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Cardioversor-desfibrilador na prevenção primária de morte súbita: para todos ou para poucos?

EDITORIAL

Cardioversor-desfibrilador na prevenção primária de morte súbita: para todos ou para poucos?

Leandro Ioschpe Zimerman

Hospital de Clínicas de Porto Alegre e Hospital São Francisco-ISCMPA, Porto Alegre, RS - Brasil

Correspondência Correspondência: Leandro Ioschpe Zimerman Avenida Iguassu, 176/402 - Petrópolis 90470-430 - Porto Alegre - RS - Brasil E-mail: zimerman@cardiol.br, lzimerman@terra.com.br

Palavras-chave: Desfibriladores implantáveis, prevenção primária, morte súbita, custos de cuidados de saúde

Os cardioversores-desfibriladores implantáveis (CDI) têm sido usados há mais de duas décadas para prevenção de morte súbita. Inicialmente recomendados para a prevenção secundária, atualmente têm na prevenção primária a sua indicação mais comum. Registro norte-americano recente mostrou que dos 108.341 implantes realizados em 2006, 85.823 (79,2%) foram para prevenção primária e somente 22.518 (20,8%) para secundária1. Vários ensaios clínicos têm procurado definir quais são os pacientes que merecem essa forma de tratamento. O mais recente e maior destes é o Sudden Cardiac Death in Heart Failure (SCD-Heft)2 que seguiu 2.521 pacientes com ICC classe funcional II-III e FE <35% em três grupos (placebo, amiodarona e implante de CDI) por um tempo médio de 45,5 meses. Neste, observou-se uma diminuição em mortalidade total no grupo com CDI, com 23% de redução de risco relativo no grupo CDI, e ausência de benefício com o uso da amiodarona.

Como esses ensaios clínicos foram realizados basicamente em países desenvolvidos, em uma realidade diferente da brasileira, a aplicabilidade desses dados é freqüentemente questionada. No presente artigo3, buscou-se validar os resultados para a população brasileira ao se compararem os pacientes do SCD-Heft àqueles que apresentassem critérios de inclusão do SCD-Heft e estivessem de um ambulatório de insuficiência cardíaca de um hospital do nosso meio. A comparação entre os grupos mostrou pequenas diferenças: o percentual de pacientes isquêmicos é ligeiramente maior (63% vs. 53%, p = 0,05) e o uso de digoxina é menor nos pacientes do presente estudo (35% vs. 70%; p < 0,001). Em relação à digoxina, não se espera alteração em mortalidade com seu uso, o que torna este possível fator de confusão menor importante. O percentual ligeiramente superior de isquêmicos poderia ter significado em termos de mortalidade, já que estes costumam apresentar taxas maiores que os não-isquêmicos, mas isso não foi observado. Os dados mais importantes do ponto de vista de alteração de mortalidade, como a fração de ejeção e o uso de betabloqueadores e inibidores da ECA, são similares entre os dois trabalhos. No SCD-Heft, o benefício observado do implante de CDI ocorreu exclusivamente em pacientes com classe funcional II da NYHA, que representavam 70% do total. Esse percentual foi de 67% no presente estudo, reafirmando a similaridade entre as populações. A conclusão a que se chega é que pacientes acompanhados em ambulatório de ICC em nosso meio são similares aos randomizados no SCD-Heft, indicando que os resultados deste ensaio clínico podem ser aplicados em nosso meio.

No entanto, outro ponto muito discutido em relação ao implante de CDI em nosso meio é o custo-efetividade. Os autores do presente trabalho sugerem que essa terapêutica não é usada mais regularmente em razão do impacto econômico que geraria em nosso sistema de saúde. Essa discussão não é recente e ocorre também em países desenvolvidos4-6. Vários ensaios clínicos têm medido e comparado os custos do implante do CDI com outras formas de tratamento. A diferença de custos para o implante varia de U$ 19.000, no SCD-Heft7, a U$ 39.200, no MADIT II8. O custo da terapia deve ser julgado em conjunto com o benefício que ela apresenta. Do mesmo modo que o custo, o NNT, número necessário de pacientes tratados para evitar um desfecho, é bastante variado. No MADIT II, o NNT é de 11 para 3 anos, no SCD-Heft é de 14 para 5 anos; e é de 3 para 5 anos no MUSTT e de 4 para 2,4 anos no MADIT9-11. Outro dado a ser incorporado nesse cálculo é que o custo-efetividade deve ser ajustado à tolerância do paciente ao tratamento, ou seja, ajustado à qualidade de vida. E, novamente, os dados de aumento de custo-efetividade ajustados à qualidade de vida por ano (QALY) são muito diferentes entre os diversos estudos. Considerando-se uma eficácia média, os valores de QALY encontrados são, em dólares, 34.000, 34.900, 54.100 e 70.200, para os estudos MUSTT, MADIT, MADIT II e SCD-Heft, respectivamente12. Números tão diferentes geram posicionamentos diferentes. Enquanto vários autores sugerem que o implante de CDI é muito caro para ser sustentado pelo sistema de saúde público, outros não concordam com esse argumento. Camm e cols.13 consideram que o aumento do gasto para o sistema da saúde europeu seria pouco relevante, mesmo que os implantes aumentassem três vezes. Além disso, esses autores insistem que o custo anual dos CDI na Europa (0,49 bilhão de euros) é desprezível quando comparado a outras terapêuticas correntes, como a cirurgia de revascularização miocárdica (2,12 bilhões) ou angioplastia coronária (2,7 bilhões), ou com outros custos, como a ineficiência na administração hospitalar (64 bilhões). Talvez o dado mais consistente ao se analisarem os vários trabalhos seja o de que quanto maior a estratificação de risco, melhores são o NNT e o custo-efetividade. No entanto, o principal risco relacionado ao uso de métodos de estratificação mais específicos é a possibilidade de haver diminuição da sensibilidade, reduzindo assim o número de pessoas que poderiam se beneficiar.

Dados brasileiros que avaliam o custo-efetividade do implante de cardioversores-desfibriladores no setor público para prevenção primária estão sendo estudados, mas ainda não publicados* * Comunicação pessoal . Um estudo realizado no Hospital de Clínicas de Porto Alegre (RS) mostrou uma diferença de custo-efetividade do CDI em relação ao tratamento convencional, em reais, de 72.280/QALY. Se o preço de implante e a troca de gerador do CDI sofressem uma redução de 50%, essa relação seria de 38.436/QALY. E se os pacientes selecionados fossem somente os de mais alto risco, como os do MADIT, esse valor seria de 59.738/QALY.

O presente trabalho traz uma contribuição importante ao mostrar que os dados de um grande ensaio clínico podem ser aplicados à nossa população. Os cardioversores-desfibriladores são úteis na redução de mortalidade. O grande desafio, em nosso país e em todo o mundo, é encontrar métodos mais precisos de estratificação, associados a CDI mais baratos e de durabilidade cada vez maior, para aumentar o número de beneficiados com um bom custo-efetividade.

Artigo recebido em 21/05/08; revisado em 21/05/08; aceito em 21/05/08.

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  • Correspondência:
    Leandro Ioschpe Zimerman
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Ago 2008
    • Data do Fascículo
      Ago 2008
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