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Isquemia silenciosa na doença coronariana estável em vigência de tratamento medicamentoso

Resumos

FUNDAMENTO: Existem poucos dados sobre comportamento da isquemia miocárdica às atividades habituais na vigência da medicação em pacientes com doença coronariana. OBJETIVO: Estudar mecanismo gerador da isquemia miocárdica avaliando-se o comportamento da pressão arterial e da freqüência cardíaca em pacientes com doença aterosclerótica estável, medicados e com evidência de isquemia. MÉTODOS: Cinqüenta pacientes (40 homens) realizaram ambulatorialmente por 24 horas a monitorização eletrocardiográfica sincronizada com a monitorização da pressão arterial. RESULTADOS: Em 17 pacientes detectaram-se 35 episódios de isquemia miocárdica, com duração total de 146,3 minutos, ocorrendo relato de angina em cinco casos. Houve 29 episódios (100,3 minutos) durante o período de vigília, com 11 episódios (35,3+3,7 min) no período das 11 às 15 horas. A avaliação da pressão arterial e freqüência cardíaca nos três intervalos de 10 minutos posteriores ao momento de isquemia mostrou diferença estatisticamente significante (p<0,05), o que não ocorreu nos três intervalos anteriores. Entretanto, durante o momento isquêmico, percebeu-se elevação maior que 10 mmHg da pressão arterial e de cinco batimentos por minuto da freqüência cardíaca quando comparado ao intervalo de tempo entre 20 e 10 minutos anterior. A freqüência cardíaca média no início da isquemia durante teste ergométrico prévio ao estudo foi de 118,2+14,0, e de 81,1+20,8 batimentos por minuto na eletrocardiografia de 24 horas (p<0,001). CONCLUSÃO: A incidência de isquemia silenciosa é freqüente na doença coronária estável, relacionando-se com alterações da pressão arterial e da freqüência cardíaca, com diferentes limiares de isquemia para o mesmo paciente.

Coronariopatia; isquemia; eletrocardiografia ambulatorial; pressão arterial


BACKGROUND: Few data are available on the behavior of myocardial ischemia during daily activities in patients with coronary artery disease receiving antianginal drug therapy. OBJECTIVE: To study the mechanism generating myocardial ischemia by evaluating blood pressure and heart rate changes in patients with stable atherosclerotic disease receiving drug therapy and with evidence of myocardial ischemia. METHODS: Fifty non-hospitalized patients (40 males) underwent 24-hour electrocardiographic monitoring synchronized with blood pressured monitoring. RESULTS: Thirty five episodes of myocardial ischemia were detected in 17 patients, with a total duration of 146.3 minutes; angina was reported in five cases. Twenty nine episodes (100.3 minutes) occurred during wakefulness, with 11 episodes (35.3 + 3.7 min) in the period from 11 a.m. to 3 p.m. Blood pressure and heart rate evaluation in the three ten-minute intervals following the ischemic episodes showed a statistically significant difference (p< 0.05), unlike that shown for the three intervals preceding the episodes. However, during the ischemic episode, a higher than 10-mmHg elevation in blood pressure and 5 beats per minute in heart rate were observed when compared with the time interval between 20 and 10 minutes before the episode. The mean heart rate at the onset of ischemia during the exercise test performed before the study was 118.2 + 14.0, and 81.1 + 20.8 beats per minute on the 24-hour electrocardiogram (p < 0.001). CONCLUSION: The incidence of silent myocardial ischemia is high in stable coronary artery disease and is related to alterations in blood pressure and heart rate, with different thresholds for ischemia for the same patient.

Coronary disease; ischemia; electrocardiography, ambulatory; blood pressure


ARTIGO ORIGINAL

Isquemia silenciosa na doença coronariana estável em vigência de tratamento medicamentoso

João Fernando Monteiro Ferreira; Luiz Antonio Machado César; César J. Gruppi; Dante M. A. Giorgi; Whady A. Hueb; Antonio P. Mansur; José A. F. Ramires

Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de São Paulo, São Paulo, SP - Brasil

Correspondência Correspondência: João Fernando Monteiro Ferreira Rua Madre Rita Amada de Jesus, 72 / 222B – Granja Julieta E-mail: jfmf@cardiol.br

RESUMO

FUNDAMENTO: Existem poucos dados sobre comportamento da isquemia miocárdica às atividades habituais na vigência da medicação em pacientes com doença coronariana.

OBJETIVO: Estudar mecanismo gerador da isquemia miocárdica avaliando-se o comportamento da pressão arterial e da freqüência cardíaca em pacientes com doença aterosclerótica estável, medicados e com evidência de isquemia.

MÉTODOS: Cinqüenta pacientes (40 homens) realizaram ambulatorialmente por 24 horas a monitorização eletrocardiográfica sincronizada com a monitorização da pressão arterial.

RESULTADOS: Em 17 pacientes detectaram-se 35 episódios de isquemia miocárdica, com duração total de 146,3 minutos, ocorrendo relato de angina em cinco casos. Houve 29 episódios (100,3 minutos) durante o período de vigília, com 11 episódios (35,3+3,7 min) no período das 11 às 15 horas. A avaliação da pressão arterial e freqüência cardíaca nos três intervalos de 10 minutos posteriores ao momento de isquemia mostrou diferença estatisticamente significante (p<0,05), o que não ocorreu nos três intervalos anteriores. Entretanto, durante o momento isquêmico, percebeu-se elevação maior que 10 mmHg da pressão arterial e de cinco batimentos por minuto da freqüência cardíaca quando comparado ao intervalo de tempo entre 20 e 10 minutos anterior. A freqüência cardíaca média no início da isquemia durante teste ergométrico prévio ao estudo foi de 118,2+14,0, e de 81,1+20,8 batimentos por minuto na eletrocardiografia de 24 horas (p<0,001).

CONCLUSÃO: A incidência de isquemia silenciosa é freqüente na doença coronária estável, relacionando-se com alterações da pressão arterial e da freqüência cardíaca, com diferentes limiares de isquemia para o mesmo paciente.

Palavras-chave: Coronariopatia, isquemia, eletrocardiografia ambulatorial, pressão arterial.

Introdução

A isquemia silenciosa é considerada a apresentação mais freqüente da doença coronariana crônica, tendo sido definida por Cohn em 1981 como a evidência de isquemia miocárdica na ausência de qualquer sintoma1. Sua presença relaciona-se a maior risco de morte e eventos cardíacos2-4, chegando-se a se verificar mortalidade até três vezes maior (24% versus 8,0%) em relação àqueles sem isquemia5.

Ainda não estão, contudo, completamente estabelecidos o papel e o comportamento dos fatores que determinam a ocorrência da isquemia silenciosa, havendo influência das obstruções dos vasos coronarianos, alterações do endotélio e dos fatores de consumo de oxigênio, principalmente nos pacientes em uso de medicações antianginosas, hipolipemiantes e anti-hipertensivas6-9.

Para esclarecer o comportamento dos episódios de isquemia miocárdica às atividades habituais e seus aspectos determinantes, avaliamos pacientes com doença coronária estável e documentação de isquemia miocárdica ativa mesmo na vigência de medicação.

Métodos

Após a aprovação pela Comissão de Ética do hospital, estudamos 50 pacientes com idade de 40 a 81 anos (média de 61,9+10,7 anos), sendo 40 (80%) do sexo masculino, e doença coronária comprovada por cinecoronariografia (com pelo menos uma artéria coronária principal com obstrução > 50%), além dos seguintes critérios:

Critérios de inclusão - evidência de isquemia miocárdica clínica (angina ao esforço) ou funcional (teste ergométrico com infradesnivelamento do segmento ST > 1,0 mm para homens e > 2,0 mm para mulheres e/ou cintilografia de perfusão miocárdica com defeito perfusional transitório considerado pelo menos moderado).

Critérios de exclusão - doença valvar; hipertensão arterial não-controlada, insuficiência cardíaca classes funcionais III e IV da NYHA, insuficiência renal e hepática; diabete melito descompensado; hipertiroidismo, anemia, gestação, idade inferior a 18 anos; eletrocardiográficos – bloqueios do ramo direito ou esquerdo do feixe de Hiss; bloqueio AV de 2º grau tipo Mobitz II e de 3º grau; intervalo PR < 0,10s, presença de feixe de condução anômalo, fibrilação e flutter atrial, taquicardias, marcapasso artificial, sobrecarga ventricular esquerda ou demais alterações da repolarização ventricular que prejudicasse a análise do segmento ST.

Durante a realização do estudo, os pacientes permaneceram medicados com os fármacos antianginosos que vinham utilizando, sendo submetidos a monitorização eletrocardiográfica e da pressão arterial durante 24 horas contínuas utilizando o equipamento CardioTens da Meditech Ltda. – Medical Electronics (Budapest, Hungary). Esse sistema permite obter informações simultâneas da pressão arterial e dos episódios isquêmicos.

O sistema foi programado para gravar o eletrocardiograma automaticamente em dois canais (CM5 e CM1), considerando-se o padrão básico do ECG e do segmento ST. Orientou-se o paciente a relatar no diário anexo qualquer tipo de sintoma.

Para o diagnóstico dos eventos isquêmicos ajustou-se manualmente um ponto isoelétrico (intervalo PQ e um ponto a 60 ms do ponto J) para determinar a linha de base do segmento ST, a partir da qual as presenças de supradesnivelamento e infradesnivelamento foram consideradas. A linha de base do segmento ST foi definida como a média obtida durante os 30 minutos anteriores aos episódios isquêmicos.

Critérios diagnósticos dos eventos isquêmicos - consideramos uma elevação > 2 mm ou depressão horizontal ou descendente > 1 mm do segmento ST a partir da linha de base, persistindo por pelo menos 1 min., e revertendo à linha de base por pelo menos 1 min.10. Produziu-se relatório com o tempo de isquemia de cada evento, bem como os horários do dia das suas ocorrências. Os pacientes foram divididos em dois grupos conforme o achado de isquemia miocárdica na eletrocardiografia dinâmica – isquêmicos e não-isquêmicos, procedendo-se a comparação de diferentes variáveis entre esses.

Avaliação dos eventos isquêmicos - nos pacientes com isquemia, foram considerados o número total de episódios e a soma do tempo em minutos (min) de todos os episódios durante as 24 horas de observação, o número total de eventos e o tempo total de isquemia em minutos em cada período de 4 horas nas 24 horas, respectivamente das 23h00 às 2h59, das 3h00 às 6h59, das 7h00hs às 10h59, das 11h00 às 14h59, das 15h00 às 18h59, e das 19h00 às 22h59. Consideramos ativo o período das 7h00 às 22h59 horas, e passivo, das 23h00 às 6h59.

Monitorização da pressão arterial - permitiu 24 horas consecutivas de medidas, programado para realizar seis medidas/h da pressão arterial sistólica (PAS) e diastólica (PAD) em mmHg e da freqüência cardíaca (FC) em batimentos por min (bpm). Uma medição era iniciada quando o nível do segmento ST ou a freqüência cardíaca excedia os limites programados. Medições extras podiam ocorrer manualmente a qualquer momento. Depois de identificado cada evento isquêmico, definimos como momentos (-30-21), (-20-11) e (-10-0) as medidas que ocorreram respectivamente 30 a 20 min., 20 a 10 min., e até 10 min. antes do início do episódio isquêmico. Os mesmos intervalos (0+10) (+11+20) (+21+30) foram considerados até 30 minutos após o episódio isquêmico. Foram desprezadas as medidas nas situações em que a medida (-30-21) estava a não mais que 20 min do último episódio isquêmico, e/ou a medida (21+30) estava a não menos que 20 min. do próximo episódio. Assim obteve-se a média em cada momento da PAS, PAD, FC e do duplo produto (DP).

Análise estatística - as variáveis foram analisadas descritivamente. Para as variáveis quantitativas (idade, FC, PAS e PAD) foi feita a observação dos valores mínimos, máximos, médias e desvios-padrão. Para as variáveis qualitativas, calcularam-se as freqüências absolutas e relativas. Para a análise da hipótese de igualdade de médias entre os dois grupos, utilizou-se o teste t de Student. Quando a suposição de normalidade dos dados foi rejeitada, utilizou-se o teste não-paramétrico de Mann-Whitney. Para a comparação de proporções entre os dois grupos utilizou-se o teste qui-quadrado ou o teste exato de Fisher. Para averiguar o comportamento do grupo considerando as condições de isquemia estudadas, fez-se uso da técnica Análise de Variância com medidas repetidas, a qual consiste no ajuste de um modelo linear multivariado. O nível de significância utilizado para os testes foi de 5%.

Resultados

Caracterização da casuística - Na avaliação dos fatores de risco para doença coronária, encontramos 36,0% com diabete melito; 72,0% com hipertensão arterial sistêmica; 32,0% com tabagismo corrente; 82,0% com hipercolesterolemia; 36,0% com hipertrigliceridemia; e 24,0% com história familiar para doença coronariana. Os pacientes mantiveram o uso de suas medicações habituais prescritas pelo seu médico assistente durante o estudo com a seguinte distribuição: 78,0% betabloqueadores; 40,0% bloqueadores de canal de cálcio; 76,0% nitratos; 96,0% ácido acetilsalicílico; 34,0% inibidores da enzima de conversão; e 19 (38,0%) hipolipemiantes. A avaliação do perfil lipídico e glicemia demonstrou as seguintes médias de níveis séricos: colesterol total 209,1+41,3 mg/dl; HDL-colesterol 39,1+7,9 mg/dl; LDL-colesterol 138,2+34,8 mg/dl; Triglicérides 166,6+96,6 mg/dl; e Glicemia 140,0+66,8 mg/dl.

Caracterização dos eventos isquêmicos - Foram gravadas 1112,4 horas pelo registro eletrocardiográfico, com a média geral de 22,7 horas por paciente. Em 17 (34,0%) detectou-se isquemia miocárdica, sendo 35 episódios com duração de 146,3 minutos. No período ativo tivemos a maioria dos episódios isquêmicos com o total de 29 (82,8%), enquanto no período passivo ocorreram seis (17,2%). O tempo total de isquemia no período ativo foi de 100,3 min e, no período passivo, de 44,5 minutos. A distribuição do número e duração dos episódios isquêmicos por período de quatro horas estão no gráfico 1.


Dos 17 pacientes com isquemia, cinco (29,4%) relataram angina durante o tempo de estudo, enquanto quatro (12,1%) relataram angina sem isquemia à eletrocardiografia. No gráfico 2 estão os achados da PAS, PAD e FC nos episódios isquêmicos por intervalos de tempo.


A análise das variáveis PAS, FC e DP entre os momentos anteriores à isquemia (-30-21), (-20-11) e (-10-0) em relação ao momento da isquemia (0) não se mostrou significante. Já as mesmas medidas posteriores à isquemia (0+10), (+11+20) e (+21+30) mostraram-se diferentes com significância estatística (tab. 1).

Comparação entre grupos: isquêmicos e não-isquêmicos - Uma vez determinadas as características da FC e pressão arterial no momento da isquemia à eletrocardiografia dinâmica, foi possível comparar essas variáveis entre o grupo isquêmico e não-isquêmico.

O estudo das variáveis do teste ergométrico encontrou as seguintes médias para isquêmicos e não-isquêmicos, respectivamente: tempo de esforço para aparecimento de isquemia de 3,6±1,7 min versus 4,0±1,8 min (p=0,077), FC no início da isquemia eletrocardiográfica de 111,0±12,9 bpm versus 121,3±13,6 bpm (p=0,085), infradesnivelamento máximo do segmento ST de 2,7±0,9 mm versus 2,5±0,7 mm (p=0,760), PAS de pico 179,4±30,1 mmHg versus 190,6±28,8 mmHg (p=0,277), PAD de pico 87,0±14,7 mmHg versus 96,5±20,0 mmHg (p=0,248). Determinamos a FC no início da isquemia miocárdica à eletrocardiografia dinâmica do protocolo e no teste ergométrico realizado à inclusão no estudo, encontrando-se diferença significativa com p<0,001 (gráfico 3).


Não houve diferença estatística entre os pacientes isquêmicos e não-isquêmicos quanto à idade dos pacientes (p=0,098), assim como nos diferentes fatores de risco para doença coronária como diabete melito (p=0,584), hipertensão arterial (p=0,746), tabagismo (p=0,357), hipercolesterolemia (p=0,467), hipertrigliceridemia (p=0,584) e história familiar positiva para doença coronária (p=0,181).

Também não houve diferença quanto à distribuição das medicações utilizadas nos isquêmicos e não-isquêmicos: betabloqueadores (p=1,000); bloqueadores de canal de cálcio (p=0,273); nitratos (p=0,728); ácido acetilsalicílico (p=1,000); inibidores da enzima de conversão da angiotensina (p=0,442); e hipolipemiantes (p=0,344).

Os valores dos lípides e da glicemia mostraram semelhantes entre os pacientes com e sem isquemia: colesterol total (p=0,186); HDL-colesterol (p=0,258); LDL-colesterol (p=0,072); Triglicérides (p=0,743); e glicemia (p=0,327).

Quanto ao resultado da coronariografia, não encontramos diferença no padrão de obstrução coronária (igual ou maior do que 70%) entre pacientes isquêmicos e não-isquêmicos: uniarteriais isquêmicos 17,7% – uniarteriais não-isquêmicos: 27,3%; biarteriais isquêmicos 58,8% – biarteriais não-isquêmicos: 51,5% e triarteriais isquêmicos 23,5% – triarteriais não-isquêmicos: 21,2%.

Na tabela 2 estão os resultados da Monitorização da Pressão Arterial conforme a presença de isquemia à eletrocardiografia dinâmica.

Discussão

Nossos resultados mostram taxas de pacientes com isquemia (34%) inferiores às de outros pesquisadores (43% a 89%)3,4,11. É possível que essa menor incidência de isquemia possa ser explicada por termos mantido medicação durante o estudo e pelo menor tempo de monitorização (24 horas e não 48 horas).

A maioria dos episódios cursou na ausência de sintomas, caracterizando o diagnóstico de isquemia silenciosa, resultado concordante com demais estudos7,11-13. Os mecanismos prováveis para a não-percepção do fenômeno isquêmico ainda não estão completamente esclarecidos. Maseri e cols.14 consideram defeitos no sistema de percepção da dor, maior liberação de endorfinas, degeneração das vias nociceptivas e alteração de baroceptores, como algumas das explicações para se tentar justificar a ausência de angina. Mesmo considerando o maior número de pacientes com diabete melito, não ocorreu maior incidência de isquemia miocárdica, o que também foi descrito por Solimene & Oliveira15 e Batlouni16.

A avaliação das variáveis do teste ergométrico, realizado previamente à inclusão no estudo, demonstrou que esse método não foi capaz de prever quais pacientes desenvolveriam isquemia às atividades habituais. Paul e cols.17 também demonstraram que o tempo de aparecimento de isquemia, infradesnivelamento do segmento ST e o tempo total de exercício não se relacionaram com a presença de isquemia ao teste ergométrico. Carboni e cols.18, Borzac e cols.19 e outros pesquisadores também concluíram que o teste ergométrico não é preditor do aparecimento de isquemia à eletrocardiografia em atividades habituais, e que a correlação entre os seus índices de gravidade é baixa, exceto nos casos onde havia sinais prognósticos de alto risco.

Também demonstramos diferença significativa entre a FC medida no início do episódio isquêmico pelo teste ergométrico e na eletrocardiografia. Deedwania & Nelson13 demonstraram variação dos valores da freqüência cardíaca e da pressão arterial na origem do episodio isquêmico, e que os valores numéricos desses parâmetros ao teste ergométrico eram maiores que os da eletrocardiografia (110,6 versus 91,7 batimentos por minuto). Rehman e cols.20 encontraram resultados semelhantes, para a FC, PAS e DP. Carboni e cols.18 também encontraram esses resultados, porém só para os pacientes que haviam apresentado episódio sintomático de isquemia. Deanfield e cols.21 avaliaram, com a eletrocardiografia dinâmica, trinta pacientes com doença coronária estável e teste ergométrico positivo, também encontrando FC menor no aparecimento da isquemia na eletrocardiografia (98,0±20,5 versus 124,0±17,0 bpm). Embora haja a influência dos fatores determinantes do consumo de oxigênio na gênese dos episódios isquêmicos às atividades habituais, como se depreende do que ocorre durante o teste de esforço, também a sua variação, e não apenas seu valor absoluto, pode determinar isquemia, como se observa na eletrocardiografia de 24 horas. Ou seja, mesmo com uma freqüência cardíaca menor, ocorreu isquemia, conforme demonstramos, evidenciando a existência de diferentes limiares de isquemia na determinação dessa.

Quanto à distribuição do número e duração dos episódios de isquemia por períodos e nas 24 horas, observamos predominância no período ativo com um pico no período das 11h00 às 14h59, e outro menor das 19h00 às 22h59. Essa tendência de evolução circadiana da isquemia miocárdica foi relatada em vários estudos, que demonstraram de forma repetida um maior número de episódios e tempo de isquemia durante o período de vigília, principalmente no horário da manhã. Alguns pesquisadores relatam ainda um comportamento bimodal, com a presença de outro pico de isquemia no início da noite, concordante com nossos resultados8,13,22-24.

Em relação à monitorização da PA, verificamos que tanto os pacientes isquêmicos quanto os não-isquêmicos mantiveram controladas a PAS, PAD e PAM nas 24 horas e nos períodos ativo e passivo, o mesmo encontrado por Rehman e cols.20 em população semelhante à nossa. Portanto, a carga pressórica per se não interferiu no surgimento dos episódios de isquemia miocárdica na nossa amostra, sugerindo que outros motivos devem interferir na gênese da isquemia silenciosa.

Apesar de não termos detectado relação entre os fatores de consumo de oxigênio (FC e PAS) com os episódios isquêmicos, com a análise estatística escolhida, percebemos que no momento episódio isquêmico as médias da freqüência cardíaca foram 5 bpm maiores, e as médias da pressão arterial sistólica 10 mmHg mais altas do que nas medidas precedendo a isquemia. Deanfield e cols.21, na avaliação com a eletrocardiografia dinâmica de pacientes com doença coronária estável e teste ergométrico positivo, encontraram apenas 23,0% de episódios isquêmicos precedidos de um aumento de 10 batimentos por minuto da freqüência cardíaca. Esse outro critério de avaliação, aceitando-se discretas variações da FC e PAS, foi também aplicado por outros pesquisadores.

Já Panza e cols.25, avaliando 48 pacientes com o mesmo perfil, mostraram que 89,0% dos episódios isquêmicos foram precedidos por um aumento maior ou igual a 10 bpm, e que essa variação da FC ocorreu até 10 minutos antes do início da isquemia. Lupi e cols.26 realizaram interessante estudo em 14 pacientes com doença estável, que tinham teste ergométrico positivo. Um segundo teste ergométrico foi realizado após 10 minutos do primeiro, observando-se que a freqüência cardíaca e o tempo de exercício foram significativamente diferentes, sugerindo que o fenômeno de pré-condicionamento interfere na gênese da isquemia miocárdica nesses pacientes.

Rehman e cols.20 estudaram 38 pacientes com doença coronária e teste ergométrico positivo para isquemia, procedendo a monitorização combinada da eletrocardiografia com a pressão arterial por até 48 horas em pacientes não-medicados. Não encontraram diferença significativa das medidas da pressão arterial e freqüência cardíaca nos 10 minutos anteriores ao evento isquêmico quando comparado com as medidas das quatro horas anteriores. Entretanto, as medidas do DP, FC e PAS durante o episodio isquêmico foram significativamente maiores que nos demais momentos, mostrando que as alterações dessas variáveis relacionam-se à gênese da isquemia, porém ocorrendo muito próximas ao início da isquemia.

Esse resultado foi também encontrado no nosso estudo, já que não houve diferenças estatisticamente significativas entre as medidas da FC, PAS e DP precedendo os 30 minutos do episódio isquêmico; mas quando comparadas às medidas posteriores ao término da isquemia, demonstrou-se que o aumento dessas variáveis participou na origem da isquemia. Deedwania & Nelson13 avaliaram 25 pacientes medicados com documentação prévia de isquemia silenciosa por 24 horas com a monitorização combinada da eletrocardiografia e da pressão arterial, concluindo que ocorre aumento da PAS, FC e DP precedendo o evento isquêmico, atingindo seu pico durante o momento de isquemia. Porém, a análise estatística não foi feita de forma a buscar diferença de médias, mas considerou significativo um aumento de cinco batimentos por minuto para a freqüência cardíaca e de 10 mmHg para a pressão arterial, variações que também foram encontradas no nosso estudo.

Soma-se a essa análise o padrão repetitivo na grande maioria dos estudos, visibilizando-se um aumento progressivo da FC, PAS e DP até atingir seu pico durante o episódio isquêmico, declinando após o término desse. Portanto, pacientes com doença coronária estável apresentam variação da FC e PAS precedendo o episódio de isquemia, mostrando que alterações do consumo de oxigênio participam da gênese da isquemia miocárdica. Porém, as variações da FC e PAS, apesar de presentes, geralmente não são de grande magnitude, sugerindo a necessidade da associação de fatores de demanda do fluxo coronário para o desencadeamento do episódio isquêmico, talvez até tendo um mesmo deflagrador comum.

Considerações finais

A isquemia miocárdica silenciosa mantém-se presente e freqüente mesmo em pacientes medicados com doença coronária estável durante as atividades habituais diárias. Paradoxalmente ocorre com FC menor que a observada no teste ergométrico, sendo precedida de pequenas variações da FC.

Ocorrem alterações da PAS e FC nos momentos anteriores e posteriores ao episódio de isquemia miocárdica, confirmando que os fatores determinantes do consumo de oxigênio interferem na gênese da isquemia miocárdica, mesmo na vigência de medicação antianginosa. Entretanto, existem diferentes limiares para isquemia para um mesmo paciente, demonstrando que o consumo de oxigênio não é o único determinante da isquemia miocárdica.

Potencial Conflito de Interesses

Declaro não haver conflito de interesses pertinentes.

Fontes de Financiamento

O presente estudo foi financiado por FAPESP.

Vinculação Acadêmica

Este artigo é parte de tese de doutorado de João Fernando Monteiro Ferreira pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.

Artigo recebido em 21/11/06; revisado recebido em 15/04/07; aceito em 11/06/07.

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  • Correspondência:

    João Fernando Monteiro Ferreira
    Rua Madre Rita Amada de Jesus, 72 / 222B – Granja Julieta
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      07 Dez 2007
    • Data do Fascículo
      Nov 2007

    Histórico

    • Revisado
      15 Abr 2007
    • Recebido
      21 Nov 2006
    • Aceito
      11 Jun 2007
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