Acessibilidade / Reportar erro

Acaso da beira do leito, causo da bioética

PONTO DE VISTA

Acaso da beira do leito, causo da bioética

Max Grinberg

Instituto do Coração do Hospital das Clínicas – FMUSP - São Paulo, SP

Correspondência Correspondência: Max Grinberg InCor - Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 44 05403-000 - São Paulo, SP E-mail: max@cardiol.br

Palavras-chave: Bioética clínica, conflitos da beira do leito, relação médico-paciente.

"o médico aprendiz não adquire olho diagnóstico nos livros, mas no permanente trato com seus doentes. (Erwin Risak) ... creio na Medicina que serve os doentes e nunca se serve deles. (L.V. Décour) ... todos os homens são exceção a uma regra que não existe (Fernando Pessoa) ... beira do leito é mais do que uma metáfora, é o ponto de encontro da Medicina-ciência e Medicina-disciplina aplicada..."

Impactando

A bioética clínica integra-se à beira do leito como poder moderador de ideologias tecnicistas e salvaguarda de exageros de "nacionalismo da Medicina", como a "medicalização da vida". Ela amalgama "voz da Medicina, voz do médico" com "voz do paciente, voz do consentimento".

Se a beira simboliza a visão do médico e o leito representa a Medicina disponível, a bioética clínica apresenta-se como fator de ajuste biopsicossocial do tamanho do colchão confortador. Quando redimensionamentos são precisos, ela contribui para encontrar a medida adequada, esticando-o ou reduzindo-o perante restrições ou demasias desconfortáveis.

Conflitos: o biológico e o psicossocial

Os personagens do suposto saber e do suposto sofrer são, antes de tudo, pessoas, exclusividades de DNA ante a infinita pluralidade, aval da natureza para as heterogeneidades. Das ações e reações, resultam conflitos com representações biológicas e psicossociais.

O reconhecimento do contexto predominantemente biológico é imprescindível para a condução clínica. As manifestações formatam-se em cenários tão distintos como um liliputiano conflito entre microscópicos vírus e bactérias e a imunocompetência humana, uma nutriparadoxal influência de alimentos para a vida sobre a morte de um órgão, ou mesmo, um efeito de passagem de fármacos em direção ao local-alvo.

Os agregados de ordem psicossocial figuram seqüentes "escolhas de Sofia". Como do entendimento de um bem decorre, freqüentemente, um outro de mal, choques de interesses costumam suceder na relação entre o médico que tem obrigações pela profissão e o paciente que exerce o seu livre-arbítrio. Ora ocorre uma recusa à recomendação ora surge uma exigência inaceitável ora acontece uma intercorrência inesperada que desestrutura a relação médico-paciente.

Acasos da beira do leito

Este é um "caso de livro!". Colecioná-los, não basta. A biblioteca da beira do leito tem que dispor de leituras distintas da linguagem oficial do livro.

É preciso conhecer os dialetos da beira do leito. Eles são o modo de comunicação das reuniões randômicas de retalhos de capítulos do livro com os valores do paciente. As combinações formam os acasos da beira do leito.

Este é um "acaso da beira do leito!". Colecionar suas infinitas composições biopsicossociais exige-nos o inveterado das variantes, uma minuciosidade que vai muito além do que ordenar simples plágios do livro.

Tornar inteligíveis os componentes dos acasos faz aflorar a sensação de hiperestesia clínica, aquela impulsão que nasce nos textos, cresce na aliança com o doente e amadurece no compromisso ético.

Os acasos da beira do leito são multipotentes. Eles se transformam em boomerangues acadêmicos, idéias de pesquisa clínica deles intuídas que vão, aplicações baseadas em evidências que vêm. Eles se convertem em empuxo humanístico, que traz à tona a parte do biopsicossocial submersa no iceberg pedagógico, oculta no aprendizado sobre a doença dissociado do doente. Eles mobilizam a bioética clínica para a estabilidade do tripé de suporte aos desejos da sociedade quanto à atuação do médico: honestidade, sigilo e eficiência. Eles alertam que esquematizações podem ser tão didáticas quanto ilusórias, pois são as simplificações – vide acaso 1 – que sustentam a jocosidade do "não somos recém-formados para sabermos tudo".

Pós-graduandos para sempre

É a formalidade de uma predeterminação de tempo que faz da residência médica tão-somente um prólogo da empatia com os acasos da beira do leito. A química segue sem fim, residência tácita, ano após ano, na arte da beira do leito.

O médico que permanece "residindo" à beira do leito mantém o crachá renovado de estudante de sua profissão. Nessa educação continuada, ele amadurece destrezas e maneiras de ser e desenvolve sensibilidade ao técnico em reciprocidade ao humano. Ele faz da habitualidade da beira do leito uma permanente defesa da tese quebramos o sigilo das doenças e não o do doente.

A gradualidade da pós-graduação longeva à ambientação diagnóstica e terapêutica da beira do leito reúne coleções autênticas de acasos, catalogados um a um no acervo de legitimidades clínicas. O valioso patrimônio das particularidades da experiência precisa ficar exposto e disponível, em respeito ao hipocrático ...com ele partilhar meus bens... ensinar-lhes esta arte... fazer participar dos preceitos, das lições e de todo o resto do ensino..., segundo os regulamentos da profissão...

Na metanálise pedagógica da beira do leito, os acasos vivenciados são compartilhados com a globalização dos relatos "fora de série" nas revistas, com as seletas reuniões anatomoclínicas e seus achados in vivo ou post-mortem, não intuídos pela clínica, e com as segundas-opiniões, manifestas formal ou informalmente.

A "memória clínica" resulta ampliada e na expansão elevam-se as chances da futura identificação de um "quase o mesmo". O saber assim compacta-se como uma vara de equilíbrio para os percursos de risco por sobre a beira do leito.

Verdade oficial, verdade do ofício

Expansões e contensões do livro de texto, estimuladas pelos acasos, são verdadeiros hormônios de crescimento da bioética clínica à beira do leito.

Há o desenvolvimento de salvo-condutos para os três destinos fundamentais: preservar a saúde, curar/aplacar e evitar morte prematura – vide acaso 2.

Há a erupção do sujeito oculto no universo das publicações, o eu e o tu, nos dialetos da beira do leito, onde se tornam nós, a desejável pluralidade para o enfrentamento de desafios sobre o que se deve fazer e de conflitos sobre se é devido fazê-lo.

A bioética clínica atapeta os caminhos do preceito ao aceito, perante o inédito dos acasos da beira do leito. Ela é parte integrante do código para decifrar os enigmas formados por contraposições aos livrescos típico, clássico e patognomônico.

A bioética clínica ameniza o impacto do decifra-me ou te devoro, porque reveste as lacunas de memória do "mesmo" com o veludo da humanização – vide acasos 3 e 4.

Está no código de ética médica

Em conseqüência, casos de livro de texto e acasos de livre contexto amoldam-se ao dizer emblemático do artigo 2º do Código de Ética Médica: "o alvo de toda a atenção do médico é a saúde do ser humano, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional".

Imagem-ouro

Ser ou não ser o útil e o eficaz para o acaso envolve a bioética no equilíbrio das expectativas antropocêntricas com concepções clinicotecnológicas de beneficência/não-maleficência – vide acaso 5. A triagem faz-se na integração do checklist: o que, a quem, quando, como e onde.

A bioética clínica colabora para manter, diante dos acasos, a adequada mutualidade entre a arqueologia de heranças a preservar e a futurologia de novidades a incorporar.

No circuito beira do leito-livro-beira do leito, sinais da clássica propedêutica física persistem com o rótulo de típicos e patognomônicos, enquanto evidências emergentes variam ao sabor das próprias classes, sensíveis ao poderio das análises estatísticas.

A futuridade da propedêutica baseada na imagem – macroscopia in vivo – é um dos pontos altos da bioética clínica. Ela está às voltas com a expansão da certeza clínica de beira de leito. A atenção dirige-se para a imagem-ouro de uma vegetação, delaminação, ruptura de corda tendínea, oclusão coronária e muito mais, e para a medida-ouro de uma fração de ejeção, área valvar e outros tantos cálculos.

O deslocamento progressivo do padrão-ouro desde a histórica verdade anatomopatológica – acerto para um futuro caso – para o glamour iconográfico in vivo de uma já senhora cinecoronariografia ou de uma infante ressonância magnética cardiovascular – acerto nesse caso – não deve obscurecer a lucidez clínica.

A bioética clínica adverte que a beira do leito nem sempre valida o ditado "uma imagem vale mais do que mil palavras"; uma imagem do ecocardiograma sem anamnese, por exemplo, pode ter limitado valor de contribuição para decisões clínicas; ou seja, achado solitário de imagem é uma coisa, solidão propedêutica pela imagem é outra.

A integração entre "a clínica é soberana e a imagem é poderosa", "visão clínica de um lado e visão processada do outro, idealmente fundidas num ciclópico olho de médico" procura prevenir "estrabismos éticos". De fato, "nem tudo que reluz é padrão-ouro": se, de um lado, a clínica que reluzia como infarto do miocárdio resulta esclarecida por uma imagem de delaminação por dissecção da aorta, de outro, a imagem que reluzia interpretada como vegetação perde a conotação de padrão-ouro pela absoluta ausência de quadro clínico.

Heterônimos

Superposições e contraposições entre a soberania da clínica e o poder da imagem –vide acaso 6 – sustentam revisões periódicas de processos de decisão nos acasos da beira do leito; são ajustes com rapidez em prol do "tempo é prognóstico", afinados com um conceito essencial da beira do leito: ter dúvidas não significa descrer.

O "eu" do médico que prescreve – o que para o paciente é o sagrado tratamento que vai resolver seus males – convive com o "eu" insatisfeito com o real alcance da conduta que adotou, com o "eu" que pensa ainda propor outro método para confirmação do diagnóstico que orientou a farmacoterapia, com o "eu" impelido a impor seu saber ante hesitações do paciente e com o "eu" resignado a tolerar os limites.

É como se a beira do leito fosse freqüentada por heterônimos, cada qual surgindo como uma reação do ortônimo às convergências e divergências. A bioética clínica contribui para que haja a harmonia dos vários "eus" integrada ao planejamento beneficente/não-maleficente.

Ciência versus disciplina aplicada

Bom diagnóstico-boa terapêutica é antiga expressão do feedback médico-paciente. É preciso, contudo, ter a prudência da indagação: boa na visão de quem?

Se boa na de ambos, estaremos diante do ideal paciente que se pretende a maioria que se beneficia do método; se na de nenhum deles, estaremos diante de uma inexigibilidade técnica específica que supera a beneficência difusa; se apenas na do médico, recomendações classe I poderão resultar não consentidas pelo paciente.

Nessa última situação, os acasos são determinados pela livre, informada e soberana não-aceitação da beneficência de livro – acaso 2. O inaplicado de alguma recomendação clássica, diretriz de uma sociedade de especialidade ou prática consagrada assombra por fantasmas de negligência ou imprudência.

A bioética contribui para superar, caso a caso, ou melhor, acaso a acaso, receios de descaso quando um menor benefício considerado pela Medicina-ciência está sendo a permissão pela Medicina-disciplina aplicada.

Nortes bioéticos podem fazer esmaecer o maniqueísmo de pressuposições de certo e de errado e colorir o humanismo dos ajustes. Eles fornecem lápis e borracha para redesenhar traços no quadro clínico, conforme as percepções do panorama.

Os acasos da beira do leito não costumam ter duas releituras idênticas, como acontece com os textos. O acaso 6 é exemplar: borracha na antibioticoterapia e lápis na corticoidoterapia.

Código de ética médica novamente

O nosso Código de Ética Médica é humano quando fortalece o acatamento da autonomia como justificativa bastante para isenção de negligência ou imprudência perante certas circunstâncias "cientificamente inadequadas"; é, ademais, sábio, quando ressalva o iminente risco à vida.

"É vedado ao médico efetuar qualquer procedimento médico sem o esclarecimento e o consentimento prévios do paciente ou de seu responsável legal, salvo em iminente perigo de vida" (art. 46 do Código de Ética Médica) – representa respeito à cidadania; não obstante, cria-se o potencial de lamentos sobre a privação da providência mais adiante, quando o que não foi cuidado vier a se tornar fator de iminente risco à vida, agora impedimento ético à prática da autonomia.

O imediatismo a respeito do prognóstico de sobrevida à morbidade, é, pois, variável da razão ética. Ocorre que nem sempre há consenso quanto a critérios para declarar o iminente risco à vida de um acaso da beira do leito. Os seguintes dois exemplos ilustram a questão.

Exemplo 1 – Portador de estenose aórtica é atendido em pronto-socorro em razão de terceiro episódio de síncope no período de seis meses; o gradiente transvalvar é de 100 mmHg e a dilatação pós-estenótica da aorta aproxima-se de um aneurisma. O paciente insiste na recusa a ser submetido à substituição valvar. O sabido risco de morte súbita que se associa à fase sintomática da estenose aórtica constitui critério de iminente risco à vida, com seus desdobramentos sobre o livre-arbítrio?

Exemplo 2 – Paciente com distúrbios metabólicos graves, disritmia ventricular e intensa farmacoterapia há meses inicia greve de fome; nos dias subseqüentes, observa-se hipopotassemia aquém de 3 mEq/l. Qual seria o nível de calemia que se aplicaria ao disposto no artigo 51 do Código de Ética Médica: "é vedado ao médico alimentar compulsoriamente qualquer pessoa em greve de fome que for considerada capaz, física e mentalmente, de fazer juízo perfeito das possíveis conseqüências de sua atitude. Em tais casos, deve o médico fazê-la ciente das prováveis complicações do jejum prolongado e, na hipótese de perigo de vida iminente, tratá-la".

A reunião de moléculas de hidrogênio e de oxigênio ora é água tranqüila ora é água revolta na beira do leito do rio; a reunião do biológico com o psicossocial ora é caso de livro ora é acaso da beira do leito do paciente.

Acasos e causos

Apresentamos, a seguir, seis acasos da beira do leito com enfoque principal na cardiologia.

Acaso 1 – ABC é um aposentado por invalidez que aos 47 anos de idade apresenta febre, atingindo picos de 38,50C. Ele recém-completou seis semanas de antibioticoterapia para Staphylococcus aureus.

O diagnóstico era endocardite em prótese implantada há cinco anos e explantada há cinco semanas em obediência ao caráter clinicocirúrgico da infecção.

A reoperação imediata é fortemente cogitada pela hipótese de infecção em atividade na nova prótese. A imagem da vegetação não esclarece, é a mesma do ecocardiograma realizado durante a antibioticoterapia.

Pela rotina do Serviço, aguarda-se a pesquisa de foco infeccioso extracardíaco, diagnóstico diferencial que, se descartado, autorizaria uma pronta reintervenção cardíaca.

Radiografia panorâmica dos dentes identifica duas imagens altamente sugestivas de foco infeccioso. A reoperação, que já havia sido comunicada ao paciente como iminente e que contara com apoio da equipe multiprofissional, é adiada. Paciente séptico e médico céptico anseiam pela constatação in loco do dentista. A infecção é confirmada e eliminada em duas sessões.

O termômetro clínico passa a ser a preciosa tecnologia necessária para o próximo passo: alta hospitalar ou centro cirúrgico.

A sucessão ininterrupta de registros aquém de 36,60 C após a eliminação do foco odôntico convenceu a equipe sobre a desnecessidade da reoperação cardíaca.

A boa evolução persistiu mês a mês e, 180 dias após a alta hospitalar, ABC é considerado clinicamente curado da infecção endocárdica.

Nesse período, ocorreram mais dois casos semelhantes de hipertemia imediata ao término do tratamento clinicocirúrgico de endocardite em prótese; ambos não apresentavam foco infeccioso extracardíaco e os achados da reoperação confirmaram a persistência da atividade infecciosa no coração.

Esse acaso da beira do leito ilustra a beneficência centrada na informação desde o paciente, e não numa organização mental simplificadora com base na maior probabilidade. Ele representa a unicidade que fala mais alto do que a estatística.

Acaso 2 – BCD e CDE são um casal de advogados, ambos com 29 anos de idade. Após três anos de casados, procuram aconselhamento familiar sobre o risco de gestação em portadora de cardiopatia. Eles foram informados de que, de fato, haveria chance de ocorrer descompensação cardíaca durante o gravidopuerperal. O marido indagou sobre a conveniência de uma correção cirúrgica prévia à gestação e recebeu, com evidente surpresa, a resposta de que não se recomendava o tratamento cirúrgico da insuficiência mitral por prolapso da valva mitral pela intenção de engravidar, em paciente em classe funcional I. O médico notou a insatisfação do casal ao final da consulta.

A situação evoluiu para conflito quando o casal, 15 dias depois, retornou e relatou que uma segunda opinião deu a entender que eles tinham o direito de exigir a operação e que o médico deveria ser responsabilizado por negligência, caso houvesse intercorrência gestacional.

Percebia-se que o marido estava mais exigente da intervenção do que a esposa, que confiava no seu cardiologista de há muitos anos, desde que os seus pais, muito assustados, a haviam levado para uma primeira consulta por causa de sopro cardíaco ouvido pelo médico do esporte. A confiança trouxera-a de volta após um duelo com a opinião contrária do marido.

A relação médico-paciente (casal) ficou tensa, o médico sabia como ver aquele momento, mas não podia entrever o futuro da gestação, que, de certa forma, estava sendo exigido. Até tentou algumas explicações sobre risco-benefício, compromissos com eventual prótese, anticoagulação etc., no entanto sem êxito. O objetivo de aconselhamento não prosperava.

O médico fez prevalecer a sua autonomia. Tendo por base a sua segurança profissional, domínio da ética e vivência em bioética, não se deixou convencer pela recomendação que lhe foi transmitida como tendo sido uma segunda opinião. Ele sabia o quanto uma segunda opinião é valorizada pelo paciente, mas estava seguro da sua primeira opinião.

No decorrer dos seguintes dois meses, o casal se desentendeu; o marido insistia que não iria "ter um filho com problemas", interligando indevidamente a situação cardíaca da esposa com a formação embrionária e, assim, revelando sua principal preocupação. A separação do casal aconteceu.

Dez meses após, a paciente retornou ao seu cardiologista. Ela estava grávida e o futuro marido mostrava uma postura otimista com o desenvolver da gestação. Em clima de superposição total de intuitos, resultou combinada a estratégia de acompanhamento cardiológico pré-natal.

No sexto mês da gravidez gemelar, a paciente entrou em edema agudo de pulmão. A correção cirúrgica da valvopatia mitral foi então proposta e logo efetuada, pós-operatório sem intercorrências materno-fetais. Mãe e filhos encontram-se saudáveis, três meses após o parto cesário e puerpério normal.

Por mais que subgrupos constituam casuísticas de pesquisa em busca de respostas mais exatas, comportamentos segundo a chamada natureza humana prevalecerão sobre estatísticas, em muitos acasos da beira do leito. A bioética clínica afigura-se, nessas circunstâncias de incertezas, como apoio de utilidade, eficácia e precaução no entrever da Medicina como ciência e como disciplina aplicada.

Cada beneficência, cada não-maleficência ao seu tempo. Mesma mulher, distintos maridos fizeram a diferença dos atendimentos. Mesma valvopatia, distintos momentos fizeram a diferença das condutas. Assim caminharam os acontecimentos com respeito à ética e atenção aos preceitos da bioética.

Acaso 3 – DEF é uma dona de casa com 40 anos de idade. Ela convive com o diagnóstico de endocardite infecciosa em atividade numa prótese valvar há seis anos. Na ocasião, ela se recusou a ser submetida a reoperação cardíaca.

DEF comparece à consulta com regularidade, já completou variados esquemas antibióticos e não deixa de tomar iniciativas à medida que se manifestam intercorrências. Após um acidente vascular embólico há dois anos, ela convive com seqüelas contando com flutuante apoio familiar.

Nesse esdrúxulo contexto, DEF tem sido acompanhada por único médico. Ele insiste em apontar os caminhos das boas práticas da cardiologia, ao mesmo tempo que presta assistência conforme desejada pela paciente – excelente aderência, menos operar.

A beneficência radical da correção cirúrgica, utilidade e eficácia presumidas para eliminar a infecção endocárdica, passou pelo crivo desses seis anos; o mau prognóstico sobre a sobrevida com tratamento clínico foi contestado pela realidade vivenciada, acréscimo de experiência proporcionado pelo respeito à autonomia. O acaso não invalida o científico, mas covalida a tolerância ao humano.

Verifica-se o pleno exercício da autonomia pela paciente, embora a negação a ser um "caso de livro" seja um alto preço sobre a gestão de sua vida. Relação médico-paciente ajustada aos moldes ditados por DEF, acordo imposto pela paciente ao seu médico, mas que a tornou dele dependente e páginas e páginas escritas no prontuário volumoso da paciente retratando o dia-a-dia do inusitado, palavras de salvaguarda a eventuais distorções futuras compõem esse acaso do livro da beira do leito. Ele não firma nenhuma "jurisprudência" técnica, é a exceção sobrevivente, o inédito que desafia, um oásis que não é ilusão porque fertilizado pela bioética.

O acaso de DEF é "o absurdo" que serve como referência quando nos sentimos "negligentes", não fazendo o que a maioria faria. Eventuais ímpetos de praticar de acordo com os conceitos estabelecidos, "para o bem do paciente", poderiam nos levar ao contraponto da imprudência.

Acaso 4 – EFG é um desempregado com 20 anos de idade que sobrevive pela solidariedade dos vizinhos. Ele é portador de valvopatia mitroaórtica que se manifesta como classe II. EFG está longe de casa, encaminhado a um Serviço sem contato prévio, para ser submetido a tratamento cirúrgico "urgente".

A rotina do Serviço invalidou a cogitação de operação imediata. O paciente alega vários problemas sociais, considera-se inválido para o trabalho e insiste em ser operado com base no que lhe haviam dito.

Estabelece-se um conflito entre a postura científica e a ideação do paciente. O paciente faz retornos constantes com evidente dissociação entre subjetividade que traz preocupação e objetividade cardiofuncional que se mostra estável.

Houve quem percebeu a presença de uma ambulância da cidade vizinha à do paciente e conseguiu a benfazeja carona de volta. EFG continuará, certamente, atribuindo a sua exclusão social à não-realização da operação cardíaca.

Quanto à beneficência/não-maleficência, a relação risco-benefício, segundo a rotina do Serviço, apontou para risco pequeno e benefício hemodinâmico alto, mas, como sói acontecer com a doença valvar, não exatamente benefício clínico; com relação à não-maleficência, pesou a expressiva probabilidade de calcificação das indispensáveis biopróteses corretivas no jovem EFG, perspectiva de reoperação em curto período de tempo; ademais, a ausência de recursos para segurança da anticoagulação oral, na região onde o paciente habita, desaconselhava a opção do uso de próteses metálicas.

Quanto à autonomia, houve uma exigência do paciente, pela sua visão de qualidade de vida. O médico valeu-se, por sua vez, da sua autonomia fundamentada nas boas práticas. Como reforço da decisão contou com o princípio da justiça, em sua vertente que privilegia pacientes que se encontram, de fato, clinicamente exigentes de tratamento cirúrgico imediato.

Implicações biopsicossociais de acasos da beira do leito como esse não costumam ser comentadas no livro de texto. Os impactos não podem, contudo, ser desconsiderados pela equipe de saúde que precisa tomar decisões clínicas. Eles constituem matéria-prima para o diálogo esclarecedor. A natureza multidisciplinar da bioética contribui para evitar os vácuos de comunicação que levam a incompreensões sobre o tecnicamente correto.

No acaso 3, prevaleceu a postura da paciente de não seguir a recomendação médica, ao passo que nesse acaso 4 não prevaleceu a opinião do paciente para que se fizesse contra a rotina do Serviço. É uma das nuanças da aplicação do princípio da autonomia, o que o paciente não aceita, definitivamente não se faz – acaso 3, e o que o paciente propõe, não obrigatoriamente se faz – acaso 4.

Acaso 5 – FGH é um empresário sexagenário que tem notado cansaço progressivo. Ele é informado de que o sintoma poderia ser justificado por duas causas: nível de hemoglobina sérica de 9g/dl e valvopatia mitral importante.

Endocardite infecciosa que uniria as manifestações é afastada e diagnostica-se leucemia aguda. Transfusão de sangue provoca edema agudo de pulmão.

Conclui-se que é válida a realização de correção cirúrgica da valvopatia mitral, apesar dos riscos impostos pela presença de pancitopenia importante e da restrição ao benefícioema médio-longo prazos em razão do prognóstico hematológico.

O ponto alto da decisão pela correção hemodinâmica foi o privilégio pela qualidade de vida durante a quimioterapia e a reposição sangüínea periódica.

Quarenta dias após o ato cirúrgico o paciente está em tratamento hematológico sem restrições do ponto de vista cardiovascular, conforme a estratégia planejada.

Não houve dificuldades de diagnóstico e o planejamento do tratamento da valvopatia, nesse acaso, contou com o benefício transoperatório da reposição hematológica.

O conflito maior foi quanto à extensão das informações sobre risco da cirurgia cardiovascular e prognóstico hematológico. A tática foi a da fragmentação da comunicação, os pormenores informados para a família e o preciso para o momento para o paciente. Houve mais aceitação da operação recomendada com o reforço do benefício para o tratamento da leucose do que escolha entre operar ou não operar, por parte do paciente.

Na primeira parte do planejamento terapêutico, a prioridade cardiológica, o resultado confirmou a beneficência presumida e os malefícios cogitados como risco cirúrgico puderam ser evitados ou corrigidos. A participação do paciente na decisão sobre o seu tratamento deu-se fundamentalmente por confiança de que seria a melhor maneira de fazer, apesar do número pequeno de acasos iguais existentes na experiência da cardiologia nacional e estrangeira.

No acaso 3, da paciente DEF, a qualidade de vida ficou em segundo plano, apesar da perspectiva da resolução definitiva do processo infeccioso cogitada pelo tratamento cirúrgico. Nesse acaso do paciente FGH, a relação risco-benefício parecia desfavorável numa visão holística, mas prevaleceu o compromisso com a qualidade de vida necessária para uma segunda etapa de tratamento.

Acaso 6 – GHI é um adolescente que, no dia em que completava 16 anos de idade, foi operado em razão de manifestação de insuficiência cardíaca classe funcional III/IV. A indicação cirúrgica foi o agravamento rapidamente progressivo de insuficiência mitral reumática pela ocorrência de endocardite infecciosa, hemocultura negativa, vegetação ecocardiográfica positiva.

O cirurgião confirma a impressão clínica ao preencher o campo do diagnóstico pós-operatório no relatório de cirurgia e assim covalida a imagem-ouro pré-operatória. O padrão-ouro da anatomia patológica, contudo, reluz distintamente: doença reumática em atividade, ausência de sinais de infecção.

Dose generosa de prednisona substituiu a dos antibióticos e a alta hospitalar se deu com o paciente em classe funcional I.

Houve conflitos do diagnóstico sindrômico com o etiopatogênico e da farmacologia específica com os mecanismos fisiopatológicos, mas nenhum conflito envolveu a terapêutica cirúrgica.

O privilégio pelo diagnóstico sindrômico foi o ponto alto da beneficência do bom diagnóstico-boa terapêutica desse acaso. A síndrome de insuficiência cardíaca costuma ter posição hierárquica superior para a conduta em relação à representada pela etiopatogenia do agravamento valvar. O padrão-ouro anatomopatológico restabeleceu os rumos da beneficência subseqüente pós-operatória, agora mais dependente da etiopatogenia.

Esse acaso alerta para a real abrangência da "a clínica é soberana e a imagem é poderosa", sinalizando a possibilidade de imagem-ouro falso-positiva, um estímulo para a não dispensa do padrão-ouro anatomopatológico, em muitas circunstâncias cirúrgicas.

A doença reumática é pouco lembrada no diagnóstico diferencial da imagem-ouro à modernidade tecnológica. É mister da bioética clínica contribuir para a compreensão dos dialetos brasileiros da beira do leito.

Potencial Conflito de Interesses

Declaro não haver conflitos de interesses pertinentes.

Artigo recebido em 21/04/06; revisado recebido em 24/04/06; aceito em 24/04/06.

  • Correspondência:

    Max Grinberg
    InCor - Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 44
    05403-000 - São Paulo, SP
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      18 Jan 2007
    • Data do Fascículo
      Dez 2006
    Sociedade Brasileira de Cardiologia - SBC Avenida Marechal Câmara, 160, sala: 330, Centro, CEP: 20020-907, (21) 3478-2700 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil, Fax: +55 21 3478-2770 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: revista@cardiol.br