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Função Pulmonar e Força Muscular Inspiratória na Insuficiência Cardíaca: Elas Podem ser Consideradas Potenciais Marcadores Prognósticos?

Insuficiência Cardíaca; Insuficiência Respiratória; Músculos Respiratórios; Função Ventricular; Tolerância ao Exercício; Medição de Risco

A insuficiência cardíaca (IC) é uma síndrome complexa considerada um grande problema de saúde pública. Diferentes subtipos de IC são classicamente definidos com base na fração de ejeção do ventrículo esquerdo (FEVE).11.Jorge AJL, Barbetta LMDS, Correia ETO, Martins WA, Leite AR, Saad MAN, et al. Characteristics and Temporal Trends in the Mortality of Different Heart Failure Phenotypes in Primary Care. Arq Bras Cardiol. 2021;117(2):300-6. doi: 10.36660/abc.20190912. Embora seu prognóstico tenha melhorado nas últimas décadas – explicado, em parte, pelos grandes avanços terapêuticos22.Iacoviello M, Palazzuoli A, Gronda E. Recent advances in pharmacological treatment of heart failure. Eur J Clin Invest. 2021;51(11):e13624. doi: 10.1111/eci.13624 – a IC persiste com uma alta mortalidade influenciando negativamente a qualidade de vida.33.Fernandes SL, Carvalho RR, Santos LG, Sá FM, Ruivo C, Mendes SL, et al. Pathophysiology and Treatment of Heart Failure with Preserved Ejection Fraction: State of the Art and Prospects for the Future. Arq Bras Cardiol. 2020;114(1):120-9. doi: 10.36660/abc.20190111.,44.Groenewegen A, Rutten FH, Mosterd A, Hoes AW. Epidemiology of heart failure. Eur J Heart Fail. 2020;22(8):1342-56. doi: 10.1002/ejhf.1858. Nesse sentido, sintomas comuns experimentados nessa doença, como a falta de ar e a intolerância ao exercício, contribuem muito para esse declínio acentuado na qualidade de vida dos indivíduos.55.McDonagh TA, Metra M, Adamo M, Gardner RS, Baumbach A, Böhm M, et al. 2021 ESC Guidelines for the diagnosis and treatment of acute and chronic heart failure. Eur Heart J. 2021;42(36):3599-726. doi: 10.1093/eurheartj/ehab368.
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Outra condição, considerada um importante fator de risco que geralmente acompanha a IC, é a disfunção pulmonar.66.Hawkins NM, Virani S, Ceconi C. Heart failure and chronic obstructive pulmonary disease: the challenges facing physicians and health services. Eur Heart J. 2013;34(36):2795-803. doi: 10.1093/eurheartj/eht192 Os comprometimentos respiratórios observados na IC podem estar relacionados a diversas razões, como comprometimento da mecânica pulmonar e da difusão gasosa,77.Agostoni P, Bussotti M, Cattadori G, Margutti E, Contini M, Muratori M, et al. Gas diffusion and alveolar-capillary unit in chronic heart failure. Eur Heart J. 2006;27(21):2538-43. doi: 10.1093/eurheartj/ehl302. além de fraqueza muscular respiratória – agravando o aumento da dispneia, sendo uma das principais limitações ao exercício físico.88.Gomes Neto M, Ferrari F, Helal L, Lopes AA, Carvalho VO, Stein R. The impact of high-intensity inspiratory muscle training on exercise capacity and inspiratory muscle strength in heart failure with reduced ejection fraction: a systematic review and meta-analysis. Clin Rehabil. 2018;32(11):1482-92. doi: 10.1177/0269215518784345
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A espirometria é um teste amplamente utilizado que permite a análise da função pulmonar – medindo a quantidade de ar inspirado e expirado ao máximo. Como a doença pulmonar obstrutiva crônica compartilha sinais e sintomas semelhantes aos da IC, sua identificação em indivíduos com IC pode ser um desafio; nesse sentido, a espirometria pode ajudar a confirmar o diagnóstico.99.Plesner LL, Dalsgaard M, Schou M, Køber L, Vestbo J, Kjøller E, et al. The prognostic significance of lung function in stable heart failure outpatients. Clin Cardiol. 2017;40(11):1145-51. doi: 10.1002/clc.22802. Na avaliação da gravidade potencial de algumas doenças pulmonares, o teste ergométrico também pode ser útil, observando uma série de parâmetros, como a relação volume expiratório forçado no primeiro segundo/capacidade vital forçada (VEF1/CVF).1010.Bektas S, Franssen FME, van Empel V, Uszko-Lencer N, Boyne J, Knackstedt C, et al. Impact of airflow limitation in chronic heart failure. Neth Heart J. 2017;25(5):335-42. doi: 10.1007/s12471-017-0965-4. A gravidade da doença ainda pode ser classificada com base no VEF1 quando está abaixo do limite inferior da normalidade (variando de leve quando ≥70% do previsto a muito grave quando <35% do previsto). Embora a própria IC possa levar a uma diminuição do VEF1 e da CVF em cerca de 20% do previsto,1010.Bektas S, Franssen FME, van Empel V, Uszko-Lencer N, Boyne J, Knackstedt C, et al. Impact of airflow limitation in chronic heart failure. Neth Heart J. 2017;25(5):335-42. doi: 10.1007/s12471-017-0965-4. além do fato de que um VEF1 pior pode predizer maior mortalidade,1111.Heidorn MW, Steck S, Müller F, Tröbs SO, Buch G, Schulz A, et al. FEV1 Predicts Cardiac Status and Outcome in Chronic Heart Failure. Chest. 2022;161(1):179-89. evidências convincentes que examinem o papel prognóstico do VEF1 no cenário da IC ainda precisam de mais investigação.

Nesta edição dos Arquivos Brasileiros de Cardiologia, Ramalho et al.1212.Ramalho SHR, Balbuena de Lima AC, da Silva FM, Souza FSJ, Cahalin LP, Cipriano GB, et al.Relationship of Lung Function and Inspiratory Strength with Exercise Capacity and Prognosis in Heart Failure. Arq Bras Cardiol. 2022; 118(4):680-691. compartilharam dados de um estudo de coorte com 111 adultos brasileiros (média de idade: 57 anos; 40% mulheres) com IC crônica, sem doença pulmonar diagnosticada e que realizaram teste de força muscular respiratória e espirometria; os participantes foram posteriormente acompanhados por uma média de 2,2 anos. Alguns dos objetivos do estudo foram analisar a relação VEF1/CVF com (a) pressão inspiratória máxima, (b) FEVE e (c) prognóstico dos pacientes – este último definido como um composto de morte cardiovascular (CV), transplante cardíaco de emergência ou implante de dispositivo de assistência ventricular esquerda. No geral, a FEVE média inicial foi de 38%, mas 24 dos pacientes apresentaram FEVE >50%; a grande maioria da amostra (64%) estava na classe III pela classificação da NYHA. A cardiopatia isquêmica e a doença de Chagas foram as principais etiologias observadas (39% e 29%, respectivamente). Os pacientes estavam relativamente bem tratados, recebendo terapia médica otimizada (betabloqueadores em 90%, inibidores do sistema renina-angiotensina-aldosterona em 84% e antagonistas dos receptores mineralocorticoides em 66%).

Este artigo tem várias descobertas interessantes que merecem destaque. Tanto a CVF quanto a VEF1/CVF não se correlacionaram com melhor ou pior prognóstico durante o seguimento médio. Por outro lado, após uma análise de sensibilidade, uma VEF1/CVF baixa foi indicada como um potencial marcador de risco para aumento de eventos adversos cardiovasculares maiores nos indivíduos teoricamente mais graves, ou seja, com FEVE <50%. Além disso, um risco maior de eventos cardiovasculares foi observado naqueles com pressão inspiratória máxima reduzida e VEF1/CVF (razão de risco 1,72; intervalo de confiança de 95%, 1,14 a 2,61).

Décadas atrás, Tockman et al.1313.Tockman MS, Pearson JD, Fleg JL, Metter EJ, Kao SY, Rampal KG, et al. Rapid decline in FEV1. A new risk factor for coronary heart disease mortality. Am J Respir Crit Care Med. 1995;151(2 Pt 1):390-8. doi: 10.1164/ajrccm.151.2.7842197. relataram o VEF1 como um preditor independente de mortalidade CV após acompanhar uma coorte de homens aparentemente saudáveis. Em outros estudos observacionais que avaliaram o prognóstico da pressão inspiratória máxima em pacientes com IC, Hamazaki et al.1414.Hamazaki N, Kamiya K, Yamamoto S, Nozaki K, Ichikawa T, Matsuzawa R, et al. Changes in Respiratory Muscle Strength Following Cardiac Rehabilitation for Prognosis in Patients with Heart Failure. J Clin Med. 2020;9(4):952. doi: 10.3390/jcm9040952. relataram menor incidência de eventos clínicos em pacientes com grande variedade de FEVE (maioria na classe funcional II da NYHA) quando uma pressão inspiratória máxima maior estava presente, após sessões de reabilitação cardíaca e com seguimento médio de 1,8 anos, mesmo após ajuste para fatores de confusão. Meyer et al. sugeriram que a força muscular inspiratória poderia ser útil na estratificação de risco dos pacientes.1515.Meyer FJ, Borst MM, Zugck C, Kirschke A, Schellberg D, Kübler W, et al. Respiratory muscle dysfunction in congestive heart failure: clinical correlation and prognostic significance. Circulation. 2001;103(17):2153-8. doi: 10.1161/01.cir.103.17.2153.

Apesar dos achados interessantes, que em certa medida corroboram estudos anteriores, o estudo de Ramalho et al.1212.Ramalho SHR, Balbuena de Lima AC, da Silva FM, Souza FSJ, Cahalin LP, Cipriano GB, et al.Relationship of Lung Function and Inspiratory Strength with Exercise Capacity and Prognosis in Heart Failure. Arq Bras Cardiol. 2022; 118(4):680-691. não permite inferências causais com segurança devido ao seu desenho observacional e deve ser interpretado à luz desta e de outras possíveis limitações. Embora esteja bem estabelecido que a IC é comumente caracterizada por anormalidade dos músculos respiratórios, com consequente declínio na qualidade de vida e possivelmente pior prognóstico, seria prematuro concluir definitivamente uma associação direta entre a pressão inspiratória máxima ou VEF1/CVF com risco aumentado de eventos cardiovasculares nesta população, independentemente da FEVE. Apesar destes comentários, este estudo fornece informações importantes para a literatura e reacende a possibilidade de que a VEF1/CVF possa ser usada como ferramenta prognóstica, oferecendo informações incrementais no cenário da IC, especialmente no grupo de pacientes considerados de maior risco. Ainda assim, seria prudente afirmar que a relação entre esses marcadores e o prognóstico desses indivíduos permanece incerta.

Referências

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  • Minieditorial referente ao artigo: Relação da Função Pulmonar e da Força Inspiratória com Capacidade Aeróbica e com Prognóstico na Insuficiência Cardíaca

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    Abr 2022
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