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Caso 3/2005 - Parada cardíaca em atividade elétrica sem pulso, em homem de 49 anos, no 23º dia após infarto agudo

Cardiac arrest in pulseless electric activity in a 49 year-old man in the 23th day post acute myocardial infarction

CORRELAÇÃO ANATOMOCLÍNICA

Caso 3/2005 - Parada cardíaca em atividade elétrica sem pulso, em homem de 49 anos, no 23º dia após infarto agudo (Instituto do Coração do Hospital das Clínicas - FMUSP, São Paulo)

Cardiac arrest in pulseless electric activity in a 49 year-old man in the 23th day post acute myocardial infarction

Desidério Favarato; Paulo Sampaio Gutierrez

São Paulo, SP

Homem de 49 anos procurou atendimento médico por dor precordial de três dias de duração. Sabia ser portador de hipertensão arterial e era tabagista, com consumo de 30 cigarros diários.

Relatava o paciente que, sem antes nada sentircomeçou a apresentar dor precordial contínua e epigástrica, em queimação, sem relação com esforços, e houve aumento da intensidade no 3º dia, quando procurou atendimento médico.

O exame físico (26/06/03) foi normal, a freqüência cardíaca foi 68 bpm e a pressão arterial 130x80 mmHg.

O eletrocardiograma (ECG) (26/06/03) revelou ritmo sinusal, freqüência de 83 bpm, SÂP=+50º para frente, SÂQRS=+30 paralelo; sobrecarga ventricular esquerda; ondas Q patológicas em dIII e aVF e discreto supradesnivelamento em aVL e V6, V7 e V8, compatível com infarto agudo do miocárdio ínfero-latero-dorsal (fig. 1).


O pico de CKMB foi de 32,8 ng/ml (27/06/03), com volta aos valores normais em 29/06/03 e o pico de troponina foi 67,2 ng/ml.

A creatinina era de 1 mg/dl, hemoglobina 12 g/dl, hematócrito 35%, leucócitos 11.400/mm>, sem desvio a esquerda, plaquetas de 405.000/mm>, colesterol=139 mg/dl (HDL-colesterol de 23 mg/dl, LDL-colesterol de 97 mg/dl), triglicérides de 96 mg/dl.

Foi feito o diagnóstico de infarto do miocárdio em evolução e indicada cineangiocoronariografia (27/06/03), a qual revelou lesão de 95% em segmento proximal da coronária direita, lesão de 90% no terço médio da descendente anterior, lesões de 90% na 1ª e 2ª diagonais, circunflexa com 40%, 1º ramo marginal com lesão de 80% e oclusão de 2º ramo marginal esquerdo (fig. 2A, B, C).


Foi realizada angioplastia com cateter-balão no 2º ramo marginal esquerdo, sem interposição de stent, com baixo fluxo pós-procedimento (TIMI 2) (fig. 2D).

O ecocardiograma (30/06/03) revelou espessuras de septo e parede posterior normais (10 mm), diâmetro diastólico de ventrículo esquerdo normal (50 mm), fração de ejeção de ventrículo esquerdo com diminuição moderada (40%) por acinesia látero-posterior e hipocinesia inferior.

O paciente evoluiu em Killip I, sem complicações, e permaneceu internado aguardando cirurgia de revascularização miocárdica.

No 20º dia da internação, após execução de enema de rotina no preparo pré-operatório, apresentou mal-estar geral e parada cardiorespiratória com atividade elétrica sem pulso, não havendo resposta às manobras de ressuscitação, tendo falecido (15/07/03).

Aspectos clínicos

Trata-se de paciente de 49 anos, portador de hipertensão arterial, tabagista e com HDL-colesterol baixo, cuja primeira manifestação de doença coronariana foi uma das síndromes isquêmicas agudas, o infarto do miocárdio, apresentação inicial presente em cerca de 50% dos indivíduos 1. Foi submetido a cineangiografia coronariana e reperfusão mecânica da artéria culpada pelo uso de angioplastia por cateter-balão. A angioplastia não foi bem sucedida, com fluxo TIMI 2; a evolução foi sem complicações até que apresentou colapso cardiovascular com atividade elétrica sem pulso.

A mortalidade hospitalar no infarto agudo do miocárdio é maior em idosos, mulheres, infartos extensos e menores graus de reperfusão coronária.

O grau de reperfusão é definido pelos critério de fluxo distal: TIMI grau 0 - sem aparente perfusão distal à obstrução; TIMI grau 1 - presença de perfusão mínima e incompleta ao redor da obstrução; TIMI grau 2 - perfusão parcial com progressão lenta do contraste; e TIMI grau 3 - perfusão completa, com fluxo distal com velocidade normal de clareamento. Resumidamente, TIMI 0/1 - não perfusão, TIMI 2- perfusão parcial e TIMI 3-perfusão completa. Há aumento progressivo da mortalidade a partir dos fluxos TIMI 3 até o fluxoTIMI 0/1, aumento da mortalidade de 50% e 100%, respectivamente nos fluxos TIMI 2 e TIMI 0/1. Além disso, há maior recuperação da motilidade da parede infartada e menor incidência de insuficiência cardíaca com fluxo grau 32. Assim, o paciente ora em discussão apresentava unicamente como fator de mau prognóstico no infarto agudo do miocárdio a reperfusão incompleta da artéria culpada, pois era do sexo masculino, com idade inferior a 65 anos, pequena extensão do infarto, com pico de CKMB de 32 ng/ml e evolução em classe clínica de Killip I. No estudo GUSTO - I, a mortalidade foi de 5,1% em pacientes em classe I de Killip, 13,6% quando em classe II, 32,2% na classe III e 57,8% na classe IV3.

O estudo cineangiográfico revelou obstrução acentuada nas porções epicárdicas da coronária direita e dos ramos interventricular anterior e circunflexo da coronária esquerda. Houve insucesso da angioplastia do 2º ramo marginal esquerdo. Este quadro justificou a indicação de tratamento cirúrgico, pois o paciente apresentava lesões em três vasos, com infarto em tempo inferior a seis meses, período de alto risco de complicações (até 40%). Por isso, este subgrupo de pacientes foi sistematicamente excluído dos estudos randomizados de comparação entre tratamentos clínico-medicamentoso e procedimentos de revascularização miocárdica.

Quanto às causas de morte no primeiro infarto agudo, a falência de bomba é a mais freqüente, seguida pela ruptura e arritmias, desde o 1º dia até a 3ª semana pós-infarto. O reinfarto é duas vezes mais freqüente nos que morrem por falência de bomba e por arritmia do que naqueles que sofrem ruptura 4.

O paciente não apresentava sinais ou sintomas de falência de bomba, o que leva a exclusão dessa causa de morte. Restam a ocorrência de arritmia ventricular maligna, taquicardia e fibrilação ventricular ou assistolia. Esta última poderia ocorrer por intenso estímulo vagal originado pelo enema. Contudo, não foram constatadas durante o atendimento no evento final, quando foi registrada atividade elétrica sem pulso.

A atividade elétrica sem pulso pode ser encontrada em quase metade dos pacientes que sofrem parada cardíaca5. Suas causas são choque grave, hemorragia intensa por ruptura arterial, como na dissecção de aorta, tromboembolismo pulmonar maciço, pneumotórax e o tamponamento cardíaco por ruptura de parede livre do ventrículo. Nesses pacientes, até 60% dos casos são por causas cardiovasculares, entre as principais encontram-se o infarto agudo do miocárdio em 21% dos casos, 9,5% por hemorragia, tanto por dissecção aórtica quanto por ruptura ventricular e 2,4% por tromboembolismo pulmonar5.

Na situação clínica específica do paciente em discussão, a causa mais provável do evento final seria o tamponamento por ruptura da parede livre do ventrículo esquerdo. Essa complicação ocorre mais freqüentemente em pacientes idosos, do sexo feminino e hipertensos, só a última presente no caso atual. Outro fato menos habitual foi o tempo da ruptura, após a 1ª semana. A maioria das rupturas ocorre até o 5º dia após o infarto agudo. A intensa atividade inflamatória na região infartada enfraquece a parede ventricular, (inicialmente temos infiltrado de polimorfonucleares, com pico no 2º dia, logo substituído pelos macrófagos, cuja atividade é mais intensa entre o 4º e 5º dias após o infarto). Os macrófagos são responsáveis pela secreção das metaloproteinases da matriz extracelular, incluindo estromelisina, colagenases, elastases e gelatinases6. Enquanto a atividade angiogênica é mais intensa entre o 6º e 7º dias e a atividade secretora de colágeno atinge o pico somente ao redor do 30º dia.

(Dr. Desidério Favarato)

Hipóteses diagnósticas: infarto agudo do miocárdio complicado por ruptura de parede livre de ventrículo esquerdo; reinfarto com morte súbita.

(Dr. Desidério Favarato)

Necropsia

À necropsia, a doença mais importante era a aterosclerose coronariana, que causava obstrução superior a 90% em todos os ramos principais, chamando a atenção o fato de que as lesões ateroscleróticas tinham pouca gordura, constituindo-se de placas fibróticas, duras (fig.3). Isso talvez tenha relação com o insucesso da angioplastia realizada no ramo marginal esquerdo


Como conseqüência da aterosclerose coronariana, ocorreu infarto do miocárdio na região látero-posterior do ventrículo esquerdo. Seu aspecto morfológico, com tecido de granulação na vizinhança da área de miocárdio preservado, é compatível com evolução de aproximadamente três semanas.

Houve ruptura da parede lateral do ventrículo esquerdo na área infartada; a morte foi decorrente de tamponamento cardíaco (fig. 4).


Encontrou-se ainda sinais de hipertensão arterial sistêmica - a saber, arteriosclerose renal e hipertrofia concêntrica do ventrículo esquerdo.

(Dr. Paulo Sampaio Gutierrez)

Diagnósticos anatomopatológicos - Doença principal: aterosclerose coronariana - infarto do miocárdio. Causa mortis: tamponamento cardíaco decorrente de ruptura da parede ventricular infartada.

(Dr. Paulo Sampaio Gutierrez)

Comentário

A tabela I mostra dados referentes aos casos de ruptura ventricular para a cavidade pericárdica devida a infarto, presentes em necropsias realizadas no Laboratório de Anatomia Patológica do Instituto do Coração entre 2002 e 2004. Houve 14 casos. Em comparação com dados anteriores do mesmo serviço7, em que mais de 70% das rupturas atingiam mulheres, na série atual metade dos casos pertencia a cada gênero. De todo modo, isso ainda aponta para uma proporção maior de mulheres com esta complicação, pois elas correspondem a fração menor que a de homens no total de mortes por doença isquêmica do coração.

Cerca de 80% das rupturas ocorreram no primeiro episódio de infarto do miocárdio (ou seja, apenas o restante dos pacientes tinham outro infarto, já cicatrizado). Igual foi a porcentagem de hipertensos; por outro lado, apenas pouco mais de 20% eram diabéticos. A ruptura ocorreu mais comumente nos primeiros dias de evolução pós-infarto, com média de 5,36 dias e mediana de 4; o caso em discussão, no qual aconteceu do 23º dia, é o de mais longa evolução. Além disso, o paciente era um dos mais jovens.

Em oito casos, não houve qualquer intervenção terapêutica nas artérias coronárias registrada no relatório de necropsia (note-se que é possível, embora improvável, que a intervenção possa ter ocorrido mas não anotada nesse documento). Nos demais, três casos tinham sido submetidos a trombólise (um dos quais com revascularização cirúrgica do miocárdio anos antes), duas angioplastias, ambas sem sucesso (o caso atual e outro, com revascularização cirúrgica anos antes) e uma revascularização cirúrgica entre a instalação do infarto e a ruptura.

Em conformidade com outros dados da literatura8, a ruptura atinge mais freqüentemente a parede lateral do ventrículo esquerdo, correspondendo a cerca de 15% dos casos de óbito no 1º mês após infarto dessa região.

(Dr. Paulo Sampaio Gutierrez)

Referências

1. Manfroi WC, Peukert C, Berti CB et al. Acute myocardial infarction. The first manifestation of ischemic heart disease and relation to risk factors. Arq Bras Cardiol 2002; 78: 392-5.

2. Lincoff AM, Topol EJ, Califf RM et al. Significance of a coronary artery with thrombolysis in myocardial infarction grade 2 flow "patency" (outcome in the thrombolysis and angioplasty in myocardial infarction trials). Thrombolysis and Angioplasty in Myocardial Infarction Study Group. Am J Cardiol 1995; 75: 871-6.

3. Lee KL, Woodlief LH, Topol EJ et al for the GUSTO-I Investigators. Predictors of 30-day mortality in the era of reperfusion for acute myocardial infarction. Results from an international trial of 41,021 patients. Circulation 1995; 91: 1659-68.

4. Stevenson WG, Linssen GC, Havenith MG, Brugada P, Wellens HJ. The spectrum of death after myocardial infarction: a necropsy study. Am Heart J 1989; 118: 1182-8.

5. Abu-Laban RB, Christinson JM, Innes GD et al. Tissue plasminogen activator in cardiac arrest with pulseless electrical activity. N Engl J Med 2002; 346: 1522-8.

6. Heymans S, Luttun A, Nuyens D et al. Inhibition of plasminogen activators or matrix metalloproteinases prevents cardiac rupture but impairs therapeutic angiogenesis and causes cardiac failure. Nat Med 1999; 5: 1135-42.

7. Gutierrez PS, Higuchi ML, Moraes CF et al. Diferenças entre homens e mulheres em casos fatais de infarto do miocárdio. Estudo de 200 necropsias. Arq Bras Cardiol 1990; 54: 193-8.

8. Mann JM, Roberts WC. Rupture of the left ventricular free wall during acute myocardial infarction: analysis of 138 necropsy patients and comparison with 50 necropsy patients with acute myocardial infarction without rupture. Am J Cardiol 1988; 62: 847-59.

Editor da Seção: Alfredo José Mansur (ajmansur@incor.usp.br)

Editores Associados: Desidério Favarato (dclfavarato@incor.usp.br)

Vera Demarchi Aiello (anpvera@incor.usp.br)

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Jun 2005
  • Data do Fascículo
    Jun 2005
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