O Desafio de Tornar a Ressonância Cardíaca uma Realidade Global

Diagnóstico por Imagem/tendências; Espectroscopia de Ressonância Magnética/métodos; Doenças Cardiovasculares/mortalidade; Morte Súbita; Cardiomiopatas; Fibrose Endomiocárdica; Isquemia Miocárdica; Volume Sistólico

Apesar de redução substancial nas taxas de mortalidade cardiovascular ajustada por idade nas últimas décadas, a doença cardiovascular continua sendo a causa mais comum de morte.¹ Estudos estimam que a morte súbita cardíaca seja responsável por aproximadamente 50% de todos os óbitos por causas cardiovasculares, sendo as taquicardias ventriculares com degeneração para fibrilação ventricular e assistolia a sequência fatal de eventos fisiopatológicos mais comum.²

O árduo trabalho realizado pelos autores do artigo³ publicado nos Arquivos Brasileiros de Cardiologia ilustra o papel da ressonância magnética cardíaca (RMC) para a elucidação etiológica dos eventos de morte súbita encontrados na prática clínica. Além das já esperadas doenças de Chagas e isquêmica, uma grande variedade de outros diagnósticos foram reconhecidos: miocardites, cardiomiopatia hipertrófica, cardiomiopatia dilatada, a cardiopatia arritmogênica, distrofia muscular, cardiomiopatia hipertensiva, metástases, miocárdio não compactado, e cardiomiopatia adrenérgica (Síndrome de Takotsubo). A RMC foi conclusiva em mais de 90% dos casos e é uma ferramenta chave para a exclusão de cardiopatia estrutural e atribuição do evento fatal a causas extracardíacas.

Por outro lado, o estudo mostrou o quanto estamos longe de bons critérios para prevenção de morte súbita cardíaca pela fração de ejeção do ventrículo esquerdo (FEVE): apenas um terço dos pacientes apresentavam uma FEVE ≤ 35%, e quase 40% dos indivíduos apresentavam uma FEVE > 50%. Não é de hoje que os estudos indicam que a FEVE por si só não é um critério suficiente para a identificação adequada dos pacientes que mais se beneficiam do CDI.⁴ Portanto, nos últimos anos, esforços têm sido feitos para identificar novos marcadores capazes de refinar a estratificação prognóstica da morte súbita. A análise genética e a ressonância magnética parecem ser ferramentas extremamente úteis para o aprimoramento desse processo.⁵

Recentemente, a Sociedade Brasileira de Cardiologia atualizou suas diretrizes sobre dispositivos cardíacos eletrônicos implantáveis⁶ e, embora tenha mantido a FEVE ≤ 35% como parâmetro principal para indicação de cardioversor-desfibrilador implantável (CDI) na prevenção primária de morte súbita, novas ferramentas foram incorporadas neste processo, em especial para as cardiopatias não-isquêmicas, como a detecção de fibrose pela RMC ou de alterações genéticas de alto risco por testes moleculares.

A fibrose miocárdica detectada pela RMC com a técnica de realce tardio com gadolínio esteve presente em aproximadamente 70% dos casos de morte súbita do presente estudo,³ e é de fato um forte preditor de arritmia ventricular e morte súbita, tanto na cardiopatia isquêmica quanto na não isquêmica.⁷-¹¹ Especialmente na cardiopatia dilatada não isquêmica, a presença de realce tardio em pacientes com FEVE > 35% ofereceu maior risco arrítmico do que naqueles pacientes com FEVE 21-35% mas sem realce tardio, re-estratificando o risco, portanto, em um terço dos casos.¹²

A ressonância cardíaca é uma modalidade de imagem cardíaca multifunção, com uma grande variedade de informações, usada para avaliação de morfologia, função, caracterização tecidual, perfusão, fluxos e cicatrizes/fibroses. A pesquisa de isquemia miocárdica pela RMC tornou-se uma parte importante do arsenal de imagem cardíaca, pois demonstrou ser mais precisa do que a SPECT e oferecer excelentes informações prognósticas.¹³,¹⁴ Na avaliação das cardiomiopatias, pode ser uma técnica importante para poder excluir a doença arterial coronariana como causa básica. No entanto, estudos recentes sugerem que o realce tardio com gadolínio pode ser suficiente para estabelecer a etiologia da insuficiência cardíaca na maioria das vezes.¹⁵

Nos últimos anos presenciamos uma avalanche de artigos científicos de ressonância cardíaca sobre a utilidade dos mapas paramétricos, seja no acometimento cardíaco precoce de diferentes patologias ou no diagnóstico etiológico específico, especialmente do Mapa T1 no diagnóstico diferencial de fenótipos hipertróficos como a Amiloidose Cardíaca ou a Doença de Anderson Fabry.¹⁶-¹⁸No entanto, essas técnicas requerem software avançado, bem como tempo significativo para adquirir dados pré e pós-contraste, e o uso desta tecnologia em países em desenvolvimento é caro e consome tempo de aquisição e pós-processamento.

Mesmo com tanta possibilidade de informação, no entanto, a RMC ainda é pouco utilizada, principalmente devido à sua falta de disponibilidade, por ser uma técnica considerada complicada, lenta, de alto custo e, em alguns casos em que a compreensão da técnica é limitada, pode não agregar ao arsenal diagnóstico. Diante deste quadro, o estudo INCA¹⁹ realizado em Lima, no Peru, e posteriormente replicado em outros países em desenvolvimento,²⁰ demonstrou ser possível realizar o exame em menos de 30 minutos, reduzindo em 30-60% seus custos, mas sem perder seu alto impacto no manejo das cardiopatias.

Neste sentido, o esforço pela implementação e difusão de protocolos mais rápidos de ressonância cardíaca aumentariam o acesso ao método, oferecendo informação precisa para intervenções capazes de reduzir a morbimortalidade cardiovascular. A ressonância cardíaca precisa ser mais rápida, fácil e econômica para entrega global e sustentável.

Referências

• ¹
  Malta DC, Teixeira R, Oliveira GMM, Ribeiro ALP. Cardiovascular Disease Mortality According to the Brazilian Information System on Mortality and the Global Burden of Disease Study Estimates in Brazil, 2000-2017. Arq Bras Cardiol. 2020 Aug 28;115(2):152-60. doi: 10.36660/abc.20190867.
  » https://doi.org/10.36660/abc.20190867
• ²
  Huikuri HV, Castellanos A, Myerburg RJ. Sudden Death Due to Cardiac Arrhythmias. N Engl J Med. 2001;345(20):1473-82. doi:10.1056/nejmra000650
  » https://doi.org/10.1056/nejmra000650
• ³
  Marçal PC, Braggion-Santos MF, Wada DT, Santos MK, Moreira HT, Volpe GJ, et al. Cardiac Magnetic Resonance as an Etiological Diagnosis Tool in Recovered Sudden Cardiac Death or Unstable Ventricular Arrhythmia Patients. Arq Bras Cardiol. 2023; 120(4):e20220411
• ⁴
  Buxton AE, Lee KL, Hafley GE, Pires LA, Fisher JD, Gold MR, et al., MUSTT Investigators. Limitations of ejection fraction for prediction of sudden death risk in patients with coronary artery disease: lessons from the MUSTT Study. J Am Coll Cardiol. 2007 Sep 18;50(12):1150-7. doi: 10.1016/j.jacc.2007.04.095.
• ⁵
  Rizzello V. Selection of patients eligible for implantable cardioverter defibrillator: beyond left ventricular ejection fraction. Eur Heart J.2022;24 (Suppl 1);1139-42. doi: 10.1093/eurheartjsupp/suac087.
• ⁶
  Teixeira RA, Fagundes AA, Baggio Junior JM, Oliveira JC, Medeiros PTJ, Valdigem BP, et al, Brazilian Guidelines for Cardiac Implantable Electronic Devices - 2023. Arq Bras Cardiol. 2023 Jan 23;120(1):e20220892. doi: 10.36660/abc.20220892..
• ⁷
  Ganesan AN, Gunton J, Nucifora G, McGavigan AD, Selvanayagam JB. Impact of Late Gadolinium Enhancement on mortality, sudden death and major adverse cardiovascular events in ischemic and nonischemic cardiomyopathy: A systematic review and meta-analysis. Int J Cardiol. 2018 Mar 1;254:230-7. doi: 10.1016/j.ijcard.2017.10.094.
• ⁸
  Volpe GJ, Moreira HT, Trad HS, Wu KC, Braggion-Santos MF, Santos MK, et al. Left Ventricular Scar and Prognosis in Chronic Chagas Cardiomyopathy. J Am Coll Cardiol.2018;72:2567-76. Doi:10.1016/j.jacc.2018.09035
  » https://doi.org/10.1016/j.jacc.2018.09035
• ⁹
  Senra T, Ianni BM, Costa ACP, Mady C, Martinelli-Filho M, Kalil-Filho R, Rochitte CE. Long-Term Prognostic Value of Myocardial Fibrosis in Patients With Chagas Cardiomyopathy. J Am Coll Cardiol. 2018;72:2577-87. Doi:10.1016/j.jacc.2018.08.2195
• ¹⁰
  Greenwood JP, Herzog BA, Brown JM, Everett CC, Nixon J, Bijsterveld P, et al. Prognostic Value of Cardiovascular Magnetic Resonance and Single-Photon Emission Computed Tomography in Suspected Coronary Heart Disease: Long-Term Follow-up of a Prospective, Diagnostic Accuracy Cohort Study. Ann Intern Med. 2016 Jul 5;165(1):1-9. doi: 10.7326/M15-1801.
• ¹¹
  Gentile P, Merlo M, Peretto G, Ammirati E, Sala S, Della Bella P, et al. Post-discharge arrhythmic risk stratification of patients with acute myocarditis and life-threatening ventricular tachyarrhythmias. Eur J Heart Fail.2021;23(12):2045-54. Doi:10.002/ejhf.2288
  » https://doi.org/10.002/ejhf.2288
• ¹²
  Di Marco A, Brown PF, Bradley J, Nucifora G, Claver E, de Frutos F, et al. Improved Risk Stratification for Ventricular Arrhythmias and Sudden Death in Patients With Nonischemic Dilated Cardiomyopathy. J Am Coll Cardiol. 2021 Jun 15;77(23):2890-905. doi: 10.1016/j.jacc.2021.04.030. PMID: 34112317.
• ¹³
  Greenwood JP, Maredia N, Younger JF, Brown JM, Nixon J, Everett CC, et al. Cardiovascular magnetic resonance and single-photon emission computed tomography for diagnosis of coronary heart disease (CE-MARC): a prospective trial. Lancet. 2012 Feb 4;379(9814):453-60. doi: 10.1016/S0140-6736(11)61335-4.
• ¹⁴
  Lipinski MJ, McVey CM, Berger JS, Kramer CM, Salerno M. Prognostic value of stress cardiac magnetic resonance imaging in patients with known or suspected coronary artery disease: a systematic review and meta-analysis. J Am Coll Cardiol. 2013 Aug 27;62(9):826-38. doi: 10.1016/j.jacc.2013.03.080.
• ¹⁵
  Gulsin GS, Shetye A, Khoo J, Swarbrick DJ, Levelt E, Lai FY, et al. Does stress perfusion imaging improve the diagnostic accuracy of late gadolinium enhanced cardiac magnetic resonance for establishing the etiology of heart failure? BMC Cardiovasc Disord. 2017 Apr 8;17(1):98. doi: 10.1186/s12872-017-0529-y.
• ¹⁶
  Haaf P, Garg P, Messroghli DR, Broadbent DA, Greenwood JP, Plein S. Cardiac T1 Mapping and Extracellular Volume (ECV) in clinical practice: a comprehensive review. J Cardiovasc Magn Reson. 2016 Nov 30;18(1):89. doi: 10.1186/s12968-016-0308-4.
• ¹⁷
  Ferreira VM, Piechnik SK, Robson MD, Neubauer S, Karamitsos TD. Myocardial tissue characterization by magnetic resonance imaging: novel applications of T1 and T2 mapping. J Thorac Imaging. 2014 May;29(3):147-54. doi: 10.1097/RTI.0000000000000077.
• ¹⁸
  Andrade Gomes HJ, de Padua Vieira AV, Nacif MS. The Value of T1 Mapping Techniques in the Assessment of Myocardial Interstitial Fibrosis. Magn Reson Imaging Clin N Am. 2019 Aug;27(3):563-74. doi: 10.1016/j.mric.2019.04.007.
• ¹⁹
  Menacho K, Ramirez S, Segura P, Nordin S, Abdel-Gadir A, Illatopa V, et al. INCA (Peru) Study: Impact of Non-Invasive Cardiac Magnetic Resonance Assessment in the Developing World. J Am Heart Assoc. 2018 Sep 4;7(17):e008981. doi: 10.1161/JAHA.118.008981.
• ²⁰
  Menacho KD, Ramirez S, Perez A, Dragonetti L, Perez de Arenaza D, Katekaru D, et al. Improving cardiovascular magnetic resonance access in low- and middle-income countries for cardiomyopathy assessment: rapid cardiovascular magnetic resonance. Eur Heart J. 2022 Jul 7;43(26):2496-507. doi: 10.1093/eurheartj/ehac035.

• Minieditorial referente ao artigo: Ressonância Magnética Cardíaca como Ferramenta Diagnóstica Etiológica em Pacientes Recuperados de Morte Súbita Cardíaca ou Arritmias Ventriculares Instáveis

Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  21 Abr 2023
• Data do Fascículo
  2023