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2. Assistência pré-natal cardiológica

ASSISTÊNCIA PRÉ-NATAL CARDIOLÓGICA

2. Assistência pré-natal cardiológica

2.1 - Diagnóstico anatomofuncional da cardiopatia

- Anamnese - A diferenciação de sinais e sintomas - tais como edema, dispneia, palpitação e tontura - entre gestantes normais e portadoras de cardiopatias é muitas vezes difícil. No entanto, devem ser valorizadas queixas como palpitações, piora da capacidade funcional, tosse seca noturna, ortopneia, dispneia paroxística noturna, hemoptise, dor precordial ao esforço e síncope.

- Semiologia - A gravidez favorece o aparecimento de sopros funcionais, aumento na intensidade das bulhas, desdobramento das 1ª e 2ª bulhas e aparecimento de 3ª bulha. Contudo, sopros diastólicos habitualmente estão associados à lesão cardíaca anatômica.

- Exames complementares - Os resultados dos exames subsidiários devem ser sempre correlacionados com o quadro clínico, a fim de se estabelecer o grau de repercussão anatomofuncional da lesão cardíaca. Dados isolados de exames complementares não devem determinar conduta terapêutica na gestação.

- Eletrocardiograma (ECG) - Ondas q em D 3, desvio do eixo SÂQRS para a esquerda e alteração de repolarização ventricular podem ocorrer em gestantes normais.

- Ecodopplercardiograma - Permite quantificar o débito cardíaco, o gradiente e a área valvar, avaliando a presença de shunts cardíacos e o grau de regurgitação valvar. Na gravidez, ocorre aumento do gradiente das lesões obstrutivas ao fluxo sanguíneo e a interpretação deste exame na estenose mitral deve ser complementada com o escore ecocardiográfico. É um método seguro na gestação e reduz a necessidade de exames invasivos.

- Ecocardiograma transesofágico - Indicado para a identificação de trombos intracavitários, vegetações valvares e dissecção de aorta torácica.

- Exames radiológicos - Os efeitos teratogênicos não são observados com exposições menores de 5 rads, mas exames desnecessários devem ser evitados durante a gestação porque a radiação tem efeito cumulativo. O risco de carcinogênese na criança é mais questionável e a literatura sugere a possibilidade de aumento do risco de leucemia na infância. A radiação é expressa por unidades, sendo a mais conhecida o rad e a mais utilizada atualmente o Gy (gray), que representa a dose de radiação absorvida por uma porção de matéria. Outra unidade encontrada na literatura é o Sv (sievert), que correponde ao equivalente de dose de uma radiação igual a 1 joule/kg. Para facilitar o entendimento, e como as publicações utilizam todas as unidades, relacionamos a seguir a equivalência entre as unidades de radiação (Tabela 1).

A quantidade de radiação absorvida pelo feto nos diferentes métodos diagnósticos é mostrada na Tabela 2. O limite superior de radiação aceito, e que não ofereceria riscos, corresponderia a 50 mSv ou 50.000 µGy9.

- RX de tórax - Pode ser realizado na projeção AP, pois oferece pequena quantidade de radiação (para a mãe, de 12 a 25 mrads; e para o feto, 0,1 mrads). Em algumas situações, é necessária também a projeção em perfil. Os exames radiológicos devem ser realizados com proteção abdominal por avental de chumbo.

- Tomografia computadorizada (TC) - Pode ter a quantidade de radiação reduzida, utilizando a técnica de curto tempo de exposição. Atualmente, considera-se que a quantidade de radiação absorvida pelo feto em angiografia por TC de tórax seja menor que a da cintilografia pulmonar perfusional e maior quanto maior for a idade gestacional (Tabela 2).

- Angiografias - Em exames com fluoroscopia, a quantidade de radiação oferecida depende do local e do tempo de exposição, variando de 500 a 5.000 mrads/min.

Na gestação, aos riscos habituais da coronariografia, são somados os da exposição fetal a fatores como radiação ionizante, fármacos e eventuais alterações hemodinâmicas vinculadas ao procedimento.

Com a proteção abdominal adequada, reduzindo-se o tempo de exame e utilizando-se o braço direito como via de acesso, a radiação absorvida pelo feto na angiografia seria no máximo de 0,55 mSv; já durante a angioplastia transluminal percutânea, a radiação máxima seria de 0,7 mSv . Haveria um consenso de que não há razão para preocupação se a dose oferecida para o concepto for menor do que 10 mSv durante toda a gestação10, segundo alguns autores, e de 50 mSv, de acordo com publicação mais recente9.

A angiografia está contraindicada nas primeiras 14 semanas de gestação. A velocidade de aquisição deve ser de 15 quadros por segundo, restrição do uso da fluoroscopia e grafia, seleção de incidências com menor quantidade de radiação, colimação do feixe primário e uso de menor magnificação de imagem. A paciente deve ter seu abdome protegido por aventais plumbíferos, especialmente na porção posterior. O acesso arterial pela via braquial ou radial pode ser benéfico, por excluir a possibilidade de irradiação primária do abdome11,12.

- Cintilografias - Por utilizarem radiofármacos, liberam quantidade variável de radiação, que depende do tipo do radiotraçador,dadose,dameia-vida,dolocalonde se acumulam no corpo da mãe (como bexiga e cólon, mais próximos do útero gravídico) e da permeabilidade placentária.

Exames de perfusão miocárdica com thallium-201 ou technetium-99m sestamibi liberariam para o concepto menos de 1 rad e só poderiam ser utilizados na gestação se considerados indispensáveis13. No entanto, a cintilografia pulmonar perfusional pode ser realizada com segurança9.

São contraindicadas, na gestação e amamentação, a flebografia com fibrinogênio marcado com I125, porque o radiofármaco atravessa a placenta e se acumula na tireoide do feto, liberando uma dose fetal de 2 rads, além de ser eliminado pelo leite materno; e as cintilografias que utilizam Gálio-67, pois liberam radiação de 0,5 a 5 rads7,14.

- Ressonância nuclear magnética (RNM) - Por não produzir radiação ionizante e sem o uso de contraste, pode ser utilizada quando a ultrassonografia não for esclarecedora. Os contrastes utilizados têm baixo peso molecular e atravessam a placenta, e em altas doses poderiam provocar complicações fetais. São classificados pelo FDA como categoria C. Estaria indicado o uso de contraste nos exames de RNM quando o benefício justificasse o potencial risco para o feto15.

- Teste ergométrico - Indicado na suspeita de doença arterial coronariana quando não há contraindicação obstétrica ao esforço. É utilizado teste de esforço submáximo (70% da frequência cardíaca prevista) para evitar bradicardia fetal, a qual pode refletir sofrimento fetal por hipóxia, acidose ou hipertermia16 (ver item 14.2). O método é utilizado também na avaliação pré-gestacional para estratificação de risco em pacientes com estenose aórtica assintomática. A presença de isquemia subendocárdica ou hipotensão são indicadores de maior risco de complicações17.

- ECG de longa duração (Holter) - Usado para correlacionar a presença de arritmias cardíacas em pacientes sintomáticas ou consideradas de risco, definindo o prognóstico e auxiliando no tratamento.

2.2 - Estimativa do risco gravídico

De acordo com Andrade18, o risco gravídico pode ser estimado por meio da equação RG = (RO + RC) RA, onde RG = risco gravídico; RO = risco obstétrico; RC = risco cardiológico; e RA = doenças associadas (diabetes, tireoidiopatias, nefropatias etc.). No RG, o risco obstétrico aumenta em progressão aritmética e o cardiológico em progressão geométrica18.

2.3 - Estimativa do risco cardiológico

O diagnóstico anatomofuncional da doença e a estimativa do risco gravídico permitem estabelecer as condições que se associam ao mau prognóstico. A assistência pré-natal deve obedecer à rotina habitual, cuidando-se para afastar os fatores que precipitam as complicações cardiovasculares mais frequentes: insuficiência cardíaca, arritmias, tromboembolismo, angina, hipoxemia e endocardite infecciosa5. Entre os fatores precipitantes, devem ser pesquisados: anemia, infecção, hipertireoidismo e distúrbio eletrolítico.

Preditores de complicações maternas:

• Classe funcional (CF) III/IV da New York Heart Association (NYHA);

• Cianose;

• Disfunção ventricular esquerda moderada/grave (FE < 40%);

• Hipertensão arterial sistêmica (HAS) moderada/grave;

• Hipertensão arterial pulmonar grave (PAP média > 30 mmHg);

• Obstrução do coração esquerdo;

• Regurgitação pulmonar grave;

• Disfunção ventricular direita;

• Antecedentes de eventos cardiovasculares (tromboembolismo, arritmias, endocardite infecciosa, insuficiência cardíaca)5,19,20,21.

2.4 - Aconselhamento geral

As consultas simultâneas, com o obstetra e o cardiologista, devem ser mensais na primeira metade da gestação, quinzenais após a 21ª semana e semanais nas últimas semanas. Em alguns casos, de acordo com a gravidade do quadro clínico, pode haver necessidade de internação hospitalar prolongada (IC). Redução da atividade física e da ingesta de sal é recomendada quando constatada insuficiência cardíaca. Outras medidas recomendadas:

- Ácido fólico - Estimular a ingesta de alimentos ricos em ácido fólico e associar suplementação nas doses de 1 a 5 mg/dia desde antes da concepção, pois evita defeito do tubo neural em 72% dos casos quando administrado durante o primeiro trimestre21 (IA). Está indicado seu uso na segunda metade da gestação associado com a reposição de ferro, pois reduz níveis baixos de hemoglobina e anemia megaloblástica em até 40%22 (IIaA).

- Dieta - Devem ser evitados queijos não pasteurizados e patês que podem provocar listeriose (causa de aborto, morte fetal e infecção neonatal), peixes que contenham muito mercúrio (peixe espada, atum etc.) e carnes mal cozidas. As frutas e verduras devem ser bem lavadas para evitar toxoplasmose. Adotar dieta rica em ferro e vitamina C, além de considerar suplementação de ferro após 20 semanas de IG (IA).

- Peso - Evitar a obesidade (associada a aborto, diabete gestacional, tromboembolismo, hipertensão e pré-eclâmpsia,) e a desnutrição (prematuridade, baixo peso ao nascer e morte perinatal). (IA) As crianças que nascem com baixo peso têm maior risco futuro de doenças cardiovasculares e diabete17.

- Tabagismo - Deve ser evitado quando ativo, pois está relacionado com placenta prévia, descolamento prematuro da placenta, baixo peso fetal e prematuridade. Quando passivo, aumenta o risco de baixo peso ao nascer21.

- Álcool - Não há consenso quanto à quantidade segura de ingesta. Recomenda-se evitá-lo, pois pode provocar restrição de crescimento fetal, anomalias da face e do sistema nervoso central21.

- Medicações - Revisar medicações de uso continuado e suspender ou substituir aquelas que são prejudiciais ao feto (vide cap. 6).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Ago 2010
  • Data do Fascículo
    Dez 2009
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