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Lipoma atrial direito

RELATO DE CASO

Lipoma atrial direito

Paulo M. Pêgo-Fernandes; Pedro Luiz Guimarães Costa; Fábio Fernandes; Luiz Alberto Benvenuti; Sérgio Almeida Oliveira

Instituto do Coração do Hospital das Clínicas, FMUSP

São Paulo, SP

Endereço para correspondência

Tumores benignos cardíacos são raros e os lipomas estão entre os menos freqüentemente encontrados. Relatamos o caso de homem de 48 anos que citava pressão alta e epistaxes há 2 meses e com diagnóstico de lipoma atrial direito estabelecido através do ecocardiograma, ressonância magnética e exame anatomopatológico. O tumor foi removido com sucesso e até 42 meses após a extirpação cirúrgica, não houve evidências de recorrência tumoral.

Doenças tumorais primárias cardíacas são raras, tendo difícil diagnóstico clínico e diferindo quanto a manifestações clínicas, localização, morfologia, tamanho e aspectos radiológicos 1.

Tumores primários do coração e pericárdio têm incidência de 0,02% a 0,28%, de acordo com uma série de autópsias relatadas por McAllister e HA Jr 2. Por outro lado, neoplasias, principalmente as de mama e de pulmão (que enviam mais metástases para o coração), seguidas pelas leucemias e linfomas são 10 a 40 vezes mais freqüentes que tumores cardíacos primários. Metástases cardíacas são encontradas nas necropsias de 10% dos pacientes que morrem com câncer de pulmão e em 25% de tumores de outros órgãos. Em crianças os tumores cardíacos são raros, não ultrapassando 10% de todas as neoplasias nessa faixa etária 3.

Cerca de 75% dos tumores primários do coração são benignos 4, com destaque para os mixomas, seguidos pelos rabdomiomas, lipomas, fibromas e teratomas 3. Os lipomas cardíacos, descritos inicialmente por Orth, em 1886 5, ocupam 8,4% dos tumores primários do coração e pericárdio, relatados em número de 63 até 1990 6. Segundo a literatura disponível, 25% dos lipomas cardíacos são intramiocárdicos, 25% extracavitários, de origem epicárdicas e 50% intracavitários, de origem subendocárdica - os de átrio direito são extremamente raros 7.

Na literatura recente, foi relatado um caso de lipoma intrapericárdico em mulher de 27 anos 8, e um caso de lipoma em átrio direito em homem de 54 anos 9. Diamante e cols.10 relataram, em 1994, um caso peculiar de lipoma epicárdico, que ocasionou a inversão da aurícula esquerda e a obstrução parcial da drenagem das veias pulmonares esquerdas, levando à hipertensão pulmonar e arterial sistêmica, cardiomegalia e alterações eletrocardiográficas. Em trabalho de Fernandes e cols. 11, de 50 casos apresentados, apenas é relatado um de lipoma.

Relato do caso

Homem de 48 anos, referia epistaxe há 2 meses e elevação da pressão arterial. Negava episódios prévios semelhantes. Ex-tabagista (2 maços por dia) por 20 anos, negava etilismo. Antecedentes pessoais e familiares habituais e sem relevância.

Por ocasião dos sintomas procurou cardiologista. Uma vez que apresentava sintomas inespecíficos, foi solicitado ecocardiograma (2/7/98), que detectou tumor de 4,6x3,5cm com características de tecido gorduroso em átrio direito.

Encaminhado para nosso serviço, ao exame físico constatou-se estar em bom estado geral, eupnéico, afebril, acianótico, pressão arterial 130x80mmHg, freqüência cardíaca de 60bpm, e o restante do exame físico normal.

A avaliação laboratorial evidenciou discreta leucocitose -13.900 células/mm3 sem desvio à esquerda; os demais exames não revelaram anormalidades.

A radiografia de tórax mostrou pulmões de transparência normal, hilos normais, seios e cúpulas diafragmáticas livres e imagem cardíaca normal.

Ao eletrocardiograma detectou-se ritmo sinusal com 72bpm, com desvio do eixo cardíaco para a esquerda.

A ressonância nuclear magnética (17/8/98) confirmou os achados do ecocardiograma realizado em instituição externa: tumoração de 4,6x3,5cm no sentido coronal com características de tecido gorduroso, no teto do átrio direito, sugestiva de lipoma (fig. 1).


Considerando o diagnóstico e as boas condições do paciente, optou-se pela extirpação da massa tumoral. O paciente foi submetido a circulação extracorpórea com canulação de aorta e veias cavas. Aberto o átrio direito, o tumor apresentava implante junto ao anel da tricúspide. Realizada dissecção romba e cauterização do local do implante, obteve-se êxito no processo terapêutico, transcorrido sem intercorrências (figs. 2 e 3).



O exame anatomopatológico da massa tumoral revelou formação arredondada de 5,0x4,5x4,0cm, pesando 35g, constituída por tecido amarelado macroscopicamente uniforme, com áreas focais de tecido acastanhado na periferia. À congelação diagnosticou-se lipoma, sendo este o diagnóstico histológico definitivo (fig. 4).


Foram realizados ecocardiogramas após 8 dias e após 7 meses da retirada do lipoma, constatando-se átrio direito normal. Nenhum dado de recorrência foi relatado até 42 meses após a retirada do tumor.

Discussão

A literatura refere que os lipomas são infreqüentes e representam 8,4% dos tumores primários cardíacos, sendo os de átrio direito extremamente raros 6.

De acordo com sua composição e localização os lipomas são subdivididos em 2 grupos: a hipertrofia lipomatosa e o lipoma verdadeiro. Estes são menos freqüentes e apresentam-se como massas de tecido adiposo encapsuladas.

Quando infiltrados no miocárdio formam um miolipoma; se possuem fibroblastos compõem um fibrolipoma e quando contêm células tímicas são chamados timolipomas ou lipotimomas. Caso seja formado unicamente de lipócitos é um lipoma 12. Têm origem congênita, pertencendo ao grupo dos disembriomas homeoplásticos e descritos como coleções encapsuladas de células adiposas benignas, freqüentemente contendo fibras musculares 13,14. A hipótese de doença adquirida não é aceita, uma vez que os portadores de lipomas intratorácicos não apresentam outras doenças relacionadas 12.

O diagnóstico desta entidade tumoral é difícil, uma vez que, em sua maioria, os pacientes são assintomáticos ou têm sintomatologia variável, dependendo do tamanho e localização intracavitária do tumor. Assim, como ocorre com outros tumores primitivos do coração, seu diagnóstico é muitas vezes acidental e quase, exclusivamente, achado de autópsia 15. Podem, entretanto, ser detectados por exames radiográficos e diagnosticados por ecocardiografia, tomografia computadorizada e ressonância nuclear magnética, que fornece maiores dados quanto a sua natureza, tamanho, localização e padrão 16,17.

Por serem comumente assintomáticos, usualmente os pacientes com lipoma não requerem nenhum tratamento ou intervenção cirúrgica, dependendo da localização e tamanho do tumor. No entanto, grandes lipomas subpericárdicos, exercendo pressão nas estruturas cardíacas, podem determinar angina ou interferir com a função cardíaca, enquanto lipomas intramiocárdicos podem produzir alterações na condução elétrica e arritmias 6, podendo resultar em morte súbita.

Apesar de a maior parte dos casos de morte súbita ser devida à doença aterosclerótica, aproximadamente 0,0025% decorrem de tumorações cardíacas primárias. Até 1996 haviam sido publicados 120 casos de morte súbita atribuídos a esses tumores, sendo 86% deles histologicamente benignos. Porém, sua localização intracardíaca precipitou alterações hemodinâmicas e de condução, o que levou os pacientes à morte súbita 18.

Assim, toda vez que o tumor tem localização intracavitária deve ser ressecado 6, uma vez que a exérese cirúrgica precoce pode permitir cura completa dos tumores cardíacos benignos, evitar a ocorrência de morte súbita e insuficiência cardíaca irreversível 19. Entretanto, a decisão para a terapêutica cirúrgica em pacientes assintomáticos com massa tumoral cardíaca é crítica, já que a lesão nem sempre está relacionada a alterações de função, sendo os pacientes geralmente assintomáticos e os tumores achados casuais de autópsia ou exame. Porém, esses tumores podem estar relacionados à disfunção valvar, dor torácica, insuficiência cardíaca congestiva, sintomas neurológicos e morte súbita 20.

No nosso paciente, que apresentava massa tumoral cardíaca caracterizada como lipoma atrial direito, foi feita ressecção tumoral, justificada pelo risco de complicações tardias da função cardíaca ou mesmo morte súbita, realizada com sucesso, encontrando-se o paciente se em ótimas condições clínicas, 3 anos e meio após a cirurgia.

Referências

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    Paulo Manuel Pêgo-Fernandes
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      04 Jan 2012
    • Data do Fascículo
      Jan 2003
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