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Correlação entre a Apneia Obstrutiva do Sono e a Função Diastólica do Ventrículo Esquerdo avaliada pelo Ecocardiograma

Palavras-chave
Doenças Cardiovasculares; Apneia Obstrutiva do Sono; Hipertrofia Ventricular Esquerda; Indicadores de Morbimortalidade; Insuficiência Cardíaca; Ecocardiografia/métodos; Polissonografia/métodos; Fatores de Risco

A apneia obstrutiva do sono (AOS) é uma doença caracterizada por obstrução recorrente das vias aéreas superiores durante o sono, decorrente do colapso repetitivo destas vias, resultando em hipóxia e fragmentação do sono.11. Young T, Palta M, Dempsey J, Skatrud J, Weber S, Badr S. The occurrence of sleep-disordered breathing among middle-aged adults. N Engl J Med. 1993; 328(17):1230-5. É um transtorno bastante frequente, sendo mais comum em homens, mas também pode afetar mulheres e crianças.11. Young T, Palta M, Dempsey J, Skatrud J, Weber S, Badr S. The occurrence of sleep-disordered breathing among middle-aged adults. N Engl J Med. 1993; 328(17):1230-5. Sua prevalência tem sido estimada em aproximadamente 14% entre os homens e 5% entre as mulheres, definindo-se AOS nestes levantamentos como a presença de um índice de apneia-hipopneia maior que cinco eventos por hora de sono, associadas a 4% de desaturação de oxigênio.22. Peppard PE, Young T, Barnet JH, Palta M, Hagen EW, Hla KM. Increased prevalence of sleep-disordered breathing in adults. Am J Epidemiol. 2013; 177(9):1006-14.

AOS é associada com um aumento significativo da atividade simpática durante o sono, influenciando a frequência cardíaca e a pressão arterial. O aumento da atividade simpática é induzido por uma série de mecanismos, incluindo estimulação quimiorreflexa pela hipóxia e hipercapnia, barorreflexos, disfunção endotelial, alterações do retorno venoso e do débito cardíaco.33. Friedman O, Logan AG. The price of obstructive sleeP anea-hypopnea: hypertension and other ill effects. Am J Hypertens. 2009;22(5):479-83.

O padrão anormal da respiração durante o sono, associado a repetidos despertares, resulta em efeitos hemodinâmicos, autonômicos, inflamatórios e metabólicos que podem contribuir na patogênese de uma série de doenças cardiovasculares: hipertensão arterial sistêmica, doença coronariana, arritmias cardíacas (fibrilação atrial ou morte súbita por arritmia), insuficiência cardíaca, hipertrofia do ventrículo esquerdo (VE), acidente vascular cerebral e hipertensão pulmonar.44. Bradley TD, Floras JS. Obstructive sleeP apnoea and its cardiovascular consequences. Lancet. 2009;373(9657):83-9.

AOS deveria ser suspeitada sempre que um paciente se apresente com sonolência diária excessiva, ronco e asfixia durante o sono, particularmente na presença de fatores de risco como a obesidade, sexo masculino e idade avançada. Todavia, a AOS não é um diagnóstico clínico e testes objetivos devem ser feitos para o diagnóstico.55. Myers KA, Mrkobrada M, Simel DL. Does this patient have obstructive sleeP apnea? The Rational Clinical Examination systematic review. JAMA. 2013;310(7):731-41.

Nesta edição dos Arquivos Brasileiros de Cardiologia, Leite et al.,66. Leite AR, Martinez DM, Garcia-Rosa ML, Macedo EA, Lagoeiro AJ, Martins WA et al. Correlação entre Risco de Apneia Obstrutiva do Sono e Parâmetros do Ecocardiograma. Arq Bras Cardiol. 2019; 113(6):1084-1089. apresentam a correlação entre o risco de AOS e parâmetros ecocardiográficos relacionados com disfunção diastólica do VE. Foram incluídos 354 indivíduos que responderam ao Questionário de Berlim (QB), ferramenta empregada para estimar o risco de AOS, sendo 63% classificados como tendo alto risco para este transtorno.

A maioria dos estudiosos das doenças do sono não recomenda o uso rotineiro de ferramentas de avaliação como questionários ou algoritmos para selecionar os pacientes sob maior risco de AOS, desde que estes instrumentos não têm demonstrado serem superiores à história e ao exame físico na avaliação clínica destes pacientes.77. Kapur VK, Auckley DH, Chowdhuri S, Kuhlmann DC, Mehra R, Ramar K et al. Clinical practice guideline for diagnostic testing for adult obstructive sleeP apnea: an American Academy of SleeP Medicine clinical practice guideline. J Clin SleeP Med. 2017;13(3):479-504.

A diretriz clínica da American Academy of SleeP Medicine publicada em 2017, tem recomendação forte para que questionários e algoritmos de predição clínica não sejam usados para diagnóstico de AOS na ausência de polissonografia.77. Kapur VK, Auckley DH, Chowdhuri S, Kuhlmann DC, Mehra R, Ramar K et al. Clinical practice guideline for diagnostic testing for adult obstructive sleeP apnea: an American Academy of SleeP Medicine clinical practice guideline. J Clin SleeP Med. 2017;13(3):479-504. Estas ferramentas são consideradas de baixa acurácia diagnóstica. Em relação ao QB, empregado no trabalho em análise,66. Leite AR, Martinez DM, Garcia-Rosa ML, Macedo EA, Lagoeiro AJ, Martins WA et al. Correlação entre Risco de Apneia Obstrutiva do Sono e Parâmetros do Ecocardiograma. Arq Bras Cardiol. 2019; 113(6):1084-1089. a literatura revela um grande número de resultados falso-negativos, assim limitando sua utilidade como um instrumento para diagnosticar AOS. Revisão de 19 trabalhos que analisaram o desempenho do QB em comparação com os dados da polissonografia, demonstraram uma sensibilidade global de 0,76 (95% IC: 0,72 a 0,80) enquanto a especificidade global foi 0,45 (95% IC: 0,34 a 0,56). Este resultado revela um número muito alto de falso-negativos (209 entre 1.000 pacientes), com acurácia diagnóstica comprometida.

Assim, esta é uma limitação da investigação em análise, visto que não se estuda uma população de pacientes com AOS, mas indivíduos com risco elevado de virem a apresentar AOS, utilizando-se uma ferramenta diagnóstica considerada de baixa acurácia diagnóstica.

Entende-se que em ambiente sem especialistas dos distúrbios do sono, os instrumentos de avaliação, como questionários e algoritmos de predição clínica, possam ser úteis por promoverem a uniformização da avaliação do sono, e, quando necessário, ampliar o seu uso contando com outros profissionais da equipe de saúde na sua aplicação. Deve-se ter na mente, todavia, que a aplicação destes testes não substitui uma boa avaliação clínica, com anamnese e exame físico, e, muito menos, a polissonografia, que continua sendo o padrão ouro para o diagnóstico da AOS.77. Kapur VK, Auckley DH, Chowdhuri S, Kuhlmann DC, Mehra R, Ramar K et al. Clinical practice guideline for diagnostic testing for adult obstructive sleeP apnea: an American Academy of SleeP Medicine clinical practice guideline. J Clin SleeP Med. 2017;13(3):479-504.

No estudo de Leite et al.,66. Leite AR, Martinez DM, Garcia-Rosa ML, Macedo EA, Lagoeiro AJ, Martins WA et al. Correlação entre Risco de Apneia Obstrutiva do Sono e Parâmetros do Ecocardiograma. Arq Bras Cardiol. 2019; 113(6):1084-1089. buscou-se avaliar o comportamento de parâmetros ecocardiográficos na AOS. Restrições são feitas à caracterização da população estudada (pacientes com risco de AOS através do QB), mas os resultados obtidos foram compatíveis com os achados da literatura. Aumento do volume atrial esquerdo e o comportamento de índices do fluxo mitral caracterizam a disfunção diastólica do VE.66. Leite AR, Martinez DM, Garcia-Rosa ML, Macedo EA, Lagoeiro AJ, Martins WA et al. Correlação entre Risco de Apneia Obstrutiva do Sono e Parâmetros do Ecocardiograma. Arq Bras Cardiol. 2019; 113(6):1084-1089.

O aumento atrial esquerdo na AOS ficou caracterizado em estudo recente de Cetin et al.,88. Cetin S, Vural M, Akdemir R, Firat H. Left atrial remodelling may predict exercise capacity in obstructive sleeP apnea patients. Acta Cardiol. 2018;73(5): 471-8. que analisou 55 pacientes com diagnóstico de AOS pela polissonografia. Foram estudados o volume atrial esquerdo e parâmetros da deformação atrial esquerda através da ecocardiografia com speckle tracking (strain e strain rate). Foi estudada também a capacidade de exercício por teste ergométrico. Concluiu-se que a disfunção diastólica do VE é mais prevalente nos pacientes com AOS grave e associa-se com desempenho reduzido no esforço. O remodelamento atrial esquerdo contribuiu na previsão da capacidade de exercício neste subgrupo de pacientes.88. Cetin S, Vural M, Akdemir R, Firat H. Left atrial remodelling may predict exercise capacity in obstructive sleeP apnea patients. Acta Cardiol. 2018;73(5): 471-8.

Metanálise de 17 estudos sobre o remodelamento e disfunção do VE na AOS,99. Yu L, LI H, Liu X, Fan J, Zhu Q, LI J, et al. Left ventricular remodeling and dysfunction in obstructive sleeP apnea: systematic review and meta-analysis. Herz.2019. 2019 SeP 25 [Epub ahead of print]. concluiu que esta síndrome leva à dilatação atrial esquerda, hipertrofia, dilatação, aumento da massa e redução da função sistólica no VE.99. Yu L, LI H, Liu X, Fan J, Zhu Q, LI J, et al. Left ventricular remodeling and dysfunction in obstructive sleeP apnea: systematic review and meta-analysis. Herz.2019. 2019 SeP 25 [Epub ahead of print]. O tratamento da AOS pode ser benéfico na preservação da estrutura e função do VE.99. Yu L, LI H, Liu X, Fan J, Zhu Q, LI J, et al. Left ventricular remodeling and dysfunction in obstructive sleeP apnea: systematic review and meta-analysis. Herz.2019. 2019 SeP 25 [Epub ahead of print].

Interessante revisão desenvolvida na Romênia por Sascau et al.,1010. Sascau R, Zota IM, Statescu C, Boisteanu D, Roca M, Mastaleru A et al. Review of Echocardiographic Findings in Patients with Obstructive Sleep Apnea. Can Respir J. 2018 Nov 18; 1206217 demonstra que formas moderadas e severas da AOS são associadas com aumento dos volumes atriais, alteração da função diastólica do VE e depois a função sistólica do VE. A avaliação da fração de ejeção do ventrículo direito pode também estar comprometida, sendo melhor avaliada pelo ecocardiograma tridimensional. Também a contribuição da ecocardiografia bidimensional com speckle tracking tem sido bastante efetiva, distinguindo entre movimentos ativos e passivos das paredes. Os valores anormais de strain, um marcador subclínico de disfunção miocárdica, podem ser detectados mesmo em pacientes com fração de ejeção e volumes normais. O strain longitudinal do VE é mais afetado pela presença da AOS.1010. Sascau R, Zota IM, Statescu C, Boisteanu D, Roca M, Mastaleru A et al. Review of Echocardiographic Findings in Patients with Obstructive Sleep Apnea. Can Respir J. 2018 Nov 18; 1206217

Em conclusão, o trabalho de Leite et al.,66. Leite AR, Martinez DM, Garcia-Rosa ML, Macedo EA, Lagoeiro AJ, Martins WA et al. Correlação entre Risco de Apneia Obstrutiva do Sono e Parâmetros do Ecocardiograma. Arq Bras Cardiol. 2019; 113(6):1084-1089. destaca a contribuição do ecocardiograma na avaliação da AOS, transtorno frequente e com diferentes facetas de interação fisiopatológica com as doenças cardiovasculares. O desenvolvimento tecnológico da ecocardiografia, particularmente com as técnicas tridimensional e do speckle tracking, indicam continuada contribuição ao estudo da AOS.

  • Minieditorial referente ao artigo: Correlação entre Risco de Apneia Obstrutiva do Sono e Parâmetros do Ecocardiograma

References

  • 1
    Young T, Palta M, Dempsey J, Skatrud J, Weber S, Badr S. The occurrence of sleep-disordered breathing among middle-aged adults. N Engl J Med. 1993; 328(17):1230-5.
  • 2
    Peppard PE, Young T, Barnet JH, Palta M, Hagen EW, Hla KM. Increased prevalence of sleep-disordered breathing in adults. Am J Epidemiol. 2013; 177(9):1006-14.
  • 3
    Friedman O, Logan AG. The price of obstructive sleeP anea-hypopnea: hypertension and other ill effects. Am J Hypertens. 2009;22(5):479-83.
  • 4
    Bradley TD, Floras JS. Obstructive sleeP apnoea and its cardiovascular consequences. Lancet. 2009;373(9657):83-9.
  • 5
    Myers KA, Mrkobrada M, Simel DL. Does this patient have obstructive sleeP apnea? The Rational Clinical Examination systematic review. JAMA. 2013;310(7):731-41.
  • 6
    Leite AR, Martinez DM, Garcia-Rosa ML, Macedo EA, Lagoeiro AJ, Martins WA et al. Correlação entre Risco de Apneia Obstrutiva do Sono e Parâmetros do Ecocardiograma. Arq Bras Cardiol. 2019; 113(6):1084-1089.
  • 7
    Kapur VK, Auckley DH, Chowdhuri S, Kuhlmann DC, Mehra R, Ramar K et al. Clinical practice guideline for diagnostic testing for adult obstructive sleeP apnea: an American Academy of SleeP Medicine clinical practice guideline. J Clin SleeP Med. 2017;13(3):479-504.
  • 8
    Cetin S, Vural M, Akdemir R, Firat H. Left atrial remodelling may predict exercise capacity in obstructive sleeP apnea patients. Acta Cardiol. 2018;73(5): 471-8.
  • 9
    Yu L, LI H, Liu X, Fan J, Zhu Q, LI J, et al. Left ventricular remodeling and dysfunction in obstructive sleeP apnea: systematic review and meta-analysis. Herz.2019. 2019 SeP 25 [Epub ahead of print].
  • 10
    Sascau R, Zota IM, Statescu C, Boisteanu D, Roca M, Mastaleru A et al. Review of Echocardiographic Findings in Patients with Obstructive Sleep Apnea. Can Respir J. 2018 Nov 18; 1206217

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2 Dez 2019
  • Data do Fascículo
    Dez 2019
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