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Caso 2/ 98 - Instituto do Coração do Hospital das Clínicas - FMUSP

Correlação Anatomoclínica

Correlação Anatomoclínica

(Caso 2/ 98 - Instituto do Coração do Hospital das Clínicas - FMUSP)

Mulher de 81 anos de idade procurou atendimento médico no Hospital em razão de dor epigástrica com irradiação para região lombar de três dias de duração.

A paciente sabia ser portadora de hipertensão arterial (HA) sistêmica de longa data; fazia uso de enalapril 5mg, nifedipina 30mg, hidroclorotiazida 50mg diários. Há 11 anos apresentou dor torácica, tendo sido hospitalizada e recebendo informação diagnóstica de ter sofrido angina de peito.

Há três anos apresentou dispnéia que, em duas semanas, passou a ocorrer em repouso e em decúbito horizontal; negou história de dor precordial, náuseas, vômitos e sudorese profusa.

O exame físico revelou pulso regular, freqüência de 90bpm, pressão arterial (PA) 160x96mmHg e freqüência respiratória 22 incursões por minuto. O exame dos pulmões, coração e abdome foi normal. Não havia edema de membros inferiores.

O eletrocardiograma (ECG) revelou ritmo sinusal, freqüência de 115bpm, SÂQRS 0º para trás, sobrecarga atrial esquerda, diminuição de forças septais e alterações difusas do segmento ST e da onda T (fig. 1).


A radiografia de tórax revelou cardiomegalia de +++/4+.

Outros exames laboratoriais são apresentados na tabela I.

O ecocardiograma revelou hipocinesia difusa discreta de ventrículo esquerdo (VE) e fração de ejeção de 62%. A tomografia de crânio revelou atrofia cortical cerebral bilateral.

A paciente foi hospitalizada e evoluiu com vários episódios de PA de até 240x140mmHg.

Foram feitos os diagnósticos de crise hipertensiva, cardiopatia hipertensiva e insuficiência renal.

Foram administrados, inicialmente, nitroprussiato de sódio por via endovenosa por três dias, seguido de 60mg de propranolol, 150mg de hidralazina, 80mg de furosemida, 120mg dinitrato de isossorbida e 1500mg de alfametildopa diários.

Recebeu alta no 11º dia de hospitalização e foi encaminhada para avaliação nefrológica.

Um ano depois procurou novamente atendimento médico por dor precordial de 1h de duração.

O exame físico revelou pulso irregular com freqüência de 88bpm, PA 110x80mmHg. O exame dos pulmões, coração e abdome foi normal. Foi detectada diminuição da amplitude dos pulsos em membros inferiores.

O ECG revelou ritmo sinusal e extra-sístoles ventriculares freqüentes com morfologia de bloqueio da divisão ântero-superior do ramo esquerdo e bloqueio de ramo direito. Havia infradesnivelamento de segmento ST de 5mm e ondas T negativas em V2 e V3 e sobrecarga de VE (fig. 2). No dia seguinte, o ECG revelou bloqueio atrioventricular do 1º grau, PR de 0,24s, desaparecimento do infradesnivelamento de segmento ST de V2 V3 aparecimento de infradesnivelamento em V4 e V5.e supradesnivelamento em aVR e V1.


Foi feito o diagnóstico de infarto do miocárdio sem onda Q. Os exames laboratoriais são apresentados na tabela I. O valor máximo da concentração da fração MB da creatinofosfoquinase foi 60U/L.

No dia da hospitalização, a paciente foi submetida a estudo hemodinâmico (tab. II) e a cineangiocoronariografia. Foram detectadas na artéria coronária esquerda, oclusão de ramo interventricular anterior, lesão proximal de 90% e distal de 90% no ramo circunflexo, e irregularidades na artéria coronária direita.

Na evolução apresentou três episódios de crise hipertensiva e edema agudo de pulmão e houve necessidade de intubação orotraqueal para suporte ventilatório. No 4º dia de internação apresentou dor precordial e edema agudo de pulmão. O ECG revelou acentuação do infradesnivelamento de segmento ST de V3 a V5 (fig. 3).


Foi submetida a angioplastia transluminal percutânea da lesão proximal do ramo circunflexo. A intervenção foi considerada bem sucedida, passando a lesão de 90% para 40%.

Houve sangramento intenso, com necessidade de reposição sangüínea, e hematoma na região inguinal direita depois da angioplastia. Foi realizada a exploração cirúrgica do local. No ato operatório foi encontrado pseudoaneurisma da artéria femoral. Foi drenado hematoma e feita plástica da artéria.

O ecocardiograma revelou diâmetro diastólico de VE de 51mm, diâmetro sistólico de 33mm e fração de ejeção de VE de 0,72. A espessura do septo e da parede posterior era 10mm. A aorta mediu 30mm e o átrio esquerdo 38mm. Havia hipocinesia da parede inferior do VE e insuficiência mitral discreta.

Recebeu alta hospitalar com prescrição de 40mg de furosemida, 120mg de dinitrato de isossorbida, 100mg de apresolina e 100mg de ácido acetil-salicílico diários.

Em consultas médicas subseqüentes, a paciente estava assintomática. A PA foi 170x110mmHg, e 160x106mmHg.

Na evolução apresentou dor epigástrica com irradiação para região lombar, bilateral, por três dias. Negava vômitos e diarréia, e o uso de antiácidos não melhorava a dor. Procurou atendimento médico.

O exame físico revelou paciente em bom estado geral, pulso regular com freqüência de 100bpm, PA de 200x 100mmHg. O exame dos pulmões revelou diminuição do murmúrio vesicular em bases de ambos os hemitórax e diminuição de frêmito tóraco-vocal nas mesmas regiões. O exame do coração revelou sopro sistólico em borda esternal esquerda alta. O exame do abdome foi normal. Não havia edema de membros inferiores. Os pulsos eram simétricos.

O ECG revelou ritmo sinusal, freqüência de 100bpm, SÂQRS 0º para trás, sobrecarga atrial esquerda, sobrecarga ventricular esquerda e discretas alterações do segmento ST e onda T.

A radiografia do tórax revelou alargamento do mediastino.

A tomografia do tórax revelou dilatação fusiforme de segmentos ascendente e descendente de aorta torácica com presença de trombos e calcificações murais. Não havia sinais de dissecção de aorta. A tomografia de abdome revelou dilatação fusiforme de aorta que era tortuosa com calcificações e trombos murais. Não havia sinais sugestivos de dissecção ou rotura de aorta.

No dia seguinte à noite, houve acentuação súbita da dor lombar com hipotensão arterial seguida de parada cardíaca em dissociação eletromecânica e faleceu.

Discussão

Aspectos clínicos - O caso em análise é de uma portadora de HA grave, com comprometimento de vários órgãos alvo, que representam fatores de mau prognóstico. Na última vez que procurou o Serviço, foi diagnosticado aneurisma fusiforme de aorta tóraco-abdominal e a sua rotura parece ser a principal causa mortis nessas circunstâncias.

A HA é o principal fator de risco primário para doenças cardíacas e cérebro-vasculares. A doença cardíaca hipertensiva pode ser definida com a resposta do coração à sobrecarga imposta ao VE pelo progressivo aumento da PA e da resistência vascular periférica total. Embora a resposta do coração, por vezes, pareça desproporcional ao nível da PA, ela é primariamente o resultado da sobrecarga hemodinâmica.

A HA pode causar ou estar relacionada a várias manifestações cardíacas, dentre as quais a hipertrofia ventricular esquerda (HVE), a insuficiência cardíaca (IC), as arritmias cardíacas e doença isquêmica miocárdica 1.

Na presença de HVE, a mortalidade por doença cardiovascular é aumentada em oito vezes e a por doença coronariana em seis 2. Esse excesso de risco não pode ser explicado simplesmente pelo aumento da PA, dos níveis de colesterol, do hábito de fumar e da idade. Embora a causa da morte súbita não possa ser elucidada facilmente, é inequívoca sua relação com o processo aterosclerótico, quer o evento terminal seja isquêmico ou arrítmico. Há evidências de que a incidência de infarto do miocárdio assintomático ou não reconhecido seja três vezes maior em portadores de HA 2,3.

O risco de doença cardiovascular aumenta proporcionalmente com o grau de hipertrofia. A ocorrência de sinais de HVE diagnosticada no ECG, o aumento de voltagem associado a distúrbios da repolarização ventricular, é fator preponderante na redução da expectativa de vida. Cinco anos após o seu surgimento, a taxa de mortalidade é de 33% para os homens e 21% para as mulheres. A presença de sobrecarga de câmaras direitas em indivíduo com HVE aumenta o risco de morte súbita de três a cinco vezes 1-3.

As arritmias ventriculares ocorrem com freqüência na presença de HVE. Os mecanismos dessas arritmias ainda não foram esclarecidos, porém sabe-se hoje que estão mais ligados ao processo hipertrófico e à presença de fibrose do que à doença isquêmica coronária ou hipocalemia induzida por diuréticos 1,4.

A HA de longa duração acelera a progressão da aterosclerose coronariana e, uma vez presente, determina um maior consumo miocárdico.

Os aneurismas de aorta abdominal são mais comuns que os de aorta torácica, sua incidência aumenta após 55 anos nos homens e após os 70 anos nas mulheres. A etiologia aterosclerótica é a mais comum e a localização infra-renal é a que predomina.

A maioria dos aneurismas não provocam sintomas e são descobertos pelo exame físico de rotina. Nos pacientes sintomáticos, a dor é a queixa mais freqüente, geralmente em região hipogástrica ou lombar baixa. A expansão e a tendência à rotura são precedidas de aparecimento ou piora da dor, com início súbito, constante e intensa no abdome baixo e região lombar, às vezes com irradiação para virilha, nádegas e pernas.

A rotura aguda está associada a início abrupto da dor lombar e abdominal, e a maioria dos pacientes tem massa palpável pulsátil abdominal e apresenta hipotensão arterial.

A principal intercorrência do aneurisma de aorta é a rotura. Ocorre 60% de mortalidade antes do atendimento médico e 50% no ato cirúrgico. O risco de rotura aumenta com o tamanho do aneurisma. Até 4,0cm há de 0 a 2% de risco de rotura em dois anos, e mais de 5,0cm há 22% de risco de rotura no mesmo período; 15 a 20% dos aneurismas aumentam rapidamente (+ de 0,5cm/ano). Contudo, o ritmo de expansão é variável.

A recomendação da Sociedade de Cirurgia Vascular e da Sociedade Internacional de Cirurgia Cardiovascular é que a cirurgia eletiva para aneurisma de aorta abdominal deva ser feita quando este atinge 4,0cm ou mais de diâmetro, embora muitos outros cirurgiões ainda considerem 5,0cm ou mais o tamanho limite para a indicação de cirurgia 5.

Os aneurismas de aorta torácica são menos comuns que os de aorta abdominal e sua incidência não aumenta após os 30 anos. São achados de exames em 40% dos casos. Quando sintomáticos se manifestam como conseqüência vascular ou efeito de massa local. As conseqüências são: a regurgitação aórtica devido dilatação do anel aórtico, geralmente, associado com IC secundária; a isquemia miocárdica ou o infarto devido à compressão das artérias coronárias por alargamento do seio de Valsalva; a rotura de aneurisma de seio de Valsalva no lado direito levando a um sopro contínuo e a IC; e o tromboembolismo levando a acidente vascular cerebral, isquemia de membros inferiores, infarto renal ou isquemia mesentérica.

O efeito de massa dos aneurismas ascendentes ou de arco são: síndrome da veia cava superior devido a obstrução do retorno venoso; compressão de traquéia ou brônquio fonte, levando a desvio de traquéia, tosse, dispnéia, sibilos, hemoptises ou pneumonias de repetição. A compressão do esôfago pode produzir disfagia e a compressão do nervo laríngeo recorrente leva a rouquidão. A dor da face anterior do tórax e dorso ocorre em 27% e 21%, respectivamente, em aneurismas não dissecados e resulta de compressão de estruturas intratorácicas ou de erosão óssea.

Assim como os aneurismas abdominais, as piores conseqüências dos aneurismas torácicos são a rotura e a expansão. A rotura é acompanhada pelo início dramático de dor lancinante, geralmente na região onde era menos intensa. A rotura ocorre mais comumente para o espaço intrapleural esquerdo ou intrapericárdico, levando a hipotensão. O 3º sítio de rotura mais comum é na aorta torácica descendente e para o esôfago (fístula aorto-esofagiana), causando hematêmese. A expansão do aneurisma pode ser acompanhada de dor semelhante àquela da rotural.

Os pacientes sintomáticos têm pior prognóstico, pois o início de novos sintomas geralmente indica rotura. A alta prevalência de doença cardiovascular nesses pacientes pode levar a um dramático impacto na mortalidade.

A rotura ocorre em 32% a 68% dos pacientes não tratados cirurgicamente. Daqueles que chegam ao hospital, a mortalidade em 6h é de 54% e em 24h é de 76%.

Geralmente, a recomendação para cirurgia de aneurisma de aorta torácica é um diâmetro de 6,0cm ou mais, ou 7,0cm em pacientes com alto risco operatório.

Indicações para cirurgias em aneurismas pequenos incluem: rápida expansão (aumento de 0,5cm/ano), associação com regurgitação aórtica significativa ou presença de sintomas atribuídos ao aneurisma. Na síndrome de Marfan, devido ao alto risco de rotura e dissecção, é indicada correção com 5,5cm.

Ainda como diagnósticos diferenciais, devemos cogitar as complicações mecânicas do infarto agudo do miocárdio, por se tratar de paciente sabidamente coronariopata, dislipidêmica e hipertensa, que há três dias vinha com dores epigástrica e lombar e, ao exame físico, o aparecimento de um sopro em borda esternal esquerda alta que não havia sido descrito antes. A comunicação interventricular, a rotura de músculo papilar e a rotura de parede livre são complicações que ocorrem com um pico médio de três a cinco dias pós infarto.

(Dra. Adriana Paula Tirone)

Hipóteses diagnósticas - Rotura de aneurisma de aorta abdominal decorrente de aterosclerose e HA.

Necropsia

Detectou-se extenso derrame hemorrágico com coágulos, na cavidade pleural esquerda, que consistiu na causa terminal do óbito (choque hipovolêmico). O exame externo da aorta revelou dilatação aneurismática de limites pouco precisos, localizada na porção torácica descendente, com sufusão hemorrágica na adventícia e tecido periaórtico a esse nível. Havia ainda aneurisma fusiforme do segmento abdominal, medindo 16cm de extensão (fig. 4). O exame interno da aorta evidenciou aterosclerose complicada, com numerosas placas calcificadas e ulceradas, com trombose em organização, semi-oclusiva do aneurisma abdominal (fig. 5). Havia rotura focal e completa da parede, no sentido longitudinal, medindo 1,0cm de extensão, no segmento torácico descendente (fig. 6).




O coração pesou 350g, notando-se pequenas áreas de fibrose do miocárdio, de distribuição multifocal no VE e predominando na região subendocárdica, configurando o aspecto habitual da miocardioesclerose (fig. 7). As artérias coronárias apresentavam aterosclerose complicada, com extensa calcificação da parede e obstrução de 90% no segmento inicial da artéria interventricular anterior e 70% no segmento inicial da coronária direita.


O rim direito apresentava atrofia isquêmica, pesando 20g. Havia numerosas placas ateroscleróticas nas artérias do polígono de Willis e nas artérias renais.

(Dr. Luiz Alberto Benvenuti)

Diagnósticos anatomopatológicos-1) aterosclerose sistêmica; 2) aneurisma aterosclerótico roto da aorta torácica descendente; 3) aneurisma fusiforme aterosclerótico da aorta abdominal, parcialmente trombosado; 4) cardiopatia isquêmica aterosclerótica (miocardioesclerose); 5) atrofia isquêmica aterosclerótica do rim direito; 6) hemotórax à esquerda (causa do óbito).

Comentários

Trata-se de caso de aterosclerose sistêmica intensa, com rotura da aorta torácica descendente e aneurisma aterosclerótico parcialmente trombosado da aorta abdominal. Apesar da aorta torácica descendente encontrar-se dilatada, não havia delimitação precisa da lesão, como costuma acontecer nos aneurismas. A rotura da aorta é uma das principais complicações dos aneurismas ateroscleróticos, podendo porém ocorrer em placas ateroscleróticas de aortas não aneurismáticas e livres de dissecção ou arterite, geralmente no segmento torácico 6. Outras conseqüências da aterosclerose sistêmica encontradas foram miocardioesclerose secundária ao comprometimento aterosclerótico coronariano e atrofia isquêmica do rim direito, que pode ter sido a causa da HA sistêmica apresentada pela paciente (hipertensão renovascular).

(Dr. Luiz Alberto Benvenuti)

Editor: Alfredo José Mansur

Editores Associados: Desidério Favarato

Vera Demarchi Aiello

Correspondência: Alfredo José Mansur - Incor - Av. Dr. Enéas C. Aguiar, 44 - 05403-000 - São Paulo, SP

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jan 2002
  • Data do Fascículo
    Abr 1998
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