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Caso 2/2017 - Cor Triatriatum, sem Manifestação Clínica, em Menina de 6 Anos de Idade

Palavras-chave
Cor triatriatum; Anormalidades Congênitas; Ecocardiografia; Sinais e Sintomas

Dados clínicos: sopro cardíaco foi auscultado de rotina com 2 anos de idade, caracterizado nesta ocasião como funcional. Recente ecocardiograma demonstrou membrana divisória no átrio esquerdo com ampla comunicação entre as duas cavidades, proximal e distal. Desempenha normalmente as atividades físicas habituais, semelhante às demais crianças.

Exame físico: eupneica, acianótica, pulsos normais. Peso: 19,6 kg; altura: 116 cm; pressão arterial: 95/60 mmHg; frequência cardíaca: 78 bpm, saturação de oxigênio: 97%. Aorta não palpada na fúrcula.

No precórdio, ictus cordis não palpado e ausência de impulsões sistólicas na Borda Esternal Esquerda (BEE). Bulhas cardíacas normofonéticas; sopro sistólico, +/++/4, rude, BEE média, variável em intensidade, dependente da posição adotada, diminuindo nitidamente na sentada. O fígado não era palpado.

Exames complementares

Eletrocardiograma mostrou ritmo sinusal e sem sinais de sobrecargas cavitárias. O complexo QRS apresentava morfologia RS em V1, qRs em V6. AP: +50º, AQRS: +80º, AT: + 40º.

Radiografia de tórax mostrou área cardíaca normal (índice cardiotorácico: 0,46). A trama vascular pulmonar era normal e o arco médio, retificado.

Ecocardiograma transtorácico (Figuras 1 e 2) mostrou uma membrana no meio do átrio esquerdo, aumentado de volume. A cavidade proximal recebia as quatro veias pulmonares, e a cavidade distal, em comunicação com a valva mitral, não apresentava qualquer comunicação interatrial. Havia duas fenestrações na membrana, sendo a maior de 10 mm e outra menor de 4 mm de diâmetro. O gradiente máximo transmembrana era de 9 mmHg e médio de 2,5 mmHg. A velocidade do fluxo pelas veias pulmonares era normal e sem turbulência, caracterizando ausência de obstrução intra-atrial. A pressão sistólica da artéria pulmonar era de 30 mmHg. Nenhum outro defeito foi encontrado.

Figura 1
Ecocardiogramas demonstram o cor triatriatum no plano apical de 4 câmaras em posição anatômica, mostrando átrio esquerdo dilatado, com septação (A); no mesmo plano, em preto e branco e com mapeamento colorido, com a medida da fenestração e a passagem do fluxo em cores (B); no plano paraesternal, eixo longo, mostrando simultaneamente em preto e branco e com mapeamento colorido, a membrana do cor triatriatum no átrio esquerdo e a medida da fenestração principal (C); e, no plano paraesternal, eixo curto, mostrando a septação no átrio esquerdo (D). AD: átrio direito; AE: átrio esquerdo; VD: ventrículo direito; VE: ventrículo esquerdo; VM: valva mitral; VAO: valva aórtica; TP: tronco pulmonar.

Figura 2
Ecocardiogramas em plano apical de 4 câmaras em aquisição tridimensional, mostrando átrio esquerdo dividido pela membrana fenestrada e em plano apical de 2 câmaras, mostrando simultaneamente em preto e branco e com mapeamento colorido a membrana do cor triatriatum no átrio esquerdo, evidenciando que há duas fenestrações, suas medidas e a passagem do fluxo em cores. AD: átrio direito; AE: átrio esquerdo; MEMB: membrana do cor triatriatum; VD: ventrículo direito; VE: ventrículo esquerdo; AAE: átrio esquerdo acessório.

Diagnóstico Clínico: cor triatriatum sinister sem defeitos associados (tipo A da classificação de Lam) em criança assintomática, em face de discreta limitação ao fluxo intra-atrial

Raciocínio clínico: os elementos clínicos disponíveis eram insuficientes para a caracterização da existência de qualquer cardiopatia congênita. O sopro sistólico presente na BEE, variável e discreto, tinha característica de funcional, sem relação com qualquer anomalia. Os exames complementares usuais tampouco expressavam anormalidades. Assim, o defeito intra-atrial esquerdo foi descoberto por achado ecocardiográfico de rotina, motivado pela presença do sopro funcional.

Diagnóstico diferencial: há outras anomalias congênitas cardíacas que podem igualmente ser diagnosticadas de rotina, sem elementos sugestivos, como defeitos cardíacos de discreta repercussão, exteriorizados por sopros discretos e inexpressivos. Constituem exemplos desta situação a comunicação interatrial e interventricular, as lesões obstrutivas da valva pulmonar e aórtica, a coarctação da aorta, e em obstruções na cavidade de ventrículo direito e mesmo do ventrículo esquerdo.

Conduta: o ideal seria extirpar a membrana intra-atrial esquerda por intervenção cirúrgica. No entanto, considerando que esta obstrução não provoca distúrbios hemodinâmicos suficientes para exteriorizar qualquer sintoma ou sinal de problema clínico evolutivo, optou-se pela observação clínica, até que haja alguma manifestação.

Comentários: cor triatriatum é uma anomalia rara, na qual os átrios são divididos por uma membrana, caracterizando-se em sinister à esquerda (caso presente) e dexter à direita.11 Saxena P, Burkhart HM, Schaff HV, Daly R, Joyce LD, Dearani JA. Surgical repair of cor triatriatum sinister: the Mayo Clinic 50-year experience. Ann Thorac Surg. 2014;97(5):1659-63.,22 Nassar PN, Hamdan RH. Cor Triatriatum Sinistrum: classification and imaging modalities. Eur J Cardiovasc Med. 2011;1(3):84-7. A embriologia explica a anomalia pela incorporação inadequada das veias pulmonares no átrio esquerdo, provocando a divisão intra-atrial. Do lado esquerdo, as veias pulmonares drenam na câmara proximal (posterossuperior), e a valva mitral e o apêndice atrial esquerdo se apresentam na câmara distal (anteroinferior). Cor triatriatum é classificado, segundo Lam (1962), em tipo A, sem associações (como no presente caso); A1, no qual a comunicação interatrial (CIA) ocorre na câmara proximal (50%); A2, cuja CIA ocorre na câmara distal (10%); B, no qual as veias pulmonares drenam no seio coronário (1%); e C, quando há drenagem anômala total das veias pulmonares (5%). Na dependência do grau da obstrução e das associações, esta anomalia obstrutiva pode ser diagnosticada em qualquer idade.11 Saxena P, Burkhart HM, Schaff HV, Daly R, Joyce LD, Dearani JA. Surgical repair of cor triatriatum sinister: the Mayo Clinic 50-year experience. Ann Thorac Surg. 2014;97(5):1659-63. Na situação mais grave, há obstrução acentuada da drenagem venosa pulmonar, hipertensão pulmonar e insuficiência cardíaca. Em 50 anos, foram operados 25 pacientes com cor triatriatum na Clínica Mayo, cuja idade variou de 1 dia a 73 anos.11 Saxena P, Burkhart HM, Schaff HV, Daly R, Joyce LD, Dearani JA. Surgical repair of cor triatriatum sinister: the Mayo Clinic 50-year experience. Ann Thorac Surg. 2014;97(5):1659-63. A primeira cirurgia corretiva desta anomalia foi realizada em 1956 por Lewis e, desde então, cerca de 250 casos foram reparados cirurgicamente. Conclui-se que há grande diversidade em relação à repercussão e também quanto à idade de exteriorização clínica, podendo ser encontrada em idade precoce na vida e até em idade avançada, quando advêm problemas evolutivos, como fibrilação atrial, hipertensão arterial pulmonar e insuficiência cardíaca direita.22 Nassar PN, Hamdan RH. Cor Triatriatum Sinistrum: classification and imaging modalities. Eur J Cardiovasc Med. 2011;1(3):84-7. Não há relatos, na literatura, de atuação percutânea nesta anomalia obstrutiva, mas se torna tentadora essa ideia, em vista de se poder tornar esta anomalia resolutivamente mais simples, em presença até de obstrução residual mais discreta.

References

  • 1
    Saxena P, Burkhart HM, Schaff HV, Daly R, Joyce LD, Dearani JA. Surgical repair of cor triatriatum sinister: the Mayo Clinic 50-year experience. Ann Thorac Surg. 2014;97(5):1659-63.
  • 2
    Nassar PN, Hamdan RH. Cor Triatriatum Sinistrum: classification and imaging modalities. Eur J Cardiovasc Med. 2011;1(3):84-7.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Mar 2017
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