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Caso 2/2014 - Mulher de 20 Anos com Transposição Corrigida, Atresia Pulmonar e Colaterais Sistemicopulmonares

Atresia pulmonar / cirurgia; Cardiopatias congênitas; Transposição Corrigida das Grandes Artérias; Hipertensão pulmonar

Dados clínicos: Evoluiu no decurso da vida com três tipos de exteriorização clínica. A primeira caracterizava-se por dispneia e taquipneia, do nascimento até os cinco meses de idade, por hiperfluxo pulmonar e insuficiência cardíaca, com cardiomegalia e hepatomegalia. A segunda fase se caracterizou por estabilidade, sem sintomas expressivos, que se estendeu até os três anos de idade, presuntivo de fluxo sistemicopulmonar balanceado. A terceira fase, com hipofluxo pulmonar, teve cianose discreta com acentuação há dois anos. Cansaço aos esforços foi notado há quatro anos. Manteve saturação acima de 85% e há dois anos até 75%, hemoglobina = 17 g/dL e hematócrito = 62%.

Exame físico: Eupneica, cianótica +++, pulsos normais, sem turgência jugular. Peso: 54 kg; altura: 160 cm; PA: 115/60 mmHg; FC: 78 bpm; saturação de oxigênio = 78%. Aorta palpada ++ na fúrcula.

No precórdio, ictus cordis no 4.º EIC direito e impulsões sistólicas discretas na BED. Segunda bulha hiperfonética, +++, na área pulmonar, aumenta em direção à BED baixa. Sopro contínuo discreto e suave, +/++, na área pulmonar, com irradiação para o dorso. Fígado não palpado.

Exames complementares

Eletrocardiograma (Figura 1) mostrava ritmo juncional e sinais de sobrecarga do ventrículo esquerdo posicionado à direita. A onda P era negativa em II, III, aVF e precordiais. A morfologia do complexo QRS era RS em V1, rs em V6 e Rs em V6R. A onda T era negativa em I, L e mais positiva em V6R que em V6. AQRS: +160º, AT: 120º, AP: −80º.

Figura 1
Radiografia de tórax mostra o coração posicionado à direita em situs solitus, com características, conjuntamente com as do eletrocardiograma, da transposição corrigida das grandes artérias, estando o ventrículo esquerdo à direita e a aorta à esquerda.

Radiografia de tórax Mostra área cardíaca normal (índice cardiotorácico = 0,45) à direita em situs solitus (bolha gástrica à esquerda) com arco ventricular arredondado à direita. O arco superior à esquerda era longo. Trama vascular pulmonar normal e escoliose moderada (Figura 1).

Ecocardiograma Mostrou coração em dextrocardia e situs solitus. Havia discordâncias atrioventricular e ventriculoarterial, atresia pulmonar (AP) e grande comunicação interventricular (CIV) na via de entrada de 25 mm. O tronco pulmonar não foi visualizado, assim como as artérias pulmonares. Os diâmetros das cavidades eram normais e os ventrículos tinham função normal.

Cateterismo: (Figura 2) No segundo mês de vida, visualizaram-se artérias pulmonares hipoplásicas e confluentes, irrigadas por canal arterial, que se dirigiam para o pulmão direito e o lobo superior esquerdo. O vaso colateral sistemicopulmonar da aorta descendente se dirigia para o lobo inferior esquerdo. Novo exame recente mostrou vaso superior esquerdo como colateral sistemicopulmonar, em vez do canal arterial. A artéria pulmonar esquerda tinha 8 mm; a direita, 13 mm com estenose à esquerda (diâmetro = 5 mm). As pressões em todo o circuito pulmonar eram sistêmicas (100/64 mmHg).

Figura 2
Angiografia da circulação sistemicopulmonar salienta os aspectos anatômicos descritos. As artérias pulmonares são opacificadas por vaso sistemicopulmonar superior esquerdo (A e B) e outro vaso colateral sistemicopulmonar para o lobo inferior esquerdo (D). A artéria pulmonar esquerda mostra estenose nítida (A e B) e menor que a direita, a qual se dirige para todo o pulmão direito (C).

Diagnóstico clínico: Transposição corrigida das grandes artérias (TCGA), atresia pulmonar e comunicação interventricular em dextrocardia e situs solitus. A circulação pulmonar é nutrida por colateral sistemicopulmonar com hipertensão arterial pulmonar, em hipóxia acentuada e em evolução natural.

Raciocínio clínico: Os elementos clínicos de cardiopatias cianogênicas, que se acompanham de AP + CIV, podem ser variáveis, com sinais ora de hiperfluxo, ora de balanceamento de fluxos ou de hipofluxo pulmonar, como se salientou nesse paciente em evolução natural. O hiperfluxo inicial cedeu lugar aos demais com o predomínio do período de hipofluxo pulmonar. Nesse paciente, este último estádio decorreu da acentuação da hipertensão arterial pulmonar, não diagnosticada inicialmente. Os outros sinais clínicos foram indicativos da TCGA: segunda bulha hiperfonética na área pulmonar, que aumenta para BED baixa, orientando que a aorta emerge do ventrículo direito à esquerda, com respaldo na imagem radiográfica, na qual a aorta ascendente localiza-se à esquerda. O sopro contínuo de colaterais expressa a presuntiva atresia pulmonar associada. O ventrículo esquerdo é localizado à direita, com orientação da onda T para a direita e sobrecarga sistólica e diastólica desse ventrículo.

Diagnóstico diferencial: Cardiopatias do tipo CIV + AP se exteriorizam dessa mesma maneira, e o diagnóstico de base das outras anomalias deve ser realizado em função dos outros elementos clínicos orientadores, como demonstrado neste caso.

Conduta: Em face da hipertensão arterial pulmonar reativa acentuada, sildenafila foi introduzida na dose de 25 mg, a cada 8 h. Houve daí melhora da tolerância física e a saturação arterial subiu a 85%.

Comentários: Essa associação rara, AP + CIV + TCGA e circulação pulmonar dependente de colaterais sistemicopulmonares foi relatada apenas uma vez na literatura11. Ando M, Duncan BW, Mee RB. Anatomic correction for corrected transposition after after pulmonary unifocalization. Ann Thorac Surg.2003;75(3):1012-4..

Em geral, o quadro clínico depende de dois defeitos (CIV + AP) orientadores da fisiopatologia desse conjunto. Quando a circulação colateral se mostra aumentada com hiperfluxo pulmonar, em geral sofre estabilização e diminuição posterior, caracterizando os estádios evolutivos. O quadro hipoxêmico decorre da diminuição do fluxo pulmonar por estenoses da circulação sistemicopulmonar ou pelo desenvolvimento de hipertensão pulmonar. Em ambas as situações, o quadro se mostra arrastado naturalmente até a segunda ou terceira década da vida. Por tal fato, a indicação operatória desse paciente e de outros semelhantes deve ser sempre questionada, contrabalançando o aspecto evolutivo clínico, o pós-cirúrgico e o risco operatório.

Referências

  • 1
    Ando M, Duncan BW, Mee RB. Anatomic correction for corrected transposition after after pulmonary unifocalization. Ann Thorac Surg.2003;75(3):1012-4.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Mar 2014

Histórico

  • Recebido
    23 Jul 2013
  • Revisado
    23 Jul 2013
  • Aceito
    14 Ago 2013
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