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A Liberdade dos Clínicos e a Arte do Impossível

Palavras-chave
Hipertensão; Fatores de Risco; Pressão Arterial / controle & prevenção; Cuidados Primários da Saúde

A hipertensão arterial sistêmica - que na linguagem corrente designamos simplesmente por hipertensão - é considerada o principal (e o mais comum) fator de risco de morte e incapacidade nas doenças não transmissíveis.11 Lim SS, VosT, Flaxman AD, Danaei G, Shibuya K, Adair-Rohani H, et al. A comparative risk assessment of burden of disease and injury attributable to 67 risk factors and risk factor clusters in 21 regions, 1990-2010: a systematic analysis for the Global Burden of Disease Study 2010. Lancet. 2012;380(9859):2224-60. doi: 10.1016/S0140-6736(12)61766-8.
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,22 Murray CJ, Vos T, Lozano R, Naghavi M, Flaxman AD, Michaud C, et al. Disability-adjusted life years (DALYs) for 291 diseases in 21 regions, 1990-2010: a systematic analysis for the Global Burden of Disease Study 2010. Lancet. 2012;380(9859):2197-223. doi: 10.1016/S0140-6736(12)61689-4.
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A sua prevalência na Europa varia entre 30 e 45%.33 Mancia G, Fagard R, Narkiewicz K, Redon J, Zanchetti A, Böhm M, et al. 2013 ESH/ESC guidelines for the management of arterial hypertension: the Task Force for the Management of Arterial Hypertension of the European Society of Hypertension (ESH) and of the European Society of Cardiology (ESC). Eur Heart J. 2013;34(28):2159-219. doi: 10.1093/eurheartj/eht151.
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Nos Estados Unidos, dois terços dos adultos com mais de 60 anos são hipertensos.44 Go AS, Mozaffarian D, Roger VL, Benjamin EJ, Berry JD, Borden WB, et al; American Heart Association Statistics Committee and Stroke Statistics Subcommittee. Heart disease and stroke statistics - 2013 update: a report from the American Heart Association. Circulation. 2013;127(1):e6-245. doi: 10.1161/CIR.0b013e31828124ad. Erratum in: Circulation. 2013;127(23):e841.
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Na Ásia do sul e na África subsaariana, a hipertensão tem crescido rapidamente.55 NCD Risk Factor Collaboration (NCD-RisC). Worldwide trends in blood pressure from 1975 to 2015: a pooled analysis of 1479 population-based measurement studies with 19.1 million participants. Lancet. 2017;39(10064):37-35. doi: 10.1016/S0140-6736(16)31919-5.
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Recentemente, a prevalência mundial da hipertensão foi estimada em 31%.66 Mills KT, Bundy JD, Kelly TN, Reed JE, Kearney PM, Reynolds K, et al. Global disparities of hypertension prevalence and control: a systematic analysis of population-based studies from 90 countries. Circulation. 2016;134(6):441-50. doi: 10.1161/CIRCULATIONAHA.115.018912.
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Nas últimas três décadas têm surgido muitos fármacos eficazes e seguros para o tratamento dos hipertensos. No entanto, apesar de se saber que a redução da pressão arterial em apenas 10 mmHg nesses doentes pode, ao longo da vida, reduzir o risco de morte cardiovascular e acidente vascular cerebral entre 25 e 40%,77 Law MR, Morris JK, Wald NJ. Use of blood pressure lowering drugs in the prevention of cardiovascular disease: meta-analysis of 147 randomized trials in the context of expectations from prospective epidemiological studies. BMJ. 2009;338:b1665. doi: 10.1136/bmj.b1665.
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subsiste a controvérsia sobre qual o valor limiar ou valor alvo a conseguir nos adultos hipertensos em geral, e nos idosos em particular. Além disso, muitos doentes apesar de tratados permanecem mal controlados, não se atingindo os valores alvos das Recomendações das ESC/ESH33 Mancia G, Fagard R, Narkiewicz K, Redon J, Zanchetti A, Böhm M, et al. 2013 ESH/ESC guidelines for the management of arterial hypertension: the Task Force for the Management of Arterial Hypertension of the European Society of Hypertension (ESH) and of the European Society of Cardiology (ESC). Eur Heart J. 2013;34(28):2159-219. doi: 10.1093/eurheartj/eht151.
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ou os sugeridos como resultado do estudo SPRINT.88 Wright JT Jr, Williamson JD, Whelton PK, Snyder JK, Sink KM, Rocco MV, et al; SPRINT Research Group. A randomized trial of intensive versus standard blood-pressure control. N Eng J Med. 2015;373(22):2103-16. doi: 10.1056/NEJMoa1511939.
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Estão publicadas muitas "Guidelines"/Recomendações para o diagnóstico e tratamento da hipertensão, quer por sociedades científicas quer por outros organismos públicos, internacionais e nacionais, mas nem nessas há um consenso absoluto. Entre os valores para a pressão arterial sistólica originalmente propostos pelo 5th Joint National Committee (< 140 mmHg)99 The Fifth Report of The Joint National Committee on Detection, Evaluation, and Treatment of High Blood Pressure (JNCV). Arch Intern Med. 1993;153(2):154-83. PMID: 8422206. e os que emergiram com o estudo SPRINT (< 120 mmHg), há uma faixa de indecisão/decisão e, embora se acredite que "menor pressão é melhor" para a generalidade dos doentes, é aos clínicos que compete decidir.

As recomendações em medicina, originalmente guias de prática clínica sugerindo uma abordagem para o tratamento de situações clínicas difíceis, deixavam aos clínicos a liberdade de ajustar a terapêutica de acordo com a especificidade do paciente. Por exemplo, no caso da hipertensão, poderiam decidir-se por uma maior "agressividade" terapêutica em doentes mais jovens, mesmo se assintomáticos, e serem mais conservadores (admitindo valores de pressão arterial sistólica mais altos) em idosos, supostamente - o que ainda é matéria de discussão - mais susceptíveis de terem complicações decorrentes do próprio tratamento.

Essa flexibilidade terapêutica inicial tem-se vindo a esbater, ainda que não de forma explícita. As recomendações, escritas e editadas com base em estudos por vezes diversos do mundo real, passaram a definir o que os clínicos devem fazer em cada circunstância, sob pena de a sua atuação poder ser considerada má prática clínica. Em suma, as "Recomendações" passaram a ser "Diretrizes" e a mudança semântica na Língua Portuguesa diz muito.

Não será pois descabido relembrar que ao médico assistente caberá sempre, consideradas as características do seu doente - risco cardiovascular, bem-estar geral, fragilidades e opções - e ponderados os inconvenientes resultantes de eventuais efeitos adversos do tratamento, tomar as melhores decisões.

É neste panorama que foram criadas as Diretrizes que hoje se publicam, destinadas ao espaço da Cardiologia de Língua Portuguesa e sua Federação. A Federação das Sociedades de Cardiologia de Língua Portuguesa (FSCLP - www.fsclp.org) foi criada em 2014 com o objetivo principal de "promover o desenvolvimento da Cardiologia ao serviço da população dos países e territórios onde a Língua Portuguesa é oficial" - (estatutos, artigo 4º). Precedendo a sua fundação, foram realizadas Jornadas Lusófonas de Cardiologia em Cabo Verde (2009) e em Moçambique (2011). O I Congresso da FSCLP teve lugar em Portugal (2016); o II Congresso vai ocorrer no Brasil, em novembro de 2017.

Nos estatutos já referidos são enunciadas, de forma sucinta, as vias para a concretização do objetivo principal, marcando como prioritários: o estímulo ao estudo e à investigação de problemas científicos das doenças cardiovasculares; a análise dos aspectos sociais das cardiopatias e da prevenção e assistência aos doentes; e a promoção do estreitamento das relações entre os médicos das sociedades e comunidades de língua portuguesa, que se dedicam à cardiologia. Numa palavra, trata-se de desenvolver a lusofonia cardiológica.

Criar para a FSCLP e seu espaço mais umas Diretrizes,1010 Oliveira GM, Morais JC, Mendes MF, Soares MB, Moreira Filho O, Malachias MV, et al. 2017: Diretrizes em Hipertensão Arterial para Cuidados Primários nos Países de Língua Portuguesa. Arq Bras Cardiol. 2017;109(5):389-96. doi: http://dx.doi.org/10.5935/abc.20170165.
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que não repitam o que já está escrito, afigurava-se um desafio impossível. E no entanto, estas Diretrizes para "Cuidados Primários em Hipertensão nos países de Língua Portuguesa" surgem vírtuosas. Primeiramente, retratam fielmente a realidade do espaço lusófono, com suas similitudes e diferenças. Em segundo lugar, evitando considerandos excessivos, não têm omissões dos aspectos essenciais de que tratam. Em terceiro lugar - e de forma decisiva - acentuam muito bem a importância da prevenção e do tratamento da hipertensão nos cuidados primários de saúde, afinal o seu objetivo. Por último, têm em conta as características médicas, sociais e econômicas do espaço a que se destinam.

Há ainda um outro mérito muito significativo neste documento: estas Diretrizes,1010 Oliveira GM, Morais JC, Mendes MF, Soares MB, Moreira Filho O, Malachias MV, et al. 2017: Diretrizes em Hipertensão Arterial para Cuidados Primários nos Países de Língua Portuguesa. Arq Bras Cardiol. 2017;109(5):389-96. doi: http://dx.doi.org/10.5935/abc.20170165.
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aqui publicadas, constituem o primeiro trabalho científico e pedagógico produzido pela FSCLP e isso deve ser relevado. Com ele, pretende-se cumprir objetivos da FSCLP e no caso vertente, dar um poderoso passo para o início de um "processo continuado, envolvendo fundamentalmente ações de educação, de mudanças de estilo de vida e garantia de acesso aos medicamentos" na área da hipertensão, como é afirmado no próprio documento.

Os autores destas Diretrizes delinearam com Arte o que parecia Impossível.

References

  • 1
    Lim SS, VosT, Flaxman AD, Danaei G, Shibuya K, Adair-Rohani H, et al. A comparative risk assessment of burden of disease and injury attributable to 67 risk factors and risk factor clusters in 21 regions, 1990-2010: a systematic analysis for the Global Burden of Disease Study 2010. Lancet. 2012;380(9859):2224-60. doi: 10.1016/S0140-6736(12)61766-8.
    » https://doi.org/10.1016/S0140-6736(12)61766-8
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    » https://doi.org/10.1016/S0140-6736(12)61689-4
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  • 5
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  • 6
    Mills KT, Bundy JD, Kelly TN, Reed JE, Kearney PM, Reynolds K, et al. Global disparities of hypertension prevalence and control: a systematic analysis of population-based studies from 90 countries. Circulation. 2016;134(6):441-50. doi: 10.1161/CIRCULATIONAHA.115.018912.
    » https://doi.org/10.1161/CIRCULATIONAHA.115.018912
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    Law MR, Morris JK, Wald NJ. Use of blood pressure lowering drugs in the prevention of cardiovascular disease: meta-analysis of 147 randomized trials in the context of expectations from prospective epidemiological studies. BMJ. 2009;338:b1665. doi: 10.1136/bmj.b1665.
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    Wright JT Jr, Williamson JD, Whelton PK, Snyder JK, Sink KM, Rocco MV, et al; SPRINT Research Group. A randomized trial of intensive versus standard blood-pressure control. N Eng J Med. 2015;373(22):2103-16. doi: 10.1056/NEJMoa1511939.
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  • 9
    The Fifth Report of The Joint National Committee on Detection, Evaluation, and Treatment of High Blood Pressure (JNCV). Arch Intern Med. 1993;153(2):154-83. PMID: 8422206.
  • 10
    Oliveira GM, Morais JC, Mendes MF, Soares MB, Moreira Filho O, Malachias MV, et al. 2017: Diretrizes em Hipertensão Arterial para Cuidados Primários nos Países de Língua Portuguesa. Arq Bras Cardiol. 2017;109(5):389-96. doi: http://dx.doi.org/10.5935/abc.20170165
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Nov 2017
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