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Disfunção diastólica em pacientes diabéticos normotensos, independente da presença de microangiopatia

Resumos

OBJETIVO: Avaliar as alterações Doppler-ecocardiográficas de pacientes normotensos, com diabetes mellitus tipo II, na presença ou ausência de sinais de microangiopatia. MÉTODOS: Pacientes com diabetes mellitus tipo II foram submetidos a exames de fundo de olho contrastado com fluoresceína e dosagem de microalbuminúria para diagnóstico de microangiopatia, e divididos em dois grupos: DMII (pacientes sem microangiopatia, n=19) e DM+A (pacientes com microangiopatia, n=13). Todos foram submetidos a Doppler-ecocardiografia e os resultados comparados com normotensos de mesmo sexo e idade (grupo C, n=20), aplicando-se a ANOVA, seguida de teste de Tukey. Em todas as comparações, adotou-se como nível de significância p<0,05. RESULTADOS: Não houve diferenças entre os grupos quanto aos indicadores de função sistólica ou massa do ventrículo esquerdo. Foram observadas diferenças compatíveis com disfunção diastólica nos dois grupos de diabéticos, independente da presença de microangiopatia, que exibiram valores significativamente maiores dos tempos de relaxamento isovolumétrico do ventrículo esquerdo (TRIVE, ms): (DMII=97±22,2; DM+A=107±28,2 e C=80±10,7; p<0,05), e menores das velocidades máximas da onda de enchimento ventricular rápido (E, cm/s): (DMII=69±17,5; DM+A=75±19,7 e C=84±14,5, p<0,05 entre DMII e C). Sem diferença entre os grupos quanto à razão E/A. CONCLUSÃO: Pacientes normotensos com diabetes mellitus tipo II e sem sinais clínicos de comprometimento cardiovascular, apresentaram sinais de disfunção diastólica não associados à presença de microangiopatia.

ecocardiograma; ventrículo esquerdo; cardiomiopatia; diabetes mellitus


OBJECTIVE: To assess the Doppler-echocardiographic changes in normotensive patients with type II diabetes mellitus, in the presence or absence of signs of microangiopathy. METHODS: Patients with type II diabetes mellitus were submitted to funduscopy contrasted with fluorescein and dosage of microalbuminuria for diagnose of microangiopathy and divided into two groups: DMII (patients without microangiopathy, n=19) and DM+A (patients with microangiopathy, n=13). All of them were submitted to a Doppler-echocardiography and the results were compared with normotensive patients of same sex and age (group C, n=20), by using the ANOVA, followed by the test of Tukey. In all comparisons the significance level p<0.05 was adopted. RESULTS: There were no differences among the groups regarding the systolic function indicators or left ventricular mass. Differences compatible with diastolic dysfunction in the two groups of diabetic were observed, regardless of the presence of microangiopathy, which showed significantly higher values of the times of isovolumetric relaxation of the left ventricle (TIRLV, ms): (DMII= 97±22.2; DM+A= 107±28.2 and C= 80±10.7; p<0.05), and lower values of the maximum speeds of the wave of fast ventricular filling (E, cm/s): (DMII= 69±17.5; DM+A= 75±19.7 and C= 84±14.5, p<0.05 between DMII and C). There was no difference among the groups concerning the E/A rate. CONCLUSION: Normotensive patients with type II diabetes mellitus and without clinical signs of cardiovascular compromising showed signs of diastolic dysfunction, non-associated to the presence of microangiopathy.

echocardiogram; left ventricle; cardiomiopathy; diabetes mellitus


ARTIGO ORIGINAL

Disfunção diastólica em pacientes diabéticos normotensos, independente da presença de microangiopatia

João Carlos Ferreira Braga; Fábio Villaça Guimarães Filho; Carlos Roberto Padovani; Beatriz B. Matsubara

Faculdade Estadual de Medicina de Marília e Faculdade de Medicina de Botucatu Marília, SP - Botucatu, SP

Endereço para correspondência Endereço para correspondência João Carlos Ferreira Braga Rua Ametistas, 55 17516-080 - Marília, SP E-mail: jcfbraga@cardiol.br

RESUMO

OBJETIVO: Avaliar as alterações Doppler-ecocardiográficas de pacientes normotensos, com diabetes mellitus tipo II, na presença ou ausência de sinais de microangiopatia.

MÉTODOS: Pacientes com diabetes mellitus tipo II foram submetidos a exames de fundo de olho contrastado com fluoresceína e dosagem de microalbuminúria para diagnóstico de microangiopatia, e divididos em dois grupos: DMII (pacientes sem microangiopatia, n=19) e DM+A (pacientes com microangiopatia, n=13). Todos foram submetidos a Doppler-ecocardiografia e os resultados comparados com normotensos de mesmo sexo e idade (grupo C, n=20), aplicando-se a ANOVA, seguida de teste de Tukey. Em todas as comparações, adotou-se como nível de significância p<0,05.

RESULTADOS: Não houve diferenças entre os grupos quanto aos indicadores de função sistólica ou massa do ventrículo esquerdo. Foram observadas diferenças compatíveis com disfunção diastólica nos dois grupos de diabéticos, independente da presença de microangiopatia, que exibiram valores significativamente maiores dos tempos de relaxamento isovolumétrico do ventrículo esquerdo (TRIVE, ms): (DMII=97±22,2; DM+A=107±28,2 e C=80±10,7; p<0,05), e menores das velocidades máximas da onda de enchimento ventricular rápido (E, cm/s): (DMII=69±17,5; DM+A=75±19,7 e C=84±14,5, p<0,05 entre DMII e C). Sem diferença entre os grupos quanto à razão E/A.

CONCLUSÃO: Pacientes normotensos com diabetes mellitus tipo II e sem sinais clínicos de comprometimento cardiovascular, apresentaram sinais de disfunção diastólica não associados à presença de microangiopatia.

Palavras-chave: ecocardiograma, ventrículo esquerdo, cardiomiopatia, diabetes mellitus

Evidências clínicas, epidemiológicas e histopatológicas indicam a existência de uma cardiopatia específica relacionada ao diabetes mellitus1. De fato, avaliações não invasivas da função cardíaca em indivíduos diabéticos, freqüentemente, mostram a existência de anormalidades de ambas as funções sistólica e diastólica do ventrículo esquerdo, as quais podem ser evidenciadas por uma variedade de métodos diagnósticos. No entanto, a despeito do uso comum do termo cardiomiopatia diabética, ainda existe considerável debate a respeito da exata natureza e causa da disfunção cardíaca encontrada em diabéticos não portadores de aterosclerose coronariana e hipertensão arterial, que são condições patológicas freqüentemente associadas ao diabete millitus e que podem levar à disfunção cardíaca, segundo a literatura.

A existência da cardiomiopatia diabética foi primeiramente sugerida por Rubler e cols.1, que descreveram hipertrofia e fibrose miocárdica, além de proliferação endotelial e subendotelial proeminentes, indicando que as alterações nos pequenos vasos poderiam estar envolvidas na patogênese da disfunção miocárdica.

Desde essa descrição inicial, e até o momento, ainda persistem as controvérsias quanto à relativa importância da doença nos pequenos vasos, da fibrose intersticial e dos distúrbios metabólicos na patogênese da cardiomiopatia diabética2-15.

Rossen15 argumentou que, embora a correlação da cardiomiopatia com microangiopatia seja incerta, ela pode existir, tendo em vista as semelhanças entre as anormalidades na função microvascular coronariana observadas no diabete millitus e na cardiomiopatia dilatada idiopática.

Gutierrez e Higuchi14, em nosso meio, aceitam três hipóteses para explicar o que chamam de eventual efeito causal do diabetes quanto à doença cardíaca: 1) microangiopatia; 2) ação direta sobre a fibra cardíaca, dos distúrbios metabólicos provocados pela hiperglicemia, entre outros fatores; 3) alterações da matriz extracelular, provocadas pelo maior grau de glicosilação de seus componentes, com conseqüente mudanças da estrutura muscular.

Até o presente, os estudos que compararam a função ventricular de pacientes diabéticos com ou sem microangiopatia10,15-20 apresentaram resultados conflitantes. Recentemente Liu e cols.21 encontraram relação entre a presença de perda urinária de albumina e disfunção diastólica, em três grupos analisados: ausência de albuminúria, microalbuminúria e macroalbuminúria. Apesar das diferenças entre os grupos, a análise multivariada mostrou albuminúria como variável independentemente associada com disfunção sistólica e diastólica, após ajuste para idade, sexo, índice de massa corpórea, pressão arterial sistólica, duração do diabete millitus, doença arterial coronariana, e índice de massa do ventrículo esquerdo. Uma vez que a microalbuminúria é um marcador de disfunção endotelial na arteríola glomerular, Bell22 achou válido postular que a disfunção endotelial no miocárdio causa aumento de cicatrização e rigidez, considerando, ainda, que este teste urinário de baixo custo poderia antecipar um exame de ecodopplercardiografia, que, embora mais sensível para detecção de disfunção diastólica, tem maior custo. Documentada a disfunção diastólica, deveria ter inicio a terapia visando prevenir a progressão da doença para insuficiência cardíaca.

Tendo em vista que o exame ecocardiográfico é descrito como método sensível para detecção precoce da cardiomiopatia diabética8, o presente estudo tem por objetivo identificar se a presença de microangiopatia está associada a alterações estruturais e funcionais cardíacas em diabéticos não hipertensos, e assintomáticos do ponto de vista cardiovascular.

Métodos

Todos os procedimentos foram submetidos e aprovados por Comitê de Ética em Pesquisa Envolvendo Seres Humanos.

Foi realizado um estudo transversal de caso-controle envolvendo 32 pacientes com diabetes mellitus, com idades entre 40 e 65 anos e 20 voluntários normais, com idade e sexo comparáveis. Todos os participantes do estudo passaram por avaliação clínica completa com o cardiologista.

Foram critérios de exclusão: pressão arterial sistólica > 140 mmHg ou pressão arterial diastólica > 90 mmHg; sinais ou sintomas de doença cardiorespiratória; uso de drogas de ação cardiovascular; janela acústica imprópria para a análise do ecocardiograma.

Os pacientes diabéticos foram submetidos a exames laboratoriais para avaliação de função renal e de perfil lipídico e, também, a exame de fundo de olho contrastado com fluoresceína, e de urina coletada em 12 h para detecção de microalbuminúria. O diagnóstico de retinopatia e/ou de microalbuminúria foi o critério para a definição da presença de microangiopatia.

O grupo DM+A foi composto de pacientes com sinais de microangiopatia (n=13); o grupo DM por pacientes sem microangiopatia (n=19); e o grupo controle de voluntários clinicamente normais (n=20).

O exame de fundo de olho constou de oftalmoscopia direta e indireta sob midríase; retinografia com luz anéritra, angiografia fluoresceínica, por meio da injeção de 2,5 ml de fluoresceína sódica a 10%, via endovenosa. Para a documentação da angiografia fluoresceínica e da retinografia foi utilizado o equipamento marca Topcon, modelo TRC-FE e filme Kodak Tri-X Pam de 400 ASA. O diagnóstico de retinopatia foi baseado na presença de pelo menos um microaneurisma em um dos olhos ou na de outra alterações, como hemorragias, exsudatos duros, exsudatos algodonosos e proliferação fibrosvascular23.

A excreção urinária de albumina foi determinada por meio de turbidimetria, utilizando-se o equipamento Turbidimeter± da Behring e os reativos Turbiquant±, de sensibilidade de 0,3 micrograma/ml. O exame foi realizado em urina colhida por 12 h em frasco estéril e sem preservativos. As amostras contendo bacteriúria >105 /mm3 eram desprezadas. O resultado foi considerado positivo para os valores maiores que 15 microgramas/minuto.

Todos os procedimentos foram realizados por um único ecocardiografista experiente que não tinha conhecimento do grupo a que pertenciam os indivíduos. Os exames foram efetuados por meio equipamento ATL Apogee CX 200, dotado de transdutor ultra-sônico multifrequêncial de 2,0-3,5 MHz e sistema de registro de imagens. Durante o procedimento, o paciente permanecia em decúbito lateral esquerdo, com o membro superior esquerdo ligeiramente fletido sob a cabeça. Uma derivação eletrocardiográfica foi continuamente monitorada.

As imagens foram obtidas seguindo-se as recomendações da American Society of Echocardiography24, a partir de cortes ecocardiográficos convencionais. Foram medidas em seqüência: dimensão sistólica final da via de saída do VE (VSVE), diâmetro diastólico ântero-posterior do átrio esquerdo (AE), diâmetro diastólico final (VEd), diâmetro sistólico final (VEs), espessuras diastólicas do SIV e da parede posterior do VE (PP). Essas dimensões foram utilizadas para o cálculo de:

Porcentagem de variação do diâmetro ventricular (%DD)= [(VEd - VEs) / Ved] x 100.

As avaliações dos fluxos seguiram as orientações do Consenso Canadense25 para as medidas Doppler-ecocardiográficas, obtendo-se as seguintes variáveis: c1) velocidade máxima de enchimento ventricular rápido (pico da onda E, cm/s); c2) velocidade máxima de enchimento tardio, após a contração atrial (pico da onda A, cm/s); c3) tempo de desaceleração da onda E (TDE, ms), correspondente ao intervalo de tempo entre o pico da onda E e a sua extrapolação para a linha de base. Ainda com o Doppler pulsátil, obteve-se as curvas simultâneas de fluxo nas vias de saída e de entrada do VE. O intervalo de tempo entre o final do fluxo sistólico e o início do fluxo transmitral correspondeu ao tempo de relaxamento isovolumétrico do VE (TRIV). A análise do fluxo sistólico na VSVE permitiu o cálculo da seguintes variáveis: índice sistólico (IS, mL/SC) = (VSVE2 x 0,785 x IVSVE)/SC, onde VSVE é a medida da via de saída do VE, IVSVE é a integral do fluxo sistólico na VSVE e SC é a superfície corpórea; débito cardíaco (DC, L/min) = VS x FC.

As comparações entre os grupos foram efetuadas por meio da ANOVA, seguida do teste de Tukey. Em todos os casos, considerou-se o nível de significância p<0,05.

Resultados

Diabéticos com microangiopatia apresentaram valores médios de microalbuminúria de 36 mcg/min. Do mesmo modo as alterações mais freqüentes observadas no exame contrastado de fundo de olho foram a presença de microaneurismas, quadro classificado como retinopatia diabética não proliferativa23. Dos 13 pacientes do grupo DM+A, 9 apresentaram alteração isolada de fundo de olho, 2 somente microalbuminúria e em 2 ambas as alterações.

Na tabela I são apresentadas a idade, o peso corporal, a superfície corpórea e as variáveis hemodinâmicas dos grupos diabetes mellitus com microangiopatia (DM + A), diabetes mellitus sem microangiopatia (DM) e controle (C). São apresentados os valores das médias e seus respectivos desvios-padrão e os resultados do teste estatístico. Quanto às variáveis idade, peso e superfície corpórea, os 3 grupos foram estatisticamente semelhantes entre si. A comparação dos dados hemodinâmicos evidenciou que os grupos não são diferentes quanto à pressão arterial sistólica e pressão arterial diastólica. Em relação à freqüência cardíaca, o grupo DM apresentou valor, estatisticamente significante, maior que o grupo C (74±10,30 bpm vs 65±9,40 bpm, p<0,05).

Na tabela II, são observadas as variáveis morfométricas cardíacas, normalizadas para a superfície corporal, obtidas por meio do ecocardiograma modo M, dos grupos diabetes mellitus com microangiopatia (DM + A), diabetes mellitus sem microangiopatia (DM) e controle (C). Não foram observadas diferenças significantes entre esses 3 grupos.

Na tabela III encontram-se as variáveis de função sistólica, obtidas pela Doppler-ecocardiografia, dos três grupos estudados, não havendo diferenças estatísticas entre eles e na tabela IV as variáveis da função diastólica. A velocidade máxima do enchimento ventricular rápido (E) foi semelhante nos grupos DM + A (75±19,70 cm/s) e DM (69±17,50 cm/s). O valor obtido nesse último grupo foi significantemente menor do que o observado no grupo controle (84±14,50 cm/s). O tempo de relaxamento isovolumétrico do ventrículo esquerdo (TRIVE) apresentou valores estatisticamente semelhantes nos pacientes DM + A (107±28,20 ms) e DM (97± 22,20 ms). Ambos os grupos foram diferentes do grupo controle, que apresentou valor significantemente menor (80±10,70 ms).

Discussão

A ausência de diferenças entre os grupos de pacientes, com relação às variáveis morfométricas e de função sistólica, não foi surpresa. Os critérios de inclusão e de exclusão foram bastante específicos e restringiram a amostra de pacientes. Esse fato, embora tenha contribuído para diminuir o poder de evidenciar diferenças potenciais entre os grupos, foi concordante com a proposta de avaliar a associação entre presença de sinais de microangiopatia diabética e alterações morfofuncionais cardíacas em grupos semelhantes em todos os demais aspectos, exceto a lesão de pequenos vasos. Também foi necessário restringir as análises aos pacientes diabéticos não portadores de outras doenças cardiovasculares. Aliás, esse tem sido o problema enfrentado por pesquisadores interessados no assunto. Por exemplo, vários estudos com casuística maior concluíram sobre disfunção ventricular esquerda associada ao diabetes, incluindo no mesmo grupo pacientes normotensos e hipertensos16,26,27. Cosson e cols8 atribuíram os resultados contraditórios publicados à falta de homogeneidade das populações estudadas e de uniformidade dos índices ecocardiográficos utilizados. Assim, nossas conclusões são aplicáveis apenas a grupos de indivíduos com características semelhantes aos avaliados no presente estudo.

O estudo de Framingham22 mostrou que mulheres diabéticas apresentavam massa de ventrículo esquerdo 10% maior que as não diabéticas. O estudo Tayside28 mostrou que a hipertrofia ventricular esteve presente em 32% dos diabéticos normotensos, os quais não utilizavam drogas inibidoras da enzima de conversão da angiotensina e não tinham doença coronariana. Além disso, mulheres hipertensas e diabéticas apresentaram maior grau de hipertrofia ventricular esquerda e aumento do átrio esquerdo, quando comparadas a hipertensas não diabéticas29. Enquanto a fibrose miocárdica parece estar associada à hiperglicemia, a hipertrofia ventricular esquerda tem sido mais relacionada à síndrome de resistência à insulina30,31. Embora a hipertrofia ventricular esquerda seja mais prevalente em diabéticos e, tal fato seja relacionado com disfunção ventricular22,32, em nossa casuística, não houve variação da massa ventricular esquerda.

A despeito da função sistólica preservada em repouso, considerável proporção desses pacientes apresentaram alterações diastólicas ao exame Doppler-ecocardiográfico. Esses achados estão em acordo com as observações clínicas de outros autores que mostraram disfunção diastólica precedendo a disfunção sistólica, na evolução das alterações cardíacas de pacientes com diabetes mellitus8,32,33.

O estudo de Framingham convincentemente mostrou que pacientes diabéticos apresentam risco adicional para o desenvolvimento de cardiomiopatia e insuficiência cardíaca34. No entanto, não ficou completamente esclarecida a natureza dessa associação relatada naquele clássico estudo epidemiológico. A identificação de que muitos dos pacientes com sinais clínicos de falência cardíaca apresentavam, objetivamente, função sistólica preservada, provocou enorme interesse dos pesquisadores e clínicos sobre o estado da função ventricular diastólica nesses pacientes8,32,33.

Esse comprometimento diastólico que precede as alterações sistólicas na evolução das alterações funcionais do coração diabético tem sido observado mesmo na ausência de doença arterial coronariana e hipertrofia ventricular esquerda. Diversos relatos têm mostrado prevalências de 30 a 60% de disfunção diastólica em indivíduos diabéticos bem controlados e normotensos22,32,35-37.

Um achado interessante no presente estudo foi o aumento do tempo de relaxamento isovolumétrico nos pacientes diabéticos, quando comparado aos controles. Apesar desse aumento, em média, não ser de magnitude suficiente para extrapolar os valores considerados normais, pode-se assumir que algum grau de comprometimento do processo de relaxamento miocárdico deve estar em curso nesse pacientes.

O relaxamento miocárdico ocorre em conseqüência à retirada do íon Ca2+ do citoplasma, para dentro do retículo sarcoplasmático, após a contração miocárdica, num processo complexo, ativo, com grande consumo de ATP e envolvendo inúmeras proteínas. Portanto, o prolongamento do tempo de relaxamento miocárdico pode ser o resultado de uma grande quantidade de potenciais alterações subcelulares que poderiam prejudicar o relaxamento.

O prolongamento do tempo de relaxamento miocárdico, influência o enchimento ventricular rápido e poderia ser o mecanismo subjacente à observação de valores diminuídos no pico da onda E. O enchimento ventricular depende fundamentalmente do gradiente de pressão atrioventricular, durante essa fase do ciclo cardíaco. Esse gradiente de pressão é diretamente influenciado pela pressão intra-atrial e, portanto, pelo seu volume, e inversamente influenciado pela pressão intraventricular. Assim, o relaxamento miocárdico retardado ou incompleto, promove aumento na pressão diastólica ventricular e redução no gradiente transmitral e diminuição da velocidade de fluxo diastólico inicial. Existe, ainda, a possibilidade de que alterações intersticiais miocárdicas, com aumento da concentração de colágeno, tenham participado do processo de indução da disfunção diastólica38.

Contrariamente ao esperado, não observamos diferenças significantes entre os dois grupos de pacientes diabéticos. Embora na literatura a presença de albuminúria em indivíduos diabéticos identifica alto risco de presença de doença cardiovascular, os nossos dados sugerem, que sua presença não está relacionada com disfunção diastólica do ventrículo esquerdo, alteração essa considerada manifestação inicial da cardiomiopatia diabética21,33. Nesse aspecto, é relevante considerar o tamanho da amostra. Isto é, diferenças entre os grupos poderiam ser demonstradas, estatisticamente, se o número de pacientes fosse maior. No entanto, dada a semelhança entre os valores médios dos índices de função diastólica nos grupos DM e DM+A, somente a inclusão de centenas de pacientes no estudo permitiria a demonstração. Apesar dessas limitações, consideramos válida a divulgação dos resultados do presente estudo, tendo em vista que estudos semelhantes podem ser realizados e, em conjunto, permitam no futuro resolver esta questão relevante a respeito da fisiopatologia da cardiomiopatia do diabético.

Finalmente, consideramos de grande relevância a observação de que pacientes diabéticos normotensos e sem sinais clínicos de doença cardíaca apresentam alterações sugestivas de disfunção diastólica, quando comparados com seus controles não diabéticos. Estes resultados reforçam a necessidade de estudos adicionais semelhantes, buscando esclarecer a fisiopatologia, as formas de prevenção e o tratamento desta disfunção.

Enviado em 29/04/2004

Aceito em 19/11/2004

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    João Carlos Ferreira Braga
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Jun 2005
    • Data do Fascículo
      Jun 2005

    Histórico

    • Aceito
      19 Nov 2004
    • Recebido
      29 Abr 2004
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