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Caso 4/97 - Instituto do Coração do Hospital das Clínicas - FMUSP

Correlação Anatomoclínica

Correlação Anatomoclínica

(Caso 4/97 - Instituto do Coração do Hospital das Clínicas - FMUSP)

Homem de 43 anos de idade, retornou ao Hospital por apresentar lipotimia no período pós-operatório de ventriculectomia parcial do ventrículo esquerdo (VE).

Os sintomas iniciaram-se há seis anos, com dispnéia progressiva até ser desencadeada por pequenos esforços. O doente era tabagista de 40 cigarros diários e etilista de duas doses de conhaque por dia. Procurou atendimento médico e recebeu informação diagnóstica de hipertensão arterial sistêmica (HAS) (180x140mmHg). Os sintomas foram controlados com o uso de medicação anti-hipertensiva e o paciente teve boa evolução até há 11 meses, ocasião em que a dispnéia aos esforços reapareceu e rapidamente progrediu para mínimos esforços, ortopnéia e dispnéia paroxística noturna, acompanhada de edema generalizado.

O paciente foi hospitalizado em outro Serviço. Das informações disponíveis, o ecocardiograma (ECO) revelou VE dilatado, com hipocinesia difusa e insuficiência mitral moderada As medidas das câmaras cardíacas encontram-se na tabela I e, submetido ao cateterismo cardíaco, as pressões nas câmaras cardíacas são apresentadas na tabela II. A cineangiografia revelou coronárias com lesões ateroscleróticas difusas e discretas, além de hipocinesia difusa acentuada de VE.

O paciente foi então encaminhado a este Hospital para tratamento. Fazia uso de digoxina 0,25mg, furosemida 120mg, espironolactona 100mg, captopril 150mg, monitrato de isossorbida 60mg e aminofilina 600mg diários.

O exame físico revelou pulso fino, regular, com freqüência de 100bpm, pressão arterial (PA) 100x80mmHg. O exame dos pulmões revelou estertores em bases pulmonares. O íctus estava desviado para fora da linha hemiclavicular esquerda e no 5º espaço intercostal esquerdo e sopro sistólico +/4+ em área mitral. O fígado foi palpado a 1cm da reborda costal direita.

Os exames laboratoriais são apresentados na tabela III. Os exames sorológicos para diagnóstico da doença de Chagas, síndrome da imunodeficiência humana adquirida, toxoplasmose, hepatite B e mononucleose foram negativos. A sorologia para citomegalovírus foi positiva para anticorpos da classe IgG.

O eletrocardiograma (ECG) revelou ritmo sinusal, freqüência de 100bpm, duração de onda P 0,12s, intervalo PR 0,20s, complexo QRS 0,08s, SÂQRS -30º para trás, sobrecarga biatrial e ventricular esquerda e alterações de repolarização ventricular (fig. 1).


O ECG de longa duração pelo sistema Holter (23h e 38min de gravação) revelou 127 extra-sístoles ventriculares isoladas, duas pareadas, um episódio de taquicardia ventricular não-sustentada, com três batimentos e freqüência de 161bpm e 13 extra-sístoles atriais isoladas.

As pressões obtidas no cateterismo da artéria pulmonar encontram-se na tabela IV. Novo estudo hemodinâmico e angiográfico revelou VE dilatado e com hipocinesia difusa e acentuada. As medidas das pressões nas câmaras cardíacas estão na tabela III.

Foi feito o diagnóstico de cardiopatia hipertensiva. A gravidade do quadro clínico, a dificuldade em aliviar os sintomas, a refratariedade ao tratamento, fez necessário o tratamento cirúrgico da insuficiência cardíaca.

O paciente foi submetido a ventriculectomia parcial de VE, com retirada de fatia triangular de 4,5cm de base e 9cm de lado, da ponta até região dos músculos papilares. Houve dificuldade de saída de circulação extracorpórea pela disfunção ventricular. Evoluiu no período pós-operatório com instabilidade hemodinâmica por sete dias, quando fez uso de dobutamina endovenosa. Apresentou derrame pleural e imagem de condensação pulmonar à direita.

A curva dos níveis séricos da fração MB da creatinofosfoquinase, após a operação, são apresentadas na tabela V e outros exames laboratoriais na tabela III.

O exame anatomopatológico dos fragmentos do coração retirados na ventriculectomia revelou hipertrofia de fibras miocárdicas, fibrose intersticial com predomínio perivascular, áreas focais de infartos subendocárdicos cicatrizados e trombo endocárdico organizado.

O exame bacterioscópico do líquido pleural revelou numerosos leucócitos polimorfonucleares e ausência de bactérias. As culturas foram negativas. O exame citológico do líquido pleural revelou inflamação aguda com grande quantidade de células gigantes. A pesquisa de bacilos álcool-ácido-resistentes e fungos foi negativa.

Foi iniciada a administração de 2g diários de ceftriaxona a partir do 2º dia pós-operatório.

O ECG de alta resolução não revelou potenciais tardios.

A ventriculografia radioisotópica revelou VE com aumento discreto para moderado de volume e hipocinesia difusa moderada, mais acentuada na região apical. O ventrículo direito (VD) apresentou aumento discreto para moderado e hipocinesia difusa moderada. A fração de ejeção de ventrículo esquerdo (FEVE) foi 0,22 e de VD 0,21.

O estudo hemodinâmico e angiográfico pós-operatório revelaram VE dilatado e com hipocinesia difusa. As medidas das pressões obtidas são apresentadas na tabela II.

A recuperação do paciente foi progressiva e recebeu alta hospitalar no 20º dia pós-operatório em classe funcional (CF) II da NYHA, com prescrição de 0,25mg de digoxina, 120mg de furosemida, 100mg de espironolactona e 150mg de captopril.

Depois de 45 dias da alta apresentou três episódios de pré-síncope e foi internado. Na madrugada do dia seguinte ocorreu síncope em que foi registrada taquicardia ventricular sustentada (TVS), revertida com choque de 50J. O exame físico, após a cardioversão revelou paciente com extremidades frias, freqüência cardíaca 85bpm, PA 100x64mmHg. O exame dos pulmões foi normal. O exame do coração revelou presença de 3ª bulha e sopro sistólico +/4++ em área mitral.

Foram administrados rapidamente 300mg de amiodarona por via endovensa e prescritos 900mg em 24h. Foram suspensos a digoxina (0,25mg), captopril (18,75mg), e introduzidos dobutamina e nitroprussiato de sódio. Foi feita monitorização hemodinâmica com cateter de Swan Ganz (tab. IV).

O paciente permaneceu com extra-sístoles ventriculares freqüentes e numerosos episódios de taquicardia ventricular não-sustentadas. Na noite do mesmo dia apresentou convulsões tônico-clônicas durante episódio de taquicardia ventricular que foi revertida para ritmo sinusal com cardioversão elétrica de 200J e foi introduzida xilocaína 2mg/min.

O ECG revelou ritmo sinusal com freqüência de 94bpm, duração de onda P 0,12s, duração de complexo QRS 0,08s, eixo do complexo QRS indeterminado no plano frontal, baixa voltagem de complexo QRS em plano frontal, sobrecarga atrial esquerda, provável área inativa em paredes inferior e septal, e perda de potenciais em paredes anterior e lateral (fig. 2).


Evoluiu em choque cardiogênico e episódios de TVS. Apresentou piora súbita com hipotensão e bradicardia, faleceu no 3º dia de hospitalização.

Discussão

Eletrocardiograma - O ECG inicial (fig. 1) que revela sobrecargas atrial e ventricular esquerdas é habitualmente encontrado em portadores de cardiopatias que cursam com dilatação ventricular, seja ela oriunda de sobrecarga de volume ou pressão ou, ainda, de origem desconhecida como na cardiomiopatia dilatada.

Quanto ao 2º traçado eletrocardiográfico este demonstra o padrão que temos visto após a cirurgia de ventriculectomia parcial (fig. 2). A perda de potenciais de paredes anterior e lateral não pode ser explicada apenas pela retirada da fatia de ventrículo, pois existe a reconstrução da geometria ventricular na sutura da parede ventricular.

(Dr. Paulo Jorge Moffa)

Aspectos clínicos - Trata-se de homem que há seis anos apresentou dispnéia aos esforços progressiva até aos mínimos esforços. Foram feitos diagnósticos de insuficiência cardíaca congestiva (ICC) e de HAS.

O achado de HAS permite o diagnóstico de cardiopatia hipertensiva como provável etiologia da ICC. A cardiopatia isquêmica também é improvável; não houve angina de peito, e a cineangiocoronariografia demonstrou lesões discretas em artérias coronárias.

Com o tratamento anti-hipertensivo houve regressão dos sintomas. Há 11 meses os sintomas de ICC reapareceram, apesar do tratamento medicamentoso. Dados dos exames clínico e complementares apontam para evolução para fase final de cardiopatia hipertensiva com dilatação e disfunção ventricular acentuadas. O ECO demonstrou cavidade de VE 6,6cm, insuficiência mitral, provavelmente secundária à dilatação, fração ejeção <0,30, e ausência de hipertrofia de parede posterior de VE e septo interventricular. O cateterismo revelou hipocinesia difusa acentuada de VE. Houve também desaparecimento da HAS e tendência à hipotensão (PA= 100x70mmHg).

O tratamento clínico adequado para ICC com diurético, digital e vasodilatador foi introduzido sem alívio dos sintomas.

O diagnóstico de ICC refratária só deve ser feito quando excluídas as seguintes condições: não aderência à dieta ou a medicação; estado de baixo débito secundário a pré-carga inadequada por uso excessivo de diurético; intoxicação digitálica; distúrbio hidroeletrolítico; tromboembolia pulmonar não reconhecida; infecções (pneumonia, endocardite, etc); hipertireoidismo; disfunção do nó sinusal ou bloqueios da condução do estímulo, os quais podem ser corrigidos com o uso de marcapasso; uso de medicações retentoras de sal (corticosteróides, estrógenos) ou inotrópicos negativos (betabloqueadores).

No caso em questão, não havendo nenhuma dessas condições, o diagnóstico de ICC avançada (CF III), refratária a medicação foi estabelecido.

Para se justificar a conduta tomada no caso, alguns aspectos importantes da insuficiência cardíaca devem ser comentados.

A ICC é doença de alta prevalência e mortalidade na população e, no Brasil, é a 3ª principal causa de morte por doenças cardiovasculares nas capitais, depois do acidente vascular cerebral e doença coronária.

Na cidade de São Paulo, em 1989, o índice de mortalidade por ICC foi de 42 por 100.000 habitantes para homens e 28 por 100.000 habitantes para mulheres 1 (fig. 3 A e B).


No estudo Framinghan observou-se mortalidade em cinco anos de cerca de 50%, com melhor prognóstico para mulheres e pacientes mais jovens. Quando se analisou a etiologia da ICC, a cardiopatia hipertensiva, como causa isolada representou 24% dos casos no mesmo estudo 2.

O estudo Consensus avaliou a mortalidade de acordo com a CF da NYHA, em pacientes em uso de medicação adequada e demonstrou mortalidade em um ano de 36% em pacientes com CF IV 3. Resultados de estudos não controlados sugerem mortalidade entre 30% e 60% em pacientes em CF III.

Experiência nacional 4 em portadores de ICC revelou mortalidade apresentada na tabela VI.

Assim, a alta mortalidade dos pacientes em ICC em CF III e IIV, faz com que o tratamento cirúrgico seja a alternativa ao tratamento clínico, com o objetivo de melhorar a sobrevida.

Como a avaliação da CF é passível de imprecisão, outros parâmetros de gravidade e preditores de mortalidade devem também ser analisados em cada caso para se fazer a indicação de tratamento cirúrgico.

Em estudo de fração de ejeção (FE) como fator prognóstico em ICC verificou-se que pacientes com FEVE <20% apresentaram mortalidade em 16 meses de 17%, os pacientes com FEVE entre 21 e 30%, taxa de mortalidade de 14% e aqueles com FEVE >30%, taxa de 7% 5. O paciente em questão apresentava FEVE <20% na ventriculografia contrastada 5.

Há associação entre a concentração plasmática de noradrenalina e a mortalidade de portadores de ICC. Os pacientes com concentração plasmática de noradrenalina >600pg/mL são considerados como de maior risco de óbito. O paciente, ora em discussão, apresentava taxa de noradrenalina plasmática de 511pg/mL, próximo aos 600pg/mL 6.

A concentração sérica de sódio também está relacionada com prognóstico em portadores de ICC, e relação inversa com os níveis de atividade de enzima conversora de angiotensina no plasma 7. Pacientes com taxa de sódio sérico <137mEq/L têm média de sobrevivência 164 dias e aqueles com >137mEq/L têm sobrevivência média de 373 dias 7. O paciente em questão apresentava taxa de sódio sérico de 136mEq/L.

Outro índice importante é o consumo de oxigênio pelo teste ergoespirométrico.Pacientes com consumo máximo de oxigênio (VO2max) <14mL/kg/min apresentam sobrevida em um ano <70%, e geralmente está indicado o transplante cardíaco. Pacientes com VO2max <10mL/kg/min têm ainda pior prognóstico com indicação precisa de transplante cardíaco 8. Não temos no relato do caso o resultado do teste ergoespirométrico.

Assim, tendo como base a CF, a refratariedade ao tratamento e aos outros parâmetros expostos foi indicado tratamento cirúrgico, cujas modalidades são o transplante cardíaco, a cardiomioplastia e a ventriculectomia.

O transplante cardíaco é hoje o tratamento de escolha para pacientes com ICC avançada refratária ao tratamento clínico. A expectativa de vida hoje após transplante cardíaco é de 80% a 90% em um ano e 60% a 70% em cinco anos 9. A cardiomioplastia e a ventriculectomia são técnicas novas, que surgiram dadas a demora, a dificuldade em se conseguir doadores e a mortalidade alta dos pacientes que estão na fila esperando cirurgia de transplante cardíaco.

A cardiomioplastia foi empregada clinicamente pela 1ª vez em 1985, por Carpentier e Chachques no tratamento de uma portadora de extenso tumor de VE 10.

A técnica baseia-se na utilização de enxertos musculares esqueléticos pediculados, geralmente o músculo grande dorsal esquerdo, estimulados para contrair em sincronia com o coração ao redor das câmaras dilatadas, auxiliando ou substituindo parcialmente a contração miocárdica.

Na experiência do INCOR entre 1988 e 1993 foram operados 36 pacientes. Observaram-se melhora da CF e da função ventricular em pacientes com disfunção sistólica acentuada por cardiomiopatia dilatada. A sobrevida a longo prazo foi afetada pela CF e pela resistência vascular pulmonar pré-operatória, com resultados melhores em pacientes com CF III e resistência vascular pulmonar abaixo de 4U Wood. As taxas de sobrevida obtidas foram 83,2% em um ano, 61,5% em dois e 38,8% em cinco 11.

A técnica apresenta como complicação tardia à degeneração do enxerto muscular, devido à estimulação contínua, inicia-se, geralmente, após o 2º ano da cirurgia e se observa com cinco anos regressão da função ventricular aos valores do período pré-operatório.

A ventriculectomia parcial redutora começou a ser realizada no final de 1994, por Randas Vilela Batista 12. A técnica consiste na retirada de uma fatia muscular na parede lateral do VE entre os músculos papilares. O tamanho do fragmento retirado é tão largo quanto possível entre os músculos papilares, preservando a valva mitral. Com a retirada da fatia do músculo, há diminuição do tamanho da cavidade, com alteração geométrica, diminuição do estresse e melhora da FE.

No INCOR, o estudo da técnica iniciou-se em 1995. O critério de exclusão único utilizado foi a suspeita ou comprovação de arritmia ventricular sustentada prévia (história de síncope, TVS ou parada cardíaca ressuscitada, taquicardia supraventricular com freqüência ventricular elevada, necessidade de marcapasso, caquexia, não aderência ao tratamento medicamentoso, doença sistêmica com mau prognóstico, obesidade mórbida e uso de álcool e drogas ilícitas).

Até novembro de 1996 foram operados 24 pacientes. No período pós-operatório ocorreram oito óbitos: três no período hospitalar e cinco após a alta hospitalar. Todos os sobreviventes apresentaram melhora dos sintomas de ICC. Nove pacientes apresentaram TVS, sendo que quatro faleceram.

O caso clínico em discussão se encontra nessa casuística. O paciente evoluiu no período pós-operatório inicial com algumas complicações: instabilidade hemodinâmica e broncopneumonia que refletem, de uma certa forma, a gravidade do quadro no pré-operatório.

A ventriculografia radioisotópica pós-operatória continuou demonstrando acentuada disfunção ventricular com FEVE 0,22 e FE de VD 0,21. O cateterismo realizado em 1996 demonstrou melhora da FEVE (0,07 para 0, 36).

Apesar das complicações iniciais houve melhora clínica com paciente recebendo alta em CF II. Porém, decorrido um mês da operação, apresentou TVS recorrente com repercussão hemodinâmica seguida de choque cardiogênico, necessitando de uso de drogas vasoativas. A amiodarona endovenosa não preveniu a ocorrência de novos episódios de TVS de evolução fatal .

As arritmias ventriculares malignas, levando à morte súbita ou falência cardíaca e óbito, têm sido relatadas como causa comum de óbito em pacientes com ICC (aproximadamente 50%). O uso de drogas antiarrítmicas em ICC tem sido investigado em diversos estudos.

O estudo Gesica 94 mostrou uma redução de mortalidade de 28% com baixa dose de amiodarona em pacientes com ICC severa 13.Já o estudo do Depto de Cardiologia do Veterans Affairs Medical Center com amiodarona em pacientes com insuficiência cardíaca e arritmia ventricular assintomática, revelou que a amiodarona foi efetiva na supressão de arritmias ventriculares, melhorando a função ventricular, mas não reduziu a incidência de morte súbita ou prolongou a sobrevida entre paciente com ICC, exceto por uma tendência em relação a uma menor mortalidade entre aqueles com cardiopatia não isquêmica 14.

Apesar de causa comum de complicação em pacientes com disfunção ventricular, as arritmias ventriculares malignas têm se mostrado freqüentes: nove (37,5%) dos 24 doentes submetidos a ventriculectomia no INCOR, faleceram devido a essas complicações.

O motivo da ocorrência freqüente de TVS nesses pacientes vem sendo estudada, e se suspeita do envolvimento da cicatriz cirúrgica na gênese desta arritmia. A hipótese formulada é que a cicatriz cirúrgica produziria áreas de reentrada por si própria ou pela presença de ilhas de miocárdio preservado em meio à área de infarto adjacente à incisão.

Hipóteses diagnósticas - Cardiopatia hipertensiva; ventriculectomia parcial do VE e TVS fatal originada na região da cicatriz cirúrgica que provocou deterioração hemodinâmica, falência cardíaca e a morte.

( Dr. Paulo Roberto Vani Quintino)

Necropsia

A necropsia revelou coração dilatado e hipertrófico, pesando 950g (normal até 350g), com área de sutura linear na parede livre do VE medindo 12cm de comprimento. Havia faixa de infarto com cerca de 2cm de largura que incluía a cicatriz de ventriculectomia. O corte longitudinal da parede livre do VE revelou faixa de 1,5cm de largura de miocárdio sem infarto na base do VE, junto ao anel mitral. O corte transversal do coração ao nível dos ventrículos demonstrou diâmetro de VE menor que aquele do VD (fig. 4). A análise histológica confirmou a presença de infarto do miocárdio em organização na região circunjacente à incisão cirúrgica, com presença de "ilhas" de miocárdio preservado (fig. 5).



Havia congestão vascular com hipertrofia da camada média e oclusões focais da luz de pequenos vasos pulmonares, caracterizando hipertensão pulmonar grau III de Heath-Edwards, secundária à insuficiência cardíaca. Havia ainda área de infarto isquêmico em pulmão direito, provavelmente por trombose vascular por hipofluxo.

No fígado e rins havia congestão venosa crônica.

Diagnósticos anatomopatológicos - Infarto do miocárdio em organização em região de ventriculectomia parcial e sinais de congestão venosa crônica.

( Dra. Patrícia Maluf Cury)

Comentários

O tratamento da insuficiência cardíaca permanece um desafio para o cardiologista, o que tem estimulado o desenvolvimento de heart failure clinics, ou seja, centros especializados de tratamento de insuficiência cardíaca e, também, de pesquisa de novas opções clínicas e cirúrgicas para seu tratamento. Recentemente, a ressecção de VE associada a plastia de mitral ou tricúspide, tem sido proposta como um novo tipo de cirurgia para o tratamento da ICC 1. O conceito que fundamenta esta cirurgia é o de que a dilatação ventricular, resultado da remodelação ventricular e da agressão ao coração, é prejudicial ao coração. A dilatação ventricular seria acompanhada de aumento de estresse ventricular, mudança de forma, insuficiência valvar, aumento do consumo de oxigênio, e diminuição da eficiência cardíaca. Resultados benéficos têm sido obtidos quanto a sintomatologia clínica, função cardíaca, e mecânica ventricular 15. Entretanto, tem sido descrito após a cirurgia alta incidência de episódios de TVS com influência no prognóstico. Há necessidade de se esclarecer os mecanismos da arritmia para que se obtenha maior benefício com este novo procedimento

(Dr. Edimar Alcides Bocchi)

A influência positiva da ventriculectomia parcial sobre a função ventricular em portadores de miocardiopatias tem sido documentada por vários autores. Há melhora da contratilidade do miocárdio ventricular com elevação da FE do ventrículo e melhora do desempenho hemodinâmico 15. Foram demonstradas modificações na mecânica ventricular com queda do estresse sistólico e diastólico do VE 16.

Apesar da melhora clínica observada na maioria dos pacientes operados, esse procedimento necessita ser aplicado em casuísticas maiores e com seguimento por tempo mais prolongado para se ter uma conclusão definitiva sobre seu lugar no tratamento da insuficiência cardíaca. A este respeito, é preocupante a elevada incidência de arritmias ventriculares nos primeiros meses após a cirurgia, na nossa casuística, já que está associada a maior incidência de morte súbita ou óbitos secundários aos episódios de arritmias, como no caso ora apresentado. Os mecanismos dessas arritmias podem estar associados à cicatriz cirúrgica ou às áreas de infarto no miocárdio vizinhas à região ressecada. É possível que tal complicação seja inerente ao procedimento realizado. E seu controle dependa mais de medidas farmacológicas ou, ainda, de outras formas de tratamento como o implante do desfibrilador automático.

A ventriculectomia parcial representa perspectiva promissora para o tratamento de portadores de miocardiopatias refratária ao tratamento clínico. Entretanto, o controle efetivo das arritmias ventriculares, bem como a manutenção a longo prazo dos efeitos sobre a função ventricular devem ainda ser estudados para que se torne cirurgia de emprego rotineiro no tratamento da insuficiência cardíaca.

(Dr. Luiz Felipe P. Moreira)

A ventriculectomia parcial tem como proposta fundamental a readequação da forma e espessura da parede ventricular com o diâmetro da cavidade de modo que o coração muito dilatado tenha condições de voltar a bombear mais efetivamente o sangue dentro da cavidade. Pressupõe-se que a sobrecarga de volume é que fundamentalmente estaria tornando ineficiente a força da parede ventricular. No entanto, graus variáveis de comprometimento intrínseco do miócito devem alterar o desempenho pós-operatório do coração submetido a ventriculectomia. Por outro lado, a nosso ver, não é inesperado corações extremamente hipertróficos, como o do presente caso, que estão sob regime limítrofe de perfusão sangüínea, quando submetidos a um procedimento que junto com o miocárdio retira parte da vascularização e induz a área de infarto na região da incisão cirúrgica, apresentam complicações como as aqui apresentadas. Estes são alguns dos aspectos que julgamos necessários serem melhor estudados quando se pretende introduzir um procedimento cirúrgico desta natureza na rotina terapêutica da ICC.

(Dra. Maria de Lourdes Higuchi)

Editor da Seção: Alfredo José Mansur

Editores Associados: Desiderio Favarato

Vera Demarchi Aiello

Correspondência: Alfredo José Mansur - Incor - Av. Dr. Enéas C. Aguiar, 44 - 05403-000 - São Paulo, SP

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Fev 2001
  • Data do Fascículo
    Jul 1997
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