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Cardiomiopatia restritiva por cisticercose miocárdica

Resumos

Não há descrição na literatura de comprometimento da função cardíaca associado à cisticercose. Os autores relatam o caso de uma mulher de 46 anos, portadora de cisticercose e insuficiência cardíaca, cujo ecocardiograma é compatível com cardiomiopatia restritiva e o aspecto miocárdico é de microcalcificações, sugerindo infiltração cardíaca pela doença.


There is no description of cysticercosis affecting heart function. In the present report, the authors describe the case of a 46-year-old woman with cardiac cysticercosis and heart failure, presenting with echocardiographic findings suggestive of restrictive cardiomyopahy and myocardial microcalcifications suggestive of cardiac infiltration by the disease.


RELATO DE CASO

Cardiomiopatia restritiva por cisticercose miocárdica

Rodrigo Morel Vieira de Melo; Almiro Vieira de Melo Neto; Luís Cláudio L. Corrêa; Almiro Vieira de Melo Filho

Universidade Federal da Bahia - UFBA – Salvador, BA

Correspondência Correspondência: Rodrigo Morel Vieira de Melo Rua Martagão Gesteira, 274/501 40150-390 Salvador, BA E-mail: rodimorel@yahoo.com.br

RESUMO

Não há descrição na literatura de comprometimento da função cardíaca associado à cisticercose. Os autores relatam o caso de uma mulher de 46 anos, portadora de cisticercose e insuficiência cardíaca, cujo ecocardiograma é compatível com cardiomiopatia restritiva e o aspecto miocárdico é de microcalcificações, sugerindo infiltração cardíaca pela doença.

A cisticercose é a doença causada pela infestação com a forma larvária da Taenia solium. Na cisticercose humana, o homem está na posição de hospedeiro intermediário anômalo. A infestação ocorre após a ingestão de ovos contendo oncosferas viáveis que invadem os intestinos, entram na vasculatura e se instalam em tecidos. A prevalência mundial de cisticercose causada pelo cisticerco cellulosae foi estimada em 300 mil pessoas1. Embora qualquer órgão ou tecido possa abrigar os cistos, cérebro, musculatura esquelética e tecido subcutâneo são os locais mais comumente afetados. Enquanto a neurocisticercose tem sido objeto de numerosos relatos da literatura, a cisticercose cardíaca, especialmente a miocárdica, admitida como rara, tem sido pouco estudada.

RELATO DO CASO

Trata-se de um paciente do sexo feminino com 46 anos de idade, natural da cidade de Jacobina – BA, com história de crises convulsivas desde 1970, interpretadas como de origem epiléptica, passando a fazer uso regular de fenobarbital. Em 1996, em radiografia simples de partes moles, observaram-se microcalcificações (fig. 1). O estudo do líquido céfalo-raquideano revelou reação de hemaglutinação positiva até 1:4 para cisticercose e reação de ELISA para detecção de anticorpo anti-Cysticercus cellulosae positiva. Tomografia computadorizada de crânio evidenciou calcificações cerebrais e cerebelares direitas, também compatíveis com neurocisticercose (fig. 2). Rece beu, assim, o diagnóstico de neurocisticercose.



Em 1998 passou a apresentar dispnéia aos esforços extra-habituais e palpitações, realizando eletrocardiograma que mostrou ritmo sinusal, sobrecarga de ventrículo esquerdo (VE), alterações secundárias da repolarização ventricular e atividade ectópica supraventricular.

Em 2001, evoluiu para dispnéia aos esforços habituais, fadiga, edema de membros inferiores, ascite e hepatomegalia. O ecocardiograma demonstrou função sistólica do VE normal e disfunção diastólica do tipo restritivo. O Doppler não mostrou variação respiratória do fluxo da valva mitral e não havia movimento paradoxal do septo interventricular. Chamava atenção aspecto peculiar de microcalcificações miocárdicas difusas em ambos os ventrículos, lembrando o aspecto encontrado em outros sítios de acometimento da doença (fig. 3). Além disso, observava-se aumento da espessura das paredes do VE de forma concêntrica e dilatação discreta de átrio esquerdo.


Realizou estudo hemodinâmico e angiocardiográfico apresentando coronárias normais. Firmou-se, então, o diagnóstico de insuficiência cardíaca diastólica por cardiomiopatia restritiva, que em razão do padrão de calcificação provavelmente é secundária a cisticercose miocárdica.

DISCUSSÃO

O quadro clínico apresentado pela paciente a partir de 2001 aponta para o diagnóstico sindrômico de insuficiência cardíaca. O ecocardiograma evidenciou alterações compatíveis com uma cardiomiopatia restritiva e presença de microcalcificações sugestivas de cisticercose. Neste caso, não foi realizada biópsia miocárdica para confirmação diagnóstica, entretanto as lesões encontradas no ecocardiograma são muito sugestivas de cisticercose, visto que obedecem o mesmo padrão de calcificações em outros sítios.

Outras possíveis causas da disfunção diastólica podem ser aventadas, como: cardiopatia hipertensiva, pericardite constrictiva, endomiocardiofibrose e hipereosinofilia idiopática de Loeffler.

A cardiopatia hipertensiva é improvável, pois a paciente não apresentava história prévia de hipertensão arterial sistêmica. Quanto à pericardite constrictiva, não foram encontrados sinais, ao ecocardiograma, sugestivos dessa doença, como variação respiratória do fluxo mitral, movimento paradoxal do septo interventricular ou alterações morfológicas do pericárdio.

O aumento da espessura das paredes do VE e a ausência de sinais de fibrose endocárdica ao ecocardiograma como ecos anômalos na região apical do ventrículo esquerdo, via de entrada e ápice do ventrículo direito, tornam o diagnóstico de endomiocardiofibrose e hipereosinofilia idiopática de Loeffler improváveis2.

A distribuição da localização topográfica da cisticercose é variável nos diferentes trabalhos. Contudo, há uma uniformidade relativa à maior freqüência das formas encefálica e muscular esquelética.

Os relatos na literatura são controversos quanto à prevalência da cisticercose cardíaca. Gobbi e cols.3 e Lino e cols.4 demonstraram cisticercos no coração em 26% e 22% das necropsias com cisticercose, respectivamente, enquanto Vianna e cols. os encontraram em somente 8%5. A forma cardíaca pode causar alteração funcional diastólica, oligossintomática na maioria das vezes3,6-9.

A maior parte dos casos relatados na literatura de cisticercose miocárdica consiste em estudos anatomopatológicos em séries de necropsias8, havendo poucos dados sobre a importância funcional dessas alterações e evolução clínica desses pacientes.

A paciente evoluiu com melhora clínica significativa após tratamento específico para cardiomiopatia restritiva, sendo encaminhada para tratamento ambulatorial com cardiologista.

A relevância do caso clínico apresentado consiste na manifestação clínica expressiva de doença cardíaca na cisticercose miocárdica, não havendo relatos na literatura de cardiomiopatia restritiva associada com essa doença. Além disso, a literatura carece de dados sobre o ecocardiograma na cisticercose miocárdica, sendo este caso ilustrativo dessas alterações.

CONCLUSÃO

Cisticercose cardíaca apresenta aspecto ecocardiográfico peculiar e pode provocar expressiva manifestação de insuficiência cardíaca diastólica.

Recebido em 14/01/05

Aceito em 01/07/05

  • 1. Nascimento E. Teníase e cisticercose. In: Neves DP. Parasitologia Humana. 8Ş ed. São Paulo: Atheneu, 1991: 230-42.
  • 2. Acquatella H, Schiller NB, Puigbo JJ et al. Value of two-dimensional echocardiography in endomyocardial disease with and without eosinophilia. Circulation 1983; 67:1219-26.
  • 3. Gobbi H, Adad SJ, Neves RR, Almeida HO. Ocorrência de cisticercose (Cysticercus cellulosae) em pacientes necropsiados em Uberaba, MG. Rev Patol Trop 1980; 9: 51-9.
  • 4. Lino RS, Reis MA, Teixeira VPA. Ocorrência de cisticercose (Cysticercus cellulosae) encefálica e cardíaca em necropsias. Rev Saúde Públ 1999; 33: 495-8.
  • 5. Vianna LG, Macedo V, Costa JM. Cisticercose músculo-cutânea e visceral Doença rara? Rev Inst Med Trop S Paulo 1991; 33: 129-36.
  • 6. García HH, Gonzales AE, Evans CAW et al. Taenia solium cysticercosis. Lancet 2003; 362:54756.
  • 7. Agapejev S. Epidemiology of neurocysticercosis in Brazil. Rev Inst Med Trop S Paulo 1996; 38: 207-16.
  • 8. Lino RS, Ribeiro PM, Antonelli EJ. Developmental characteristics of Cysticercus cellulosae in the human brain and heart. Rev Soc Bras Med Trop 2002; 35: 617-22.
  • 9. Garcia HH, Del Brutto OH. Taenia solium cysticercosis. Infect Dis Clin North Am 2000; 14:97-119.
  • Correspondência:
    Rodrigo Morel Vieira de Melo
    Rua Martagão Gesteira, 274/501
    40150-390 Salvador, BA
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Jan 2006
    • Data do Fascículo
      Dez 2005

    Histórico

    • Aceito
      01 Jul 2005
    • Recebido
      14 Jan 2005
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