Acessibilidade / Reportar erro

Dissecção Coronária Espontânea em Paciente com Xantomatose Cerebrotendinosa

Xantomatose Cerebrotendinosa; Colesterol; Colestanol; Ácido Quenodesoxicólico/efeitos adversos; Doença da Artéria Coronariana/cirurgia; Diagnóstico por Imagem; Criança; Adolescente

Introdução

A Xantomatose Cerebrotendinosa (XCT) é uma doença autossômica recessiva caracterizada pela formação de lesões xantomatosas em muitos tecidos, em particular no cérebro e tendões.11. Moghadasian MH, Salen G, Frohlich JJ, Scudamore CH. Cerebrotendinous Xanthomatosis. Arch Neurol. 2002;59(4):527-9. O distúrbio é consequência da redução da produção de ácidos biliares, predominantemente do ácido quenodesoxicólico (CDCA) e do aumento da formação de colestanol.22. Pilo-de-la-Fuente B, Jimenez-Escrig A, Lorenzo JR, Pardo J, Arias M, Ares-Luque A, et al. Cerebrotendinous xanthomatosis in Spain: clinical, prognostic, and genetic survey. Eur J Neurol. 2011;18(10):1203 -11. Manifestações clínicas comuns incluem diarreia infantil e catarata bilateral de início juvenil, geralmente seguida por xantomas tendinosos e disfunção neurológica progressiva.33. Tibrewal S, Duell PB, DeBarber AE, Loh AR. Cerebrotendinous xanthomatosis: early diagnosis on the basis of juvenile cataracts. J Am Assoc Pediatr Ophthalmol Strabismus 2017;21(3):505–7. O diagnóstico final é baseado em anormalidades bioquímicas, incluindo níveis plasmáticos elevados de colestanol e aumento dos níveis urinários de álcool biliar associados a uma concentração biliar diminuída de CDCA.44. Nie S, Chen G, Cao X, Zhang Y. Cerebrotendinous xanthomatosis: a comprehensive review of pathogenesis, clinical manifestations, diagnosis, and management. Orphanet J Rare Dis. 2014;9(9) 1-11. O tratamento é baseado na suplementação oral de CDCA que, se iniciada precocemente, pode prevenir grandes problemas clínicos, uma vez que produz uma redução na síntese e nos níveis plasmáticos de colestanol.33. Tibrewal S, Duell PB, DeBarber AE, Loh AR. Cerebrotendinous xanthomatosis: early diagnosis on the basis of juvenile cataracts. J Am Assoc Pediatr Ophthalmol Strabismus 2017;21(3):505–7.

O comprometimento cardiovascular em pacientes com XCT é principalmente associado à aterosclerose prematura.44. Nie S, Chen G, Cao X, Zhang Y. Cerebrotendinous xanthomatosis: a comprehensive review of pathogenesis, clinical manifestations, diagnosis, and management. Orphanet J Rare Dis. 2014;9(9) 1-11. A análise lipídica no sangue de pacientes com XCT revelou níveis dramaticamente altos de 27-hidroxicolesterol e baixos níveis de lipoproteína de alta densidade-colesterol (HDL), que colocam esses pacientes em alto risco de doença cardiovascular.55. Passaseo I, Cacciotti L, Pauselli L, Ansalone G. Acute myocardial infarction in patient with cerebrotendinous xanthomatosis: Should these patients undergo stress tests during screening? J Cardiovasc Med. 2012;13(4):281–3.

A dissecção espontânea da artéria coronária (SCAD, do inglês spontaneous coronary artery dissection) é definida como uma separação não traumática da parefde arterial coronariana, criando um falso lúmen, o que leva a uma redução do fluxo sanguíneo.66. Yip A, Saw J. Spontaneous coronary artery dissection-A review. Cardiovasc Diagn Ther 2015;5(1):37–48. Embora existam outras condições sistêmicas que tornam a parede do vaso coronariano vulnerável a essa condição, em pacientes com doença arterial coronariana aterosclerótica, a ruptura de um fibroateroma de capa fina pode levar à SCAD.77. Alfonso F, Bastante T, Rivero F, Cuesta J, Benedicto A, Saw J, Gulati R. Spontaneous Coronary Artery Dissection. Circ J 2014;78(9):2099–110.

Descrevemos um relato de caso de uma paciente com diagnóstico de XCT que apresentou comprometimento cardíaco devido à SCAD.

Relato do caso

Em 2013, uma paciente do sexo feminino, de 22 anos, relatou história de xantomas no tendão de Aquiles e crise epiléptica parcial complexa nos últimos 10 anos. Ela evoluiu com dificuldade progressiva na capacidade de aprendizado e andar. Associada a essa apresentação clínica, ela relatou história de cirurgia bilateral para catarata aos 14 anos e esteatorreia.

No exame físico, os xantomas foram observados principalmente na região do tendão de Aquiles, bilateralmente, mas também no cotovelo e joelho direitos ( Figura 1 ). O exame neurológico revelou discreta dismetria e disdiadococinesia, dificuldade na realização do teste de caminhada em linha reta e hiperreflexia patelar bilateral e simétrica. Não havia anormalidades nos exames de força ou sensibilidade.

Figura 1
Xantomas observados na região do tendão de Aquiles direito e no joelho direito.

A ressonância magnética do cérebro mostrou uma área focal de 1,4 cm, com hipersinal nas sequências ponderadas em T2 e hipossinal nas sequências ponderadas em T1, sem realce de contraste. O ecodopplercardiograma transtorácico mostrou dilatação moderada e disfunção ventricular esquerda regional, resultando em comprometimento moderado da função sistólica e insuficiência mitral leve. A ultrassonografia abdominal demonstrou a presença de colelitíase.

A paciente, portanto, apresentava achados clínicos e radiológicos compatíveis com a XCT. O diagnóstico foi confirmado pela descoberta de um nível sérico elevado de colestanol de 31,79 mcg/mL. Ela iniciou o tratamento com CDCA no mesmo ano.

Em 2017, ela foi submetida a um novo exame cardiovascular. Uma ressonância magnética cardíaca foi realizada e revelou um ventrículo esquerdo dilatado, associado a disfunção ventricular esquerda leve (fração de ejeção do ventrículo esquerdo = 47%) como consequência de acinesia da parede basal média inferior e discinesia nas paredes anterior e anterior-septal do ventrículo esquerdo. Essas regiões apresentaram comprometimento da perfusão na avaliação dinâmica baseada em gadolínio e presença de realce tardio transmural com gadolínio ( Figura 2 ).

Figura 2
– Ressonância magnética apresentando realce tardio transmural com gadolínio (setas) das paredes médio-basal inferior, anterior e septo-anterior do ventrículo esquerdo em projeção de quatro (A) e duas câmaras (B).

A angiotomografia coronária detectou uma irregularidade parietal grave no terço proximal da artéria descendente anterior (ADA) com redução luminal de 50%, o que sugeria a presença de placa não calcificada ou dissecção da artéria ( Figura 3 ).

Figura 3
– Reconstrução multiplanar da angiotomografia computadorizada das coronárias, detectando uma irregularidade parietal grave no terço proximal da artéria coronária descendente anterior, o que sugeria a presença de uma placa não calcificada ou dissecção da artéria (seta).

Esta última foi confirmada por angiografia coronária e ultrassonografia intracoronária, que mostraram dissecção nos terços medial e proximal da ADA sem comprometimento do fluxo distal ( Figura 4 ).

Figura 4
– A - Angiografia coronária da artéria coronária esquerda apresentando dissecção no terço proximal e médio da artéria descendente anterior esquerda (seta). B - Ultrassonografia intracoronária com sinal de duplo lúmen na artéria descendente anterior esquerda (seta).

No momento do diagnóstico, seu painel lipídico era: colesterol total 170 mg/dL; lipoproteína de alta densidade-colesterol (HDL-C) 47 mg/dL; lipoproteína de baixa densidade-colesterol (LDL-C) 101 mg/dL; triglicérides 108 mg/dL.

Com base nesses achados, a paciente iniciou terapia cardiovascular com Ramipril 10 mg por dia, aspirina 100 mg por dia, carvedilol 6,25 mg duas vezes ao dia e rosuvastatina 10 mg na hora de dormir, associados à manutenção da suplementação oral de ácido biliar com CDCA.

Discussão e Conclusões

A Xantomatose Cerebrotendinosa é causada por uma mutação em homozigose da enzima mitocondrial esterol 27-hidroxilase (CYP27), a qual leva a várias manifestações sistêmicas.88. Lorincz MT, Rainier S, Thomas D, Fink JK. Cerebrotendinous Xanthomatosis. Arch Neurol 2005;62(9):1459-63. O diagnóstico é estabelecido com o reconhecimento desses sintomas e pelo achado de colestanol plasmático elevado e, se possível, um diagnóstico definitivo é obtido pela análise molecular do gene CYP27A1.99. Salen G, DeBarber A, Eichler F, Casaday L, Jayadev S, Kisanuki Y, et al. The Diagnosis and Treatment of Cerebrotendinous Xanthomatosis. J Clin Lipidol. 2018;12(5):545–6. , 1010. Duell PB, Salen G, Eichler FS, DeBarber AE, Connor SL, Casaday L, et al. Diffenderfer MR, Schaefer EJ. Diagnosis, treatment, and clinical outcomes in 43 cases with cerebrotendinous xanthomatosis. J Clin Lipidol. 2018;12(5):1169–78. No presente caso, o diagnóstico de XCT foi estabelecido com base na forte sintomatologia associada aos níveis plasmáticos de colestanol, muito semelhantes à concentração sérica média em outros estudos (31,79 mcg/mL).44. Nie S, Chen G, Cao X, Zhang Y. Cerebrotendinous xanthomatosis: a comprehensive review of pathogenesis, clinical manifestations, diagnosis, and management. Orphanet J Rare Dis. 2014;9(9) 1-11. , 1010. Duell PB, Salen G, Eichler FS, DeBarber AE, Connor SL, Casaday L, et al. Diffenderfer MR, Schaefer EJ. Diagnosis, treatment, and clinical outcomes in 43 cases with cerebrotendinous xanthomatosis. J Clin Lipidol. 2018;12(5):1169–78.

As manifestações cardíacas são menos notáveis e se apresentam principalmente como doença coronariana grave, incluindo infarto do miocárdio, angina pectoris, doença arterial coronariana e alterações isquêmicas no eletrocardiograma.55. Passaseo I, Cacciotti L, Pauselli L, Ansalone G. Acute myocardial infarction in patient with cerebrotendinous xanthomatosis: Should these patients undergo stress tests during screening? J Cardiovasc Med. 2012;13(4):281–3. , 1111. Fujiyama J, Kuriyama M, Arima S, Shibata Y, Nagata K, Takenaga S, et al. Atherogenic risk factors in cerebrotendinous xanthomatosis. Clin Chim Acta. 1991;200(1):1–11. Posteriormente, dois grandes estudos realizados por Duell et al.,1010. Duell PB, Salen G, Eichler FS, DeBarber AE, Connor SL, Casaday L, et al. Diffenderfer MR, Schaefer EJ. Diagnosis, treatment, and clinical outcomes in 43 cases with cerebrotendinous xanthomatosis. J Clin Lipidol. 2018;12(5):1169–78. e Sekijima et al.,1212. Sekijima Y, Koyama S, Yoshinaga T, Koinuma M, Inaba Y. Nationwide survey on cerebrotendinous xanthomatosis in Japan. J Hum Genet. 2018;63(3):271–80. demonstraram a presença de doença cardiovascular associada à XCT apenas em 7% e 20% de seus pacientes, respectivamente. No caso relatado, estudamos uma paciente com XCT que desenvolveu doença arterial coronariana causada por SCAD. Embora várias situações clínicas específicas, incluindo displasia fibromuscular e gravidez, tenham sido principalmente associadas à SCAD, as condições ateroscleróticas também podem estar relacionadas à patogênese dessa doença.66. Yip A, Saw J. Spontaneous coronary artery dissection-A review. Cardiovasc Diagn Ther 2015;5(1):37–48. Uma vez que a XCT predispõe ao desenvolvimento de aterosclerose prematura e existem poucos estudos que relatam doença arterial coronariana associada a tromboembolismo aterosclerótico,55. Passaseo I, Cacciotti L, Pauselli L, Ansalone G. Acute myocardial infarction in patient with cerebrotendinous xanthomatosis: Should these patients undergo stress tests during screening? J Cardiovasc Med. 2012;13(4):281–3. há evidências de que a SCAD no caso relatado também estava associada a uma placa ateromatosa. Até onde os autores puderam investigar, este é provavelmente o primeiro caso na literatura que demonstra a associação entre XCT e SCAD.

Referências

  • 1
    Moghadasian MH, Salen G, Frohlich JJ, Scudamore CH. Cerebrotendinous Xanthomatosis. Arch Neurol. 2002;59(4):527-9.
  • 2
    Pilo-de-la-Fuente B, Jimenez-Escrig A, Lorenzo JR, Pardo J, Arias M, Ares-Luque A, et al. Cerebrotendinous xanthomatosis in Spain: clinical, prognostic, and genetic survey. Eur J Neurol. 2011;18(10):1203 -11.
  • 3
    Tibrewal S, Duell PB, DeBarber AE, Loh AR. Cerebrotendinous xanthomatosis: early diagnosis on the basis of juvenile cataracts. J Am Assoc Pediatr Ophthalmol Strabismus 2017;21(3):505–7.
  • 4
    Nie S, Chen G, Cao X, Zhang Y. Cerebrotendinous xanthomatosis: a comprehensive review of pathogenesis, clinical manifestations, diagnosis, and management. Orphanet J Rare Dis. 2014;9(9) 1-11.
  • 5
    Passaseo I, Cacciotti L, Pauselli L, Ansalone G. Acute myocardial infarction in patient with cerebrotendinous xanthomatosis: Should these patients undergo stress tests during screening? J Cardiovasc Med. 2012;13(4):281–3.
  • 6
    Yip A, Saw J. Spontaneous coronary artery dissection-A review. Cardiovasc Diagn Ther 2015;5(1):37–48.
  • 7
    Alfonso F, Bastante T, Rivero F, Cuesta J, Benedicto A, Saw J, Gulati R. Spontaneous Coronary Artery Dissection. Circ J 2014;78(9):2099–110.
  • 8
    Lorincz MT, Rainier S, Thomas D, Fink JK. Cerebrotendinous Xanthomatosis. Arch Neurol 2005;62(9):1459-63.
  • 9
    Salen G, DeBarber A, Eichler F, Casaday L, Jayadev S, Kisanuki Y, et al. The Diagnosis and Treatment of Cerebrotendinous Xanthomatosis. J Clin Lipidol. 2018;12(5):545–6.
  • 10
    Duell PB, Salen G, Eichler FS, DeBarber AE, Connor SL, Casaday L, et al. Diffenderfer MR, Schaefer EJ. Diagnosis, treatment, and clinical outcomes in 43 cases with cerebrotendinous xanthomatosis. J Clin Lipidol. 2018;12(5):1169–78.
  • 11
    Fujiyama J, Kuriyama M, Arima S, Shibata Y, Nagata K, Takenaga S, et al. Atherogenic risk factors in cerebrotendinous xanthomatosis. Clin Chim Acta. 1991;200(1):1–11.
  • 12
    Sekijima Y, Koyama S, Yoshinaga T, Koinuma M, Inaba Y. Nationwide survey on cerebrotendinous xanthomatosis in Japan. J Hum Genet. 2018;63(3):271–80.
  • Vinculação acadêmica
    Não há vinculação deste estudo a programas de pós-graduação.
  • Aprovação ética e consentimento informado
    Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade Federal de Sergipe sob o número de protocolo CAAE: 0289.0.107.000-11. Todos os procedimentos envolvidos nesse estudo estão de acordo com a Declaração de Helsinki de 1975, atualizada em 2013. O consentimento informado foi obtido de todos os participantes incluídos no estudo.
  • Fontes de financiamento
    O presente estudo não contou com fontes de financiamento externas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Set 2020
  • Data do Fascículo
    Abr 2020

Histórico

  • Recebido
    09 Jul 2019
  • Revisado
    05 Out 2019
  • Aceito
    13 Set 2019
Sociedade Brasileira de Cardiologia - SBC Avenida Marechal Câmara, 160, sala: 330, Centro, CEP: 20020-907, (21) 3478-2700 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil, Fax: +55 21 3478-2770 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revista@cardiol.br