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Qual a diretriz de hipertensão arterial os médicos brasileiros devem seguir? Análise comparativa das diretrizes brasileiras, européias e norte-americanas (JNC VII)

PONTO DE VISTA

Qual a diretriz de hipertensão arterial os médicos brasileiros devem seguir? Análise comparativa das diretrizes brasileiras, européias e norte-americanas (JNC VII)

Giovanio Vieira da Silva; Décio Mion Júnior; Marco Antônio Mota Gomes; Carlos Alberto Machado; José Nery Praxedes; Celso Amodeo; Fernando Nobre; Oswaldo Kohlmann Júnior

São Paulo, SP

Hospital das Clínicas da FMUSP e Comissão Permanente das IV Diretrizes Brasileiras de Hipertensão Arterial

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Décio Mion Júnior Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 255 Inst. Central do HC - 7º andar, s/ 7032 Cep 05403-000 - São Paulo - SP E-mail: deciomion@uol.com.br

Recentemente, novas diretrizes foram publicadas a respeito do manejo da hipertensão arterial, a brasileira (agosto/2002), a norte-americana (maio/2003) e a européia (junho/2003)1. Embora todas tenham sido baseadas nas melhores evidências disponíveis até o momento, existe uma considerável diferença entre elas, o que levanta a questão qual das recomendações estaria mais correta e, conseqüentemente, deveria ser adotada por médicos que lidam com hipertensão arterial, principalmente os não-especialistas.

Sem entrar em detalhes, basicamente as diferenças são maiores nas áreas de diagnóstico e classificação da hipertensão arterial, abordagem dos demais fatores de risco cardiovascular e escolha da terapia medicamentosa inicial para o paciente hipertenso. Estas particularidades serão discutidas mais profundamente a seguir.

Diagnóstico e classificação da hipertensão arterial - Antes de iniciarmos a discussão, vejamos as diferenças entre as classificações propostas pelas diretrizes brasileiras, européias e norte-americanas (tab. I). A primeira dúvida que ocorre ao analisarmos as classificações é a diagnóstica: afinal, o que é pressão arterial normal?

Primeiramente, semanticamente falando, o termo normal pode ser compreendido de várias maneiras, indo desde a definição estatística baseada na distribuição de uma variável biológica contínua como a pressão arterial na população, neste caso o termo normal teria o significado de o mais comum/usual, até significados como o mais desejado/ótimo, nesta situação a normalidade da pressão arterial seria encarada como aquela que representasse o menor risco cardiovascular para um indivíduo4,5. Este último enfoque nos parece o mais apropriado para estabelecer critérios de normalidade e classificação da pressão arterial.

Dentro desta visão e considerando-se a contínua relação entre o nível da pressão arterial e o risco cardiovascular, qualquer definição e classificação de hipertensão é meramente arbitrária4,6.

As diretrizes brasileiras e européias, baseadas no fato que o risco cardiovascular aumenta proporcionalmente com a elevação da pressão arterial a partir de níveis de 115/75 mm Hg, considera como ótima a pressão arterial <120/80 mmHg6. Estes mesmos níveis são denominados como pressão arterial normal pelo JNC VII. Até aí, com a exceção da utilização de diferentes nomenclaturas para se definir os mesmos níveis pressóricos, não há diferença significativa entre os consensos.

A polêmica e as discussões se dão a partir deste ponto. O motivo de tal alvoroço, tanto entre médicos como, em especial, na população de uma maneira geral, foi a inclusão do termo pré-hipertensão, englobando as faixas de pressão arterial compreendidas entre 120 -139 mmHg de pressão sistólica e 80-89 mmHg de pressão diastólica, sem ter, efetivamente, novos dados epidemiológicos que justificassem mudanças na classificação diagnóstica.

Embora o objetivo do uso desta nomenclatura tenha sido o de alertar a população e os médicos a respeito do problema hipertensão arterial, como frisa o Dr. Chobanian, coordenador do JNC VII, a polêmica gerada pelo emprego do termo foi grande entre a comunidade científica internacional, já que o mesmo não se encontra alicerçado em evidência científica alguma7.

Nem todos os pacientes dentro desta faixa de pressão arterial irão desenvolver hipertensão arterial, aliás, a grande maioria não o irá, conforme tabela II, cujos resultados são fruto de uma reanálise dos dados do estudo de Framingham8. Por exemplo, um adulto de meia idade entre 35 e 64 anos tem apenas 17% de probabilidade de desenvolver hipertensão arterial nos próximos 4 anos se partir de uma pressão arterial basal de 128/84 mmHg.

Seguindo este raciocínio, as diretrizes brasileiras e européias são muito mais precisas e fundamentadas cientificamente. Dentro desta faixa de pressão arterial, são colocadas duas subdivisões, normal (120-129/80-84 mmHg) e normal alta/limítrofe (130-139/85-89 mmHg), visto que a chance de um indivíduo tornar-se hipertenso entre esses dois grupos é completamente diferente, tendo as pessoas do grupo normal alta duas vezes mais risco de desenvolver hipertensão arterial do que as do grupo normal, independentemente da idade (tab. II). Além do mais, mesmo pequenas variações dos nível pressóricos nesta faixa, anteriormente considerada como dentro da normalidade, implicam em risco cardiovascular diferentes (tab. III)9.

Talvez a síntese mais apropriada da confusão de termos advindas após a publicação do JNC VII tenha sido a feita pelo Dr. Giuseppe Mancia, coordenador do consenso europeu que, de maneira até certo ponto irônica, afirma que classificar um paciente de pré-hipertenso seria o mesmo que chamar um indivíduo sadio de pré-doente, com todas as implicações decorrentes do uso, por assim dizer, "iatrogênico" da palavra10.

Abordagem dos demais fatores de risco cardiovascular - Talvez a principal diferença entre os consensos pareça-nos ser a pouca atenção dada à quantificação do risco cardiovascular global no documento do JNC VII, um retrocesso quando comparada à versão anterior do documento11. As diretrizes brasileiras e européias, também neste aspecto, são mais enfáticas na importância da análise do paciente como um todo.

Considerando-se que o objetivo primordial do tratamento da hipertensão arterial é reduzir a morbi-mortalidade cardiovascular, não é racional que se aborde um paciente baseado, apenas, na sua pressão arterial isoladamente.

A presença dos demais fatores de risco tem implicância não só na classificação do paciente como hipertenso ou não, mas também na tomada de decisões terapêuticas. Um paciente diabético com 138/84 mm Hg não tem simplesmente pressão arterial normal alta ou é um pré-hipertenso, pelo contrário, devido ao aumento substancial de risco cardiovascular imputado pela presença do diabetes, ele deve ser considerado hipertenso e manuseado como tal, inclusive farmacologicamente (tab. IV, adaptada da IV Diretrizes Brasileiras de Hipertensão1).

Portanto, utilizando-se esta estratégia proposta pelas diretrizes brasileira e européia, entende-se que não existe um valor pré-determinado de pressão arterial para classificar um paciente em normotenso ou hipertenso. A decisão entre iniciar o tratamento medicamentoso ou optar apenas por orientações, quanto à mudança de estilo de vida, deve ser flexível, dependendo não só dos níveis pressóricos per se, mas sim da conjuntura destes valores com os demais fatores de risco cardiovascular.

Terapêutica medicamentosa inicial - Todos os consensos orientam a utilização de determinada classe de droga na terapêutica preferencial de um paciente hipertenso com alguma condição especial, particularmente quando da existência de uma co-morbidade, como por exemplo, beta-bloqueadores na insuficiência coronariana ou inibidores da enzima de conversão da angiotensina nos pacientes com disfunção ventricular esquerda.

A divergência está na escolha da droga inicial para tratamento do paciente hipertenso não-complicado. O consenso norte-americano, baseado nos resultados do estudo ALLHAT, recomenda os diuréticos tiazídicos como drogas de eleição neste tipo de situação, visto serem tão efetivos quanto as demais classes de drogas no controle da hipertensão arterial, e talvez, até mesmo um pouco superiores na prevenção de alguns eventos cardiovasculares, como por exemplo, acidente vascular encefálico, sem falar que o custo de um tratamento anti-hipertensivo baseado no uso de um tiazídico é infinitamente menor quando comparado a qualquer outro esquema disponível12.

Nesta questão, tanto a diretrizes brasileiras quanto as européias, são mais parcimoniosas na escolha do anti-hipertensivo. Apesar das inúmeras e grandes evidências que todas as principais classes de drogas hipotensoras, a saber, diuréticos, beta-bloquadores, bloqueadores do canal de cálcio, inibidores da enzima de conversão da angiotensina e antagonista da angiotensina II, serem efetivas e seguras no tratamento da hipertensão arterial, estes consensos não estabelecem uma orientação específica na escolha inicial da terapêutica medicamentosa inicial, permitindo ao médico optar pelo anti-hipertensivo, cujo uso ele tenha mais experiência ou que haja disponibilidade no momento.

Sem levar em consideração o problema de custo quando se opta por esta última abordagem, não parece racional abrir mão de todos os trabalhos disponíveis sobre o benefício das demais classes de drogas anti-hipertensivo disponíveis para o manejo dos pacientes hipertensos, em favor de apenas uma classe, recomendação esta baseada no resultado de um único trabalho, nem sempre isento de críticas, que, diga-se de passagem, não são poucas13.

Perspectivas - Abordagens diferentes, em relação ao mesmo problema são situações freqüentes na prática clínica, reflexo bem representado nestes comentários sobre as discrepâncias existentes entre os vários consensos sobre hipertensão arterial.

Contudo, como na discussão de um caso clínico, a prática é salutar, visto que a troca de idéias acaba gerando novos pontos de vista, quando não os mais corretos, ao menos colocam em dúvidas verdades até então inquestionáveis, alavancando a evolução da medicina.

Embora tenhamos que respeitar a opinião dos especialistas norte-americanos contida no JNC VII, a mesma não deve ser vista como dogmática, pois, independentemente, do conhecimento científico produzido nos Estados Unidos ter grande impacto na área médica, muitas vezes diferenças culturais podem determinar a implantação de atitudes mais ativas (action-oriented) no combate a um problema. Com certeza, o intuito do JNC VII não foi o de alarmar as pessoas despropositadamente, mas sim tentar induzir na população de pré-hipertensos a adoção de hábitos de vida mais saudáveis.

Portanto, as diretrizes nacionais, elaboradas por médicos especialistas brasileiros, parecem-nos ser a melhor alternativa para a comunidade médica do país, objetivando alcançar assim, de uma maneira geral, um manejo mais adequado dos pacientes hipertensos.

Referências

1. IV Diretrizes Brasileiras de Hipertensão Arterial. 2002.

2. Chobanian AV, Bakris GL, Black HR, et al. The Seventh Report of the Joint National Committee on Prevention, Detection, Evaluation, and Treatment of High Blood Pressure: the JNC 7 report. JAMA. 2003; 289:2560-72.

3. Guidelines Committee. 2003 European Society of Hypertension – European Society of Cardiology guidelines for the management of arterial hypertension. J Hypertens. 2003; 21:1011-53.

4. Freitag MH, Vasan R. What is normal blood pressure? Current Opin Nephrol Hypertens. 2003; 2:285-92.

5. Kannel WB, Vasan RS, Levy D. Is the relation of systolic blood pressure to risk of cardiovascular disease continuos and graded, or are there critical values?. Hypertension. 2003; 42: 453-56.

6. Prospective Studies Collaboration. Age-specific relevance of usual blood pressure to vascular mortality: a meta-analisys of individual data for one million adults in 61 prospective studies. Lancet. 2002; 360:1903-13.

7. Brookes L. The response at ASH to the new JNC 7 guidelines. www.medscape.com/viewarticle/455929 acessado em 04/06/2003.

8. Vasan RS, Larson MG, Laip EP, Kannel WB, Levy D. Assessement of frequency of progression to hypertension in non-hypertensive participants in the Framingham Heart Study: a cohort study. Lancet. 2001; 358:1682-6.

9. Vasan RS, Larson MG, Leip EP, et al. Impact of high-normal blood pressure and risk of cardiovascular disease. N Engl J Med. 2001; 345:1291-97.

10. Mancia G. Discusses the 2003 ESH/ESC hypertension guidelines. www.medscape.com/viewprogram/2520–ptn acessado em 2/7/2003.

11. The sixth report of the Joint National Committee on prevention, detection, evaluation, and treatment of high blood pressure Arch Intern Med. 1997; 157:2413-46.

12. The ALLHAT Officers and Coordinators for the ALLHAT Collaborative Research Group. Major Outcomes in High-Risk Hypertensive Patients Randomized to Angiotensin-Converting Enzyme Inhibitor or Calcium Channel Blocker vs Diuretic: The Antihypertensive and Lipid-Lowering Treatment to Prevent Heart Attack Trial (ALLHAT). JAMA. 2003; 288:2981-97.

13. Siragy HM. ALLHAT: Do we have all the answers? Curr Hypertens Rep. 2003; 5:293-4.

Recebido para Pulbicação em 02/12/2003

Aceito em 9/03/2004

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    Décio Mion Júnior
    Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 255
    Inst. Central do HC - 7º andar, s/ 7032
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      18 Ago 2004
    • Data do Fascículo
      Ago 2004
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