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O cardiologista deve suspeitar mais das disfunções tireoidianas!

EDITORIAL

O cardiologista deve suspeitar mais das disfunções tireoidianas!

Angelo V. A. de Paola; Cláudio Cirenza; Rui M. B. Maciel

Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo. São Paulo, SP

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Dr. Angelo A. de Paola Escola Paulista de Medicina Rua Botucatu – 740 – 04023-062 São Paulo – SP E-mail - depaola@cardiol.br

Apesar de apresentar farmacocinética complexa e efeitos colaterais no pulmão, tireóide, pele e sistemas digestivo e neurológico, fatos geradores de controvérsias frequentes na sua utilização, a amiodarona estabeleceu-se, a partir de 1976, como uma das drogas mais utilizadas para o controle da maioria das arritmias cardíacas1.

A administração de amiodarona causa inúmeras modificações na função da tireóide, que incluem alterações na síntese, no metabolismo e na ação dos hormônios da tireóide, a tiroxina (T4) e a triiodotironina (T3)2,3. A amiodarona é um derivado benzofurano com estrutura semelhante ao T3, com 37% de seu peso molecular constituído por iodo. Como cerca de 10% da droga, administrada em doses variáveis de 200 a 600 mg, é desiodada diariamente, os pacientes recebem 7 a 21 mg de iodeto/dia, o que causa uma ingesta excessiva de iodo ao longo do tempo; além disso, a amiodarona inibe a enzima 5´-desiodase tipo I, responsável pela conversão do pró-hormônio T4 no hormônio ativo, o T3, nos diversos tecidos do organismo, assim como inibe a entrada de T4 nos tecidos. Estes mecanismos contribuem para a elevação dos níveis séricos de T4 e diminuição de T3 nos pacientes eutireoidianos que recebem amiodarona a longo prazo2. Quando a dose administrada é > 400 mg, também ocorre elevação do hormônio estimulador da tireóide (TSH), por inibição da enzima 5´-desiodase tipo II, que promove a conversão de T4 em T3 na hipófise. Além desses efeitos nos testes de função, a amiodarona também tem efeitos diretos citotóxicos na tireóide, o que causa o escape do T4 pré-formado na glândula para a circulação, fato que contribui também para a elevação sérica do T4. Finalmente, pela sua estrutura semelhante ao T3, a amiodarona e seus metabólitos podem ligar-se aos receptores de T3 que atuam no DNA, aumentando ou inibindo a expressão de diversos genes e apresentam efeito antagonista da ação do T3 em órgãos como o coração, promovendo um efeito símile ao hipotireoidismo2-4.

Apesar das alterações dos testes de função tireodiana serem comuns à maioria dos pacientes que recebem amiodarona, a incidência de disfunção tireodiana induzida por amiodarona é bastante variável2,3, resultando de diferentes critérios diagnósticos utilizados para caracterizar as alterações tireodianas, da dose de amiodarona e da quantidade de iodo ofertado na dieta à população estudada. A incidência de disfunção tireodiana induzida por amiodarona relatada pela literatura varia de 2 a 24%, com a maioria dos artigos variando de 14 a 18%; a tireotoxicose induzida por amiodarona é mais frequente em áreas deficientes de iodo, enquanto que o hipotireoidismo induzido por amiodarona é mais frequente nas áreas com ingestão suficiente de iodo2. Dessas difunções, o hipotireoidismo induzido por amiodarona é fácil de tratar, bastando a introdução do T4 se a amiodarona não puder ser retirada, enquanto que a tireotoxicose induzida por amiodarona é um desafio terapêutico5.

Neste número dos Arquivos Brasileiros de Cardiologia, Fuks e cols.6 apresentam trabalho que demonstra prevalência elevada de disfunção tireodiana em pacientes da cidade do Rio de Janeiro tratados com amiodarona e revela grande divergência no comportamento dos cardiologistas relativamente ao acompanhamento desses pacientes; a disfunção tireodiana foi caracterizada por alterações do TSH, independentemente de manifestações clínicas ou outras alterações laboratoriais. Pacientes que já possuíam diagnóstico de hiper ou hipotireoidismo foram excluídos. A prevalência da disfunção tireoidiana laboratorial de 33,9% encontrada nesse estudo foi elevada, principalmente levando-se em consideração que a dose média diária utilizada de amiodarona não foi alta.Meta-análise capaz de identificar efeitos adversos clínicos resultantes da utilização de doses baixas de amiodarona (< 400 mg/dia) relatou que a incidência de hipo ou hipertiroidismo clinicamente evidentes foi quatro vezes maior com a amiodarona quando comparado com o grupo placebo7. Entretanto, a incidência de disfunção tireoidiana de apenas 3,7% (grupo placebo = 0,4%), foi bastante inferior ao desta publicação que, além de importantes alterações laboratoriais, conseguiu identificar 7 (12,5%) pacientes com disfunção clinicamente evidente.

A maior incidência de disfunção laboratorial tireodiana encontrada neste artigo deve-se, provavelmente, à utilização da alteração do TSH como critério diagnóstico, de acordo com as recomendações recentes das diversas sociedades internacionais de tireóide8. Essa preocupação é decorrente de dados que indicam mortalidade aumentada por doença cardiovascular em pacientes idosos com TSH diminuído, decorrentes provavelmente de arritmias cardíacas, especialmente de fibrilação atrial9-11. No Brasil, especialmente, essa preocupação é maior, pois como os preparados de T4 e T3 não exigem receita médica, a prevalência de indivíduos com TSH diminuído por tireotoxicose derivada de sua ingestão é maior que em outros lugares11. Uma possível explicação para a alta incidência de disfunção clínica pode ser decorrente da amostra ter pacientes mais suscetíveis para o desenvolvimento de alterações da tireóide, como a presença de alterações auto-imunes. Anticorpos anti-tireóide encontrados em 9% dessa amostra estiveram relacionados aos pacientes que apresentaram disfunção, sendo que 70% dessa população pode desenvolver hipotireoidismo12. Outra explicação é derivada do fato dos cardiologistas não analisarem, de modo sistemático, a função tireodiana enquanto tratam de seus pacientes com amiodarona.

Nesse estudo a disfunção tireoidiana foi mais freqüente em homens que em mulheres (44% x 26%) e essa diferença seria significante com o dobro do tamanho amostral. Esses achados são diferentes de estudos prévios, que relatam que o sexo feminino é um fator de risco para o desenvolvimento de disfunção tireoidiana na vigência da terapêutica com amiodarona. Essas questões clínico-laboratoriais levantadas pelo autor valorizam importantemente este manuscrito, indicando a necessidade de estudos mais abrangentes em nosso meio, onde a prescrição de amiodarona é bastante utilizada para o tratamento de diferentes arritmias cardíacas. Recentemente, evidenciamos, em área de ingestão normal de iodo, que o tratamento com amiodarona pode ser continuado em pacientes com cardiopatia chagásica, mesmo naqueles que desenvolvam disfunção tireodiana ou bócio num estudo que comparou 72 pacientes com cardiopatia chagásica recebendo o medicamento por 11 ± 5 anos com 33 pacientes que não o receberam: dos 72, apenas 26 mantiveram o TSH normal num seguimento de 9 ± 5 anos, enquanto que 24 o apresentaram elevado, 4 diminuído e 18 com flutuação, mas a maioria permaneceu clinicamente eutireodiana sem evidência de cardiopatia induzida por disfunção tireodiana13. A mesma recomendação não se aplica a áreas com deficiência de iodo, onde há o desenvolvimento de um maior número de casos de tireotoxicose induzida por amiodarona14.

Outra informação fundamental desse estudo é a observação que os cardiologistas em nosso meio, apesar de informados sobre a disfunção da tireóide induzida por amiodarona (cerca de 95% responderam conhecer a informação), avaliam muito pouco a função tireoidiana sistematicamente antes (17,5%) e durante (50%) a terapêutica com amiodarona, inferindo-se que provavelmente na prática clínica diária, o diagnóstico de disfunção tireodiana é subestimado. Surpreendentemente, também é a informação que os mesmos médicos suspendem a droga em 80% dos casos, na vigência do diagnóstico de disfunção. Apesar desta conduta ser apropriada para os casos de tireotoxicose, a correta reposição dos hormônios tireoidianos permite a manutenção do medicamento nos pacientes hipotireoidianos com necessidade da manutenção da droga2-4.

Essas observações originais trazidas por Fuks e cols., além de enriquecerem os dados relacionados à esta importante situação clínica, delineam claramente a necessidade de estudos em nosso meio para a definição de estratégias diagnósticas e terapêuticas mais adequadas nesta importante situação clínica.

Referências

1. Rosenbaum MB, Chiale PA, Halpern MS, et al. Clinical efficacy of amiodarone as an antiarrhythmic agent. Am J Cardiol 1976; 38: 934-944.

2. Martino E, Bartalena L, Bogazzi F, Braverman LE. The effects of amiodarone on the thyroid. Endocr Rev 2001; 22: 240-254.

3. Klein I, Ojamaa K. Thyroid Hormone and the cardiovascular system. N Eng J Med 2001; 344: 501-509.

4. Bogazzi F, Bartalena L, Gasperi M, Braverman LE, Martino E. The various effects of amiodarone on thyroid function. Thyroid 2001; 11: 511-519.

5. Bartalena L, Bogazzi F, Martino E. Amiodarone-induced thyrotoxicosis: a difficult diagnostic and therapeutic challenge. Clin Endocrinol 2002; 56: 23-24.

6. Fuks AG, Vaisman M, Buescu A. Disfunção tireoidiana e conduta dos cardiologistas em pacientes utilizando amiodarona Arq Bras Cardiol 2004;82: 523.

7. Vorperian VR, Havighurst TC, Mller S, January CT. Adverse effects of low dose amiodarone: A Meta-Analysis. J Am Coll Cardiol 1997;30:791-8.

8. Demers LM, Spencer CA. Laboratory medicine practice guidelines: laboratory support the diagnosis and monitoring of thyroid disease. Clin Endocrinol 2003; 657-658.

9. Sawin C, Geller A, Wolff P. Belanger AJ, et al. Low serum thyrotropin concentrations as a risk factor for atrial fibrillation in older persons. N Engl J Med 1994; 331: 1249-1252.

10. Parle JV, Maisonnneuve P, Sheppard MC, Boyle P, Franklyn JA. Prediction of all-cause and cardiovascular mortality in elderly people from one low serum thyrotropin result: a 10-year cohort study. Lancet 2001; 358: 861-865.

11. Osman F, Gammage MD, Sheppard MC, Franklyn JA. Cardiac dysrhythmias and thyroid dysfunction: the hidden menace? J Clin Endocrinol Metab 2002; 87: 963-967.

12. Maciel RMB. Avaliação laboratorial da função tireodiana, in "Glândulas Tireóide e Paratireóide: abordagem clínico-cirúrgica", editado por MB de Carvalho, Editora Atheneu, São Paulo, 2004, pp. 354-384.

13. Martino E, Aghini-Lombardi F, Bartalena L, et al. Enhanced susceptibility to amiodarone-induced hypothyroidism in patients with thyroid autoimmune disease. Arch Intern Med 1994; 26: 154: 2722-6.

14. Silva JR, Guariento ME, Fernandes GA, Maciel RMB, Ward LS. Impact of long-term administration of amiodarone on the thyroid function of patients with Chagas´ disease. Thyroid 2004; 14: 373-379.

15. de Barros MA, Maciel RMB. Prospective study of the effects of amiodarone on thyroid function in Chagasic patients in an area of iodine deficiency. Rev Soc Bras Med Trop 1994; 27: 149-155.

Recebido para Publicação em maio/04

Aceito em maio/04

  • Endereço para correspondência
    Dr. Angelo A. de Paola
    Escola Paulista de Medicina
    Rua Botucatu – 740 – 04023-062
    São Paulo – SP
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      12 Jul 2004
    • Data do Fascículo
      Jun 2004
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