Acessibilidade / Reportar erro

Quilopericárdio idiopático primário: relato de caso

Resumos

O acúmulo de quilo no espaço pericárdico ou quilopericárdio é uma condição que, com maior frequência, ocorre após trauma, cirurgia cardíaca e torácica ou associado a tumores, tuberculose ou linfoangiomatose. Quando não é possível a identificação precisa da etiologia, o quilopericárdio é denominado primário ou idiopático. Essa é uma situação clínica rara. Descrevemos um caso em paciente do sexo feminino, com 20 anos de idade, tratada cirurgicamente. A propósito do caso, apresentamos breve revisão da literatura e comentários sobre quadro clínico, etiopatogenia, exames diagnósticos complementares e opções de tratamento.

Derrame pericárdico; quilopericárdio idiopático primário


La acumulación de quilo en el espacio pericárdico o quilopericardio es una condición que con mayor frecuencia ocurre después de trauma, cirugía cardíaca y torácica o asociado a tumores, tuberculosis o linfoangiomatosis. Cuando no es posible la identificación precisa de la etiología, el quilopericardio se denomina primario o idiopático. Esta es una situación clínica rara. Describimos un caso en paciente del sexo femenino, con 20 años de edad, tratada quirúrgicamente. A propósito del caso, presentamos una breve revisión bibliográfica y comentarios sobre el cuadro clínico, la etiopatogenia, exámenes diagnósticos complementarios y opciones de tratamiento.

Derrame pericárdico; Quilopericardio idiopático primario


The accumulation of chyle in the pericardial space, or chylopericardium, is a condition occurring most frequently after trauma, cardiac and thoracic surgery, or in association with tumors, tuberculosis or lymphangiomatosis. When its precise cause cannot be identified, it is called primary or idiopathic chylopericardium. This is a rare clinical entity. We report the case of a surgically treated 20-year-old female patient. A brief review of the literature and comments on the clinical presentation, etiopathogenesis, ancillary diagnostic tests and treatment options are also presented.

Pericardial effusions; chylopericardium idiopathic primary


RELATO DE CASO

Quilopericárdio idiopático primário - relato de caso

Marcos Augusto de Moraes Silva; Antonio Sérgio Martins; Nelson Leonardo K. Leite de Campos; Rubens Ramos de Andrade; Leonardo Massato Tohi; João Carlos Hueb

Faculdade de Medicina de Botucatu da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Botucatu, SP - Brasil

Correspondência Correspondência: Marcos Augusto de Moraes Silva Disciplina de Cirurgia Cardiovascular do Departamento de Cirurgia e Ortopedia da Faculdade de Medicina de Botucatu - UNESP Distrito de Rubião Jr. s/n, Botucatu 18618-970 – São Paulo, SP - Brasil E-mail: marcos@fmb.unesp.br

RESUMO

O acúmulo de quilo no espaço pericárdico ou quilopericárdio é uma condição que, com maior frequência, ocorre após trauma, cirurgia cardíaca e torácica ou associado a tumores, tuberculose ou linfoangiomatose. Quando não é possível a identificação precisa da etiologia, o quilopericárdio é denominado primário ou idiopático. Essa é uma situação clínica rara. Descrevemos um caso em paciente do sexo feminino, com 20 anos de idade, tratada cirurgicamente. A propósito do caso, apresentamos breve revisão da literatura e comentários sobre quadro clínico, etiopatogenia, exames diagnósticos complementares e opções de tratamento.

Palavras-chave: Derrame pericárdico; quilopericárdio idiopático primário.

Introdução

Quilopericárdio isolado foi descrito pela primeira vez em 1888, por Hasebrock em autopsia1. É uma entidade clínica pouco comum em que quilo se acumula na cavidade pericárdica1-3. Pode ser causado por trauma cirúrgico, irradiação, tuberculose, obstrução de cava, tumores primários ou metastáticos de mediastino1,3-5. A fisiopatologia comum a todas essas condições parece ser a obstrução do ducto torácico, sem o desenvolvimento de drenagem colateral4. Linfoangiomatose congênita e linfangectasia também podem ser causa de quilopericárdio6,7.

Em muitos casos, contudo, não é possível estabelecer, de forma precisa, a etiologia. Para descrever esses casos, Groves e Effler8, em 1954, introduziram os termos quilopericárdio "primário" ou "idiopático".

Relatamos a seguir caso de quilopericárdio idiopático ou primário, tratado cirurgicamente.

Relato do Caso

Paciente do sexo feminino, com 20 anos de idade, procedente de Lençóis Paulista (SP), encaminhada em 10/05/2005 ao nosso hospital, com o diagnóstico de derrame pericárdico importante.

HPMA: Dispnéia leve aos grandes esforços há seis meses, com piora para médios esforços há dois meses. Negava edema, tontura, palpitação ou precordialgia.

Exame físico

Bom estado geral, mucosas úmidas e coradas, acianótica, P=FC=96bpm, PA 110x60 mmHg. Sem sinais de estase jugular ou edema de membros inferiores. Baço não percutível e não palpável. Ictus não visível e não palpável, sem frêmitos; bulhas rítmicas, com discreto abafamento, sem sopros.

Exames complementares

Hemograma, sódio, potássio, magnésio, cálcio, glicemia uréia creatinina proteínas totais e frações, DHL, TGO e TGP normais, prova do látex negativa, PCR normal e sorologias para hepatite B, C e HIV negativas. Rx de tórax: aumento de área cardíaca (fig.1).


Ecocardiograma - derrame pericárdico importante, sem sinais de restrição diastólica.

Tomografia de tórax - cardiomegalia com sinais de congestão venosa pulmonar.

Evolução

Em 17/05/2005, a paciente foi submetida a drenagem pericárdica por via sub-xifoidiana, pela técnica de Marfan, sendo retirados 700 ml de liquido leitoso, espesso, com aspecto de quilo. Foram realizadas biópsia do pericárdio e coleta de amostras do líquido e sangue para exames. No pós-operatório o volume drenado foi de aproximadamente 500 ml e o dreno pericárdico foi sacado no quarto dia, 48 horas após a drenagem ter cessado. A paciente recebeu alta no sétimo pós -operatório (P.O.), com linfocintilografia agendada ambulatorialmente.

Biópsia do pericárdio - espessamento fibroso e reação mesotelial.

Exames laboratoriais

Sangue - colesterol total 140 mg/dl; LDL-colesterol 62 mg/dl; triglicérides 70 mg/dl.

Liquido pericárdico - triglicérides 1.420 mg/dl; cultura-negativa; bacterioscopia - ausência de bactérias, raros leucócitos; citologia - contagem global: hemácias 2.600 mm3; leucócitos 3.200 mm3; contagem diferencial: linfócitos 3%; monócitos 8%; segmentados 89%.

Linfocintilografia 14 dias após a drenagem pericárdica mostrou aspecto normal dos membros inferiores e acúmulo anômalo de radiofármaco em tórax, podendo representar presença de linfa em espaço pericárdico ou pleural, secundária à processo obstrutivo ou agenesia parcial de ducto torácico (fig.2).


Vinte dias após a alta, a paciente foi reinternada com derrame pericárdico importante e queixa de dispnéia aos médios esforços. Operada por toracotomia médio-esternal, foi retirado cerca de 1.000 ml de líquido leitoso espesso, com aspecto de quilo e realizada pericardiectomia parcial associada à derivação pericardioperitonial. As cavidades pleurais e o mediastino foram drenados.

No pós-operatório o volume de drenagem manteve-se na faixa de 150 a 400 ml/dia (média de 240 ml/dia) por 15 dias, a partir de quando passou a diminuir, até cessar totalmente do 30º dia.

Discussão

A partir da descrição de Groves e Effler8 em 1954, Dunn1 em 1975, refere 22 casos de quilopericárdio "primário" ou "idiopático" descritos na literatura. Akamatsu e cols6. referem, até 1992, 79 casos, e Yüksel e cols2., até 1997, 89 casos. A partir de 1997, encontramos relatos de 25 novos casos, totalizando 114 casos descritos até 2007. Na literatura nacional só encontramos relato de um caso, feito por Fernandes e cols.3 em 1998.

A fisiopatologia do quilopericárdio primário pode estar relacionada à anormalidade da conexão entre o ducto torácico e o pericárdio, com presença de fistulas, refluxo de quilo associado à hipertensão linfática com perda do mecanismo valvular e aumento da permeabilidade da parede dos vasos linfáticos3.

O quadro clínico varia de assintomático a sinais de tamponamento cardíaco. Os sintomas mais freqüentes são dispnéia, fadiga e tosse5.

O diagnóstico diferencial se faz com todas as causas de derrame pericárdico e a confirmação de quilopericárdio, na maioria dos casos, só é feita após a pericardiocentese pelo liquido pericárdico de aspecto quiloso, com quilomícrons e níveis altos de triglicérides. Confirmado o diagnóstico, é indicado o estudo dos vasos linfáticos por meio de linfoangiografia, que auxilia a identificação de fistulas linfopericárdicas, variações da anatomia ou aplasia parcial do ducto torácico3,5,9. Tomografia computadorizada pode ser útil para afastar linfoangiomatose.

O tratamento conservador do quilopericárdio é feito com dieta hipogordurosa, utilizando triglicérides de cadeia média, cuja absorção é feita via veia porta e não pela via dos vasos linfáticos, como ocorre com os de cadeia longa3. Entretanto, o tratamento conservador do quilopericárdio idiopático primário, em contraste com o quilopericárdio pós-traumático, dificilmente obtém sucesso5.

Nesses casos, indica-se tratamento cirúrgico, que inclui janela pericardioperitonial, pericardiectomia e ligadura com ressecção do ducto torácico logo acima do diafragma6,7.

Akamatsu e cols.6 referem que dos 79 casos descritos na literatura até 1992, 10 (13%) receberam tratamento conservador, e seis (60%) desses pacientes refizeram o derrame. Os restantes 69 pacientes (87%) foram tratados cirurgicamente; 21 (27%) por janela pericárdica, sete (9%) por ligadura e ressecção do ducto torácico e 41 (52%) por ligadura e ressecção do ducto torácico associada à janela pericárdica.

A ligadura e ressecção do ducto torácico logo acima do diafragma associado à pericardiectomia parcial tem sido o tratamento utilizado na maioria dos casos6. Mais recentemente, esse procedimento também tem sido feito por meio de toracoscopia4.

Com a conduta adotada no nosso caso, pericardiectomia parcial associada à janela pericardioperitonial, após mais de dois anos de seguimento, a paciente está bem, sem queixas, tendo apresentado como única intercorrência pequeno derrame pleural à direita. Assim, acreditamos que o resultado obtido foi bom, mas apresentou como inconvenientes volume alto de drenagem nos primeiros dias de pós-operatório e período de internação longo.

Potencial Conflito de Interesses

Declaro não haver conflito de interesses pertinentes.

Fontes de Financiamento

O presente estudo não teve fontes de financiamento externas.

Vinculação Acadêmica

Não há vinculação deste estudo a programas de pós-graduação.

Artigo recebido em 29/01/08; revisado recebido em 24/06/08; aceito em 11/07/08.

  • 1. Dunn RP. Primary chylopericardium: a review of the literature and illustrated case. Am Heart J. 1975; 89 (3): 369-77.
  • 2. Yüksel M, Yildizeli B, Zonüzi F, Batirel HF. Isolated primary chylopericardium. Eur J Cardiothorac Surg. 1997; 12: 319-21.
  • 3. Fernandes F, Arteaga E, Carvalho MSS, Ianni BM, Fernandes PP, Mady C. Quilopericardio idiopático. Arq Bras Cardiol. 1998; 71 (2): 131-4.
  • 4. Furrer M, Holp M, Ris HB. Isolated primary chylopericardium: treatment by thorascoscopic thoracic duct ligation and pericardial fenestration. J Thorac Cardiovasc Surg. 1996; 112 (4): 1120-1.
  • 5. Svedjeholm R, Jansson K, Olin C. Primary idiopathic chylopericardium a case report and review of the literature. Eur J Cardiothorac Surg. 1997; 11: 387-90.
  • 6. Akamatsu H, Amano J, Sakamato T, Suzuki A. Primary chylopericardium. Ann Thorac Surg. 1994; 58 (1): 262-6.
  • 7. Mahon NG, Nölke L, MacCann H, Sugrue D, Hurley J. Isolated chylopericardium. Surg J R Coll Surg Edinb Irel. 2003; 1: 236-8.
  • 8. Groves LK, Effler DB. Primary chylopericardium. N Engl J Med. 1954; 250 (12): 520-3.
  • 9. Mewis C, Külkamp V, Sokiranski R, Karsch KR. Primary chylopericardium due to partial aplasia of the thoracic duct. Eur Heart J. 1997; 18: 880-1.
  • Correspondência:

    Marcos Augusto de Moraes Silva
    Disciplina de Cirurgia Cardiovascular do Departamento de Cirurgia e Ortopedia da Faculdade de Medicina de Botucatu - UNESP
    Distrito de Rubião Jr. s/n, Botucatu
    18618-970 – São Paulo, SP - Brasil
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      20 Jul 2009
    • Data do Fascículo
      Jun 2009

    Histórico

    • Aceito
      11 Jul 2008
    • Revisado
      24 Jun 2008
    • Recebido
      29 Jan 2008
    Sociedade Brasileira de Cardiologia - SBC Avenida Marechal Câmara, 160, sala: 330, Centro, CEP: 20020-907, (21) 3478-2700 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil, Fax: +55 21 3478-2770 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: revista@cardiol.br