucócitos 16mil/mL, nitrito negativo, bactérias 1+/4+, Urocultura do hospital de origem com E.coli multissensível.

O eletrocardiograma de entrada (30 de maio de 2018) (Figura 1) mostrava ritmo sinusal, frequência cardíaca de 115 bpm, sinais indiretos de sobrecarga atrial direita.

Figura 1
ECG admissão: ritmo sinusal com sinais indiretos de sobrecarga atrial esquerda e sobrecarga atrial direita (Peñaloza-Tranquesi).

A radiografia de tórax de admissão (30 de maio 2018) (Figura 2) revelou sinais indiretos de congestão pulmonar (infiltrado “algodonoso” predomínio bibasal), broncograma aéreo peri-hilar à direita e imagem compatível com prótese mecânica em posição mitral.

Figura 2
Radiografia de tórax admissão: sinais de congestão e infecção pulmonar (broncograma aéreo).

O diagnóstico inicial da internação foi de broncopneumonia, congestão pulmonar, fibrilação atrial de alta resposta ventricular, gestação única tópica de nove semanas, sendo prescritos: Ceftriaxona, Claritromicina, Oseltamivir, Furosemida e Sotalol. Os exames solicitados incluíram hemocultura, pesquisa de vírus H1N1, ecocardiograma transtorácico e fator Anti-Xa.

A evolução mostrava sinais e sintomas de quadro infeccioso pulmonar (tosse, dispneia, leucocitose com desvio à esquerda, PCR elevado, com H1N1 negativo), sendo optado por suspender Oseltamivir e escalonar antibioticoterapia empírica para Meropenem.

Comparando com o último ecocardiograma transtorácico ambulatorial da paciente, o ecocardiograma transtorácico de 04 de junho de 2018 revelou aumento acentuado de gradiente transvalvar mitral (gradiente diastólico máximo de 39mmHg e médio de 25mmHg), além do aumento de pressões em câmaras direitas, com pressão sistólica de ventrículo direito de 75mmHg, sem evidência de trombos ou vegetação (Tabela 1).

Tabela 1
Evolução ecocardiográfica

Aos antibióticos associaram-se furosemida e metoprolol para controle de frequência cardíaca, além de manutenção da anticoagulação com enoxaparina com níveis adequados de fator Anti-Xa (entre 0,8 e 1U/mL) com melhora do quadro clínico. Para avaliação mais adequada da prótese valvar foi solicitado ecocardiograma transesofágico (14 de junho de 2018). Neste exame, foi observada a redução de mobilidade dos elementos de sua prótese mitral, com gradiente médio transvalvar elevado (30 mmHg e imagem hipoecogênica ocupando a região central da face atrial da prótese, compatível com trombo). Suas medidas, mesmo subestimadas, dado que ficava difícil determinar toda a sua extensão à metodologia bidimensional, alcançou valores de 0,9 x 1,3 cm, resultando em área 1,17 cm² (importante quando > 0, 8 cm²), sendo então decidido por indicação cirúrgica, visto a disponibilidade desta no serviço em questão. (Tabela 1)

Dado o diagnóstico ecocardiográfico de trombose de prótese mecânica mitral, foi indicado o tratamento cirúrgico da valva mitral, a despeito da idade gestacional pelo alto risco de morte materna. Foi então iniciada a heparina não fracionada intravenosa em bomba de infusão no aguardo do procedimento cirúrgico.

Neste período a paciente evoluiu com novo quadro de dispneia acentuada, com congestão acentuada (Figura 3), taquicardia e febre sendo necessárias medidas de suporte ventilatório invasivo com intubação orotraqueal, hipotensão com necessidade de início de vasopressor (noradrenalina). Apresentou parada cardiorrespiratória por 6 minutos, com retorno a circulação espontânea em franco choque e necessidade de doses altas de noradrenalina, adrenalina e vasopressina. Continuou em choque e, apesar das medidas, apresentou quadro de bradicardia e assistolia e faleceu (7h22; 18 jun 2018). (Dra. Walkíria Samuel Ávila)

Figura 3
Radiografia de tórax revelando congestão pulmonar importante.

Aspectos clínicos

O caso relatado considera gestante primigesta de 36 anos de idade, portadora de cardiopatia congênita complexa corrigida, com prótese mecânica mitral com tempo de implante de 28 anos, fibrilação atrial paroxística e antecedentes de tromboembolismo, a triade que caracteriza alto risco tromboembólico.¹

Apesar disso, a paciente mantinha a meta de anticoagulação (INR = 3) adequada até o diagnóstico da gestação quando foi trocado o esquema de anticoagulação da varfarina por enoxaparina pelo risco de síndrome varfarínica fetal que ocorre entre a 6ª e 12ª semana de gestação (caracterizada por hipoplasia nasal, displasia das epífises ósseas, deformidades de membros, problemas neurológicos e respiratórios).11 Tedoldi CL, Freire CMV, Bub TF; Sociedade Brasileira de Cardiologia. Diretriz da Sociedade Brasileira de Cardiologia para gravidez na mulher portadora de cardiopatia. Arq Bras Cardiol. 2009;93(6 supl.1):e110-e178. Porém, existem evidências menores da distribuição e biodisponibilidade errática da enoxaparina durante a gestação,2 ainda sendo um desafio atual definir a melhor estratégia de anticoagulação nessa população de alto risco trombroembólico.

Como opção terapêutica ao tratamento de trombose de prótese, a trombólise com estreptoquinase ou alteplase, guiado por ecocardiograma transesofágico seriado, mostrou-se segura e eficaz.33 Ozkan M, Gunduz S, Beteker M, Astarcioglu MA, Çevik C, Kaynak E, et al. Comparison of different TEE-Guided Thrombolytic Regimens for Prosthetic Valve Thrombosis: The TROIA Trial. Prosthesis Valve Thrombosis. JACC Cardiovasc Imaging. 2013;6(2):217-9. Porém, frente à situação clínica da paciente tais como: classe funcional NYHA IV, necessidade de cuidados intensivos, prótese mecânica mitral com o tamanho do trombo superior a 0,8cm², optou-se pelo tratamento cirúrgico.44 Nishimura RA, Otto CM, Bonow RO, Carabello BA, Erwin JP rd, Fleisher LA, et al. 2017 AHA/ACC focused update of the 2014 AHA/ACC guideline for the management of patients with valvular heart disease: a report of the American College of Cardiology/American Heart Association Task Force on Clinical Practice Guidelines. Circulation. 2017;135(25):e1159-95.

5 Baumgartner H, Falk V, Bax JJ, De Bonis M, Hamn C, Holm PJ, et al. 2017 ESC/EACTS Guidelines for the management of valvular heart disease. The Task Force for the Management of Valvular Heart Disease of the European Society of Cardiology (ESC) and the European Association for Cardio-Thoracic Surgery (EACTS). Eur Heart J. 2017;38(36):2739-91.
-66 Tarasoutchi F, Montera MW, Ramos AIO, Sampaio RO, Rosa VEE, Accorsi TAD, Sociedade Brasileira de Cardiologia. Atualização das diretrizes brasileiras de valvopatias: abordagem das lesões anatomicamente importantes. Arq Bras Cardiol. 2017; 109(6Supl.2):1-34.

Apesar do tratamento de suporte instituído, em aguardo de terapia definitiva com cirurgia já indicada, a paciente deteriorou clinicamente e veio a óbito, alertando-nos para a potencial gravidade do quadro de trombose de prótese, que exige a conduta de urgência (cirúrgica ou trombólise), independente de agravantes ao quadro, como a própria gestação ou infecções associadas. (Dr. Vinícius Araújo de Freitas Chagas Caldas e Dr. Daniel Valente Batista)

Hipóteses diagnósticas: choque cardiogênico, edema agudo de pulmões, trombose de prótese mecânica mitral, síndrome da resposta inflamatória sistêmica com possível foco infeccioso pulmonar. (Dr. Vinícius Araújo de Freitas Chagas Caldas e Dr. Daniel Valente Batista)

Necropsia

No útero gravídico havia feto aparentemente bem formado. A mãe tinha grau leve de enfisema pulmonar e alterações significativas do sistema cardiovascular, notando-se canal arterial persistente (Figura 4), pérvio com diâmetro de 2 mm; pequena comunicação interventricular muscular (Figura 5); pontos cirúrgicos em septo atrial, possivelmente correspondendo a fechamento de comunicação; embolia (ou trombose) de veia subclávia esquerda; e prótese valvar mecânica em posição mitral, ocluída pela presença em suas duas faces de massa com aspecto de trombo (Figura 6). O estudo microscópico confirmou a natureza desta massa, com ausência de microrganismos (Figura 7). Havia pequenos infartos, no rim direito, possivelmente por embolia a partir do trombo da prótese, e na região subendocárdica do ventrículo esquerdo. Os pulmões mostravam-se em sua quase totalidade bastante alterados, com padrão histopatológico de pneumonia em organização (Figura 8). Além disso, denotando congestão, havia macrófagos contendo hemossiderina, mas não em grande quantidade; e dilatação de vasos linfáticos. (Paulo Sampaio Gutierrez)

Figura 4
Grandes vasos da base mostrando canal arterial persistente (entre as setas).

Figura 5
Corte transversal do coração na região dos ventrículos, mostrando comunicação interventricular (seta). VD: ventrículo direito; VE: ventrículo esquerdo.

Figura 6
Foto à esquerda: Prótese valvar mecânica em posição mitral vista pelo átrio esquerdo, com oclusão quase total por trombo. Pequenas partes da prótese podem ser vistas como áreas negras sob o trombo. Foto à direita: Após a retirada do trombo, a prótese tem abertura adequada.

Figura 7
Corte histológico da massa aderida à prótese valvar, constituída por trombo com fibrina e número moderado de células inflamatórias, sem microrganismos. Coloração pela hematoxilina & eosina; aumento da objetiva: 10x.

Figura 8
Corte histológico de pulmão, mostrando alvéolos preenchidos por células mononucleares e presença de colágeno. Coloração pela hematoxilina & eosina; aumento da objetiva: 10x.

Diagnósticos anatomopatológicos: Cardiopatia congênita com comunicação interatrial, comunicação interventricular, persistência do canal arterial e trombose prótese mecânica mitral.

“Causa mortis”: Obstrução valvar mitral/ pneumonia em organização (Dr. Paulo Sampaio Gutierrez)

Comentário

Ainda que o problema dominante que desencadeou a morte da paciente tenha sido a trombose da prótese valvar mitral - realçando a dificuldade de manejo do sistema de coagulação durante a gestação - vale comentar também que os pulmões estavam muito alterados, com padrão de pneumonia em organização. É importante frisar que o diagnóstico de “pneumonia em organização” diz respeito a quadro que pode ser subsequente não só a pneumonia bacteriana clássica, mas também a várias outras situações, como infecções virais, exposição a inalantes tóxicos e outros.77 Baque-Juston M, Pellegrin A, Leroy S, Marquette CH, Padovani B, et al. Organizing pneumonia: what is it? A conceptual approach and pictorial review. Diagn Interv Imaging. 2014; 95(9):771-7. No entanto, congestão acentuada, ainda que súbita, não está listada entre as possíveis causas desse processo. Assim, no presente caso, a pneumonia em organização deve ser decorrente do quadro respiratório, possivelmente infeccioso, seja ele viral ou bacteriano, com que a paciente deu entrada na instituição.

References

  • 1
    Tedoldi CL, Freire CMV, Bub TF; Sociedade Brasileira de Cardiologia. Diretriz da Sociedade Brasileira de Cardiologia para gravidez na mulher portadora de cardiopatia. Arq Bras Cardiol 2009;93(6 supl.1):e110-e178.
  • 2
    Friedrich E, Hameed AB. Fluctuations in anti-factor Xa levels with therapeutic enoxaparin anticoagulation in pregnancy. J Perinatol. 2010;30(4):253-7.
  • 3
    Ozkan M, Gunduz S, Beteker M, Astarcioglu MA, Çevik C, Kaynak E, et al. Comparison of different TEE-Guided Thrombolytic Regimens for Prosthetic Valve Thrombosis: The TROIA Trial. Prosthesis Valve Thrombosis. JACC Cardiovasc Imaging. 2013;6(2):217-9.
  • 4
    Nishimura RA, Otto CM, Bonow RO, Carabello BA, Erwin JP rd, Fleisher LA, et al. 2017 AHA/ACC focused update of the 2014 AHA/ACC guideline for the management of patients with valvular heart disease: a report of the American College of Cardiology/American Heart Association Task Force on Clinical Practice Guidelines. Circulation 2017;135(25):e1159-95.
  • 5
    Baumgartner H, Falk V, Bax JJ, De Bonis M, Hamn C, Holm PJ, et al. 2017 ESC/EACTS Guidelines for the management of valvular heart disease. The Task Force for the Management of Valvular Heart Disease of the European Society of Cardiology (ESC) and the European Association for Cardio-Thoracic Surgery (EACTS). Eur Heart J 2017;38(36):2739-91.
  • 6
    Tarasoutchi F, Montera MW, Ramos AIO, Sampaio RO, Rosa VEE, Accorsi TAD, Sociedade Brasileira de Cardiologia. Atualização das diretrizes brasileiras de valvopatias: abordagem das lesões anatomicamente importantes. Arq Bras Cardiol 2017; 109(6Supl.2):1-34.
  • 7
    Baque-Juston M, Pellegrin A, Leroy S, Marquette CH, Padovani B, et al. Organizing pneumonia: what is it? A conceptual approach and pictorial review. Diagn Interv Imaging 2014; 95(9):771-7.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Out 2018

Histórico

  • Recebido
    06 Set 2018
  • Revisado
    19 Set 2018
  • Aceito
    20 Set 2018
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