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Febre, Convulsão e Coma em Mulher de 60 Anos Portadora de Doença Reumática Crônica

Correlação Anatomoclínica

Correlação Anatomoclínica

Caso 3/2002 ¾ Febre, convulsão e coma em mulher de 60 anos portadora de doença reumática crônica (Instituto do Coração do Hospital das Clínicas - FMUSP, São Paulo)

Margleicia Maria Vasconcelos Coutinho, Léa Maria Macruz Ferreira Demarchi

São Paulo, SP

Mulher de 60 anos levada ao hospital (19/9/98) devido à febre e convulsão, seguida de inconsciência. Era portadora de cardiopatia reumática crônica, e havia sido submetida à comissurotomia da valva mitral aos 48 e aos 58 anos de idade. Há nove anos fora feito o diagnóstico de diabetes mellitus e hipertensão arterial.

Há um ano, iniciou dispnéia desencadeada a esforços menores que os habituais, intensificados há cinco dias, tornando-se constante, persistindo mesmo no repouso e com aparecimento de "chiado no peito", o que provocou o atendimento médico (28/2/98). O exame físico revelou pulso irregular, freqüência de 86 bpm, pressão arterial de 160/90mmHg, o exame dos pulmões, estertores crepitantes em bases de ambos os hemitórax, e o exame do coração, bulhas arrítmicas, sopro diastólico em ruflar em área foco mitral +/4+ e sopro sistólico ++/4+ em foco tricúspide. O fígado era doloroso e palpável a 6 cm do rebordo costal direito. Havia edema +/4+ de membros inferiores.

O eletrocardiograma (11/3/98) havia revelado fibrilação atrial, freqüência média de 70 bpm, SÂQRS a 0° para trás, sinais indiretos de sobrecarga atrial direita (Peñaloza-Tranchesi) (fig. 1).


A radiografia de tórax (11/3/98) revelou aumento dos hilos e da trama vascular pulmonar, velamento do seio costofrênico direito e opacificação em campo pulmonar direito. Havia aumento 2+/4+ da área cardíaca.

Os exames laboratoriais (11/3/98) revelaram 13,8g/dL de hemoglobina, 42% de hematócrito e os níveis séricos de creatinina de 0,7 mg/dL, de sódio 144 mEq/L e de potássio 3,7 mEq/L.

O ecocardiograma realizado em fevereiro/97 revelou diâmetro diastólico de ventrículo esquerdo de 46mm, fração de ejeção de 63%, átrio esquerdo de 52mm, área valvar mitral de 1,7cm², pressão de ventrículo direito, estimada por Doppler de 66mmHg. Havia estenose mitral moderada e insuficiência tricúspide acentuada.

A dose de captopril foi aumentada de 75mg para 150mg, a de furosemida reduzida de 40mg para 20mg, mantidas as doses de 0,25mg de digoxina e 250 mg de clorpropamida, e acrescentados 50mg de hidroclorotiazida.

Os exames laboratoriais anteriores (29/6/98) revelaram níveis séricos de glicose de 141mg/dL, de uréia 21mg/dL, potássio de 3,4 mEq/L, sódio de 140 mEq/L, triglicérides de 105mg/dL, colesterol de 175mg/dL, HDL-colesterol 37 mg/dL, LDL-colesterol 117mg/dL e ácido úrico de 5,6mg/dL.

O ecocardiograma (29/6/98) revelou espessuras de septo e de parede posterior de ventrículo esquerdo 7mm; diâmetro diastólico de ventrículo esquerdo 45mm e diâmetro sistólico 31mm. A fração de ejeção de ventrículo esquerdo foi 67%; o diâmetro da aorta 27mm e do átrio esquerdo 49mm. O gradiente transvalvar mitral médio foi estimado em 14mmHg e a área valvar mitral (Doppler contínuo) em 1,3cm² e a pressão sistólica de ventrículo direito em 95mmHg. O escore de Block da valva mitral foi de 10: dois para mobilidade, 3 para calcificação; 2 para espessamento e 3 para o aparelho subvalvar. A estenose mitral e a insuficiência tricúspide foram estimadas como acentuadas.

Na evolução (27/7/98) houve melhora da dispnéia. A paciente queixou-se de dor no dorso, que piorava com a movimentação, anorexia, perda de 8kg de peso nos últimos quatro meses. A pressão arterial estava elevada (220/110mmHg). Foram receitados 0,25mg de digoxina, 100mg de captopril, 50mg de clortalidona, 40mg de furosemida, 10mg de amlodipina e 250mg de clorpropamida.

A cintilografia miocárdica com talio-201 (31/7/98) com estresse farmacológico com dipiridamol revelou captação homogênea do radiofármaco no miocárdio, sem alteração significativa no estudo de redistribuição.

Em 14/9/98 houve intensificação da dor subdiafragmática com irradiação para dorso e um dia após apresentou convulsão generalizada seguida de inconsciência. Foi diagnosticada febre (39°C). A paciente foi atendida em outro serviço e, posteriormente, transferida para o InCor (19/9/98).

O exame físico (19/9/99) revelou paciente inconsciente, pulso irregular de 110bpm, pressão arterial 170/100mmHg, temperatura axilar 36,3°C. O exame dos pulmões revelou roncos difusos em ambos os hemitórax. O ritmo cardíaco era irregular e havia sopro diastólico mitral +/4+. O fígado foi palpado a 3cm do rebordo costal direito. Havia petéquias em membros inferiores. O exame neurológico revelou pupilas mióticas fotorreagentes. A paciente não abria os olhos à estimulação pela fala (3 da escala de coma de Glasgow), não verbalizava (1) e apresentava movimento de retirada aos estímulos dolorosos (4), escore total 8.

Como havia a hipótese de que quadro neurológico pudesse ter sido induzido por droga anticonvulsivante (diazepam) foi administrado flumazenil (antagonista de benzodizepínico), entretanto a paciente apresentou nova convulsão com necessidade de uso de diazepan, não melhorando o nível de consciência.

A tomografia de crânio (19/9/98) revelou áreas hipodensas em regiões frontal, occipital e cerebelar esquerdas, compatíveis com acidentes vasculares cerebrais antigos.

A paciente necessitou intubação orotraqueal para suporte respiratório e prescritos 750mg de fenitoína por via endovenosa, seguidos de 300mg diários de manutenção.

Diagnosticada intensa bacteriúria (tab. I), foram iniciados 2g diários de ceftriaxona. Considerada a hipótese diagnóstica de endocardite infecciosa, a antibioticoterapia foi modificada (22/9/99) para 16g de ampicilina, 8g de oxacilina e 240mg de gentamicina.

O ecocardiograma (21/9/98) revelou diâmetro diastólico de ventrículo esquerdo 44mm, diâmetro sistólico de ventrículo esquerdo 30mm, delta D=33%. A valva mitral apresentava fusão comissural e calcificação; o gradiente transvalvar mitral médio era 8mmHg e área valvar mitral media 1,3cm². Foram feitos os diagnósticos de estenose mitral e insuficiência tricúspide acentuadas. A pressão de ventrículo direito, avaliada com o emprego do Doppler foi 70mmHg. Não foram detectadas vegetações nas valvas cardíacas.

Houve discreta melhora do coma (abertura ocular a estímulos verbais (3), sem resposta verbal (1) e localização a estímulos doloros (5), entretanto persistindo a febre. No 4º dia de internação (23/9/98) a paciente não abria os olhos, mesmo com estímulo doloroso (1), não verbalizava (1), fazia movimentos de retirada (4) e, possivelmente, havia hemiparesia esquerda.

As tomografias de crânio (23 e 24/9/98) revelaram dilatação de ventrículos laterais (hidrocefalia) e a ressonância magnética de crânio (23/9/99) mostrou hidrocefalia com aqueduto e quarto ventrículo livres e presença de duas imagens sugestivas de granulomas em atividade no cerebelo. Considerada a hipótese diagnóstica de tuberculose.

O ecocardiograma transesofágico (23/9/98) revelou múltiplas vegetações, móveis e pequenas em valva mitral. Havia insuficiência mitral discreta e estenose mitral acentuada. Foi detectada vegetação filamentar em valva aórtica que se projetava para a via de saída do ventrículo esquerdo. Não havia trombos intracavitários e contraste espontâneo nos átrios, insuficiência tricúspide moderada e pressão sistólica do ventrículo direito 77mmHg.

Foi realizada a cirurgia de derivação ventricular externa (25/9/98) com colheita de líquor para novos exames, cujos resultados, disponíveis até 27/9/99, estão na tabela I. O nível de consciência da paciente não melhorou, continuando febril, apesar da redução da hidrocefalia demonstrada na tomografia de crânio (26/9/98). Em 27/9/98 apresentou parada cardiorrespiratória em fibrilação ventricular que não respondeu a sucessivas desfibrilações e às demais manobras de ressuscitação cardiorrespiratória, vindo a falecer.

Discussão

Aspectos clínicos - Trata-se de portadora de valvulopatia reumática, que apresentou convulsão e febre. A primeira idéia que nos vem à mente é a possibilidade de se tratar de um caso de endocardite infecciosa. O exame físico inicial apresenta petéquias em membros inferiores, que nos leva a pensar em fenômenos embólicos de endocardite.

A ocorrência de complicações que modificam o quadro clínico com maior ou menor rapidez tem sido causa da procura de Pronto Socorro e, conseqüente hospitalização, de percentual expressivo de pacientes com endocardite infecciosa. Eventos neurológicos de expressão infecciosa (meningite bacteriana), isquêmica (fenômeno embólico séptico) ou hemorrágica (ruptura de aneurisma micótico) constituem exemplos de participação extracardíaca na endocardite infecciosa, que demandam atenção imediata 1.

A ocorrência de quadro neurológico em portador de cardiopatia predisponente à endocardite traz como hipóteses embolia séptica ou ruptura de aneurisma micótico. Vinte a 40% dos pacientes com endocardite infecciosa apresentam envolvimento do sistema nervoso central, incidência superada somente pelo acometimento de estruturas do próprio coração 2.

Os acidentes vasculares cerebrais são a forma de envolvimento neurológico mais freqüentemente observados (37% dos casos) 3. Na dependência da natureza isquêmica ou hemorrágica, localização e extensão, podem não se exteriorizar clinicamente e serem evidenciados apenas em tomografia ou ressonância nuclear magnética. O acidente vascular cerebral isquêmico inicia-se com a embolização de fragmento ou de toda a vegetação (estéril ou não) para o território cerebral; mais freqüentemente para a artéria cerebral média e seus ramos. Vinte e oito por cento dos portadores de endocardite de valva mitral ou aórtica apresentam pelo menos um evento embólico; desses 2/3 são para sistema nervoso central 3. Do ponto de vista anatomopatológico, a oclusão do vaso é feita por trombo organizado e infiltrado polimorfonuclear. Quando a artéria cerebral média é atingida por êmbolos desenvolve-se hemiparesia com déficit sensorial contralateral.

No presente caso não havia menção de terem sido colhidas hemoculturas. Mansur e cols. 4 observaram que a identificação do agente etiológico tem quádrupla validade: 1ª) a confirmação diagnóstica. Em verdade, a endocardite infecciosa só deveria ter diagnóstico definitivo se o microrganismo tivesse sido reconhecido em cultura de vegetação ou de êmbolo periférico, ou então se ele viesse a tornar-se evidente ao estudo anatomopatológico. Em relação a hemoculturas, a positividade requer dados clínicos adicionais para considerar o episódio como provável ou possível de endocardite infecciosa 2ª) a correlação ao fator desencadeante, como infecção dentária em casos de endocardite por S. viridans, neoplasia intestinal em episódios de endocardite por S. bovis, vício em drogas em casos de endocardite por S. aureus; 3ª) é a determinação do antibiograma e verificação da concentração inibitória mínima, que servem de orientação para antibioticoterapia; 4ª) o controle da eficácia terapêutica, pela verificação do poder bactericida do soro, efetuada na primeira semana de início da terapêutica.

O agente etiológico da endocardite pode influenciar a prevalência de episódios embólicos, o S. aureus costuma estar relacionado a embolias precoces, múltiplas e, mais freqüentemente, para o sistema nervoso central. A hemorragia intracraniana é bem menos freqüente que o acidente vascular isquêmico, ocorrendo em 5% dos pacientes com endocardite 4.

Acreditava-se que hemorragia intracraniana fosse, única e exclusivamente, conseqüência de aneurisma micótico roto. Hoje está comprovado que a transformação de infarto isquêmico e a ruptura de arterite piogênica são as causas mais comuns de hemorragia intracraniana.

Com relação aos aneurismas micóticos, eles se localizam preferencialmente na artéria cerebral média, ocorrendo na bifurcação de pequenos ramos secundários e se desenvolvem em decorrência de embolização séptica para o vasa vasorum. Podem ocasionar sintomas ao crescer e comprimir estruturas vizinhas, mas, freqüentemente, são silenciosos até o seu rompimento. A ruptura pode ocorrer em fase precoce ou tardia, eventualmente muitos meses após o tratamento etiológico. Ao se romper, dificilmente ocasionam hematoma subdural; mais freqüentemente, provocam hemorragia subaracnóide, intraventricular ou intracerebral, com índice de mortalidade de 80% 4.

A meningite como manifestação do comprometimento neurológico da endocardite está presente em 2 a 7% dos pacientes 3. Suspeita-se de meningite quando há febre, cefaléia e rigidez de nuca. As alterações liquóricas podem ser agrupadas em dois padrões distintos: séptico, caracterizado por pleocitose com predomínio de polimorfonucleares; asséptico, predomínio linfocitário com dosagem de proteína discretamente elevada e glicorraquia normal (pode haver migração de um padrão para outro, na dependência do uso de antibiótico). O isolamento do agente etiológico por bacterioscopia e cultura do líquor é obtido em apenas 30% dos casos. No caso citado, temos a descrição de dois estudos liquóricos. Em 21/09 o líquor mostrava 20 células/mm3 sendo 59% de linfócitos, zero hemácias/mm3, com glicose de 41mg/dl e proteína total de 67mg/dl, em 25/09 os resultados eram 15 células/mm3 sendo 68% de linfócitos, 3.680 hemácias/mm3, com glicose de 112mg/dl e proteína total de 43mg/dl. Nos dois exames a bacterioscopia e cultura foram negativas.

O abscesso cerebral é uma complicação incomum na endocardite; manifesta-se por cefaléia, confusão mental, sinais focais, meningite ou hipertensão intracraniana.

Na investigação do paciente com acometimento neurológico secundário à endocardite alguns exames são importantes: a tomografia computadorizada, a ressonância magnética, a angiografia cerebral e a análise do líquor. Os infartos isquêmicos aparecem na tomografia computadorizada em 5% dos casos nas primeiras 4h, 50% no 1º dia e 95% no 8º dia. A ressonância magnética é superior à tomografia, pois permite visualização mais precoce. Como os aneurismas micóticos têm como antecedentes fenômenos embólicos na sua patogênese, é recomendada arteriografia nos pacientes que se recuperam de um quadro de déficit focal com boa evolução após a recuperação e nunca antes de 48h, que é o tempo mínimo de sua formação. Segundo Lunardi e cols. 3 uma única angiografia cerebral não necessariamente elimina a hipótese aneurisma micótico. Alguns autores sugerem repetição da angiografia com intervalo de 7 a 10 dias. Fica claro que um evento neurológico deve suscitar a possibilidade da realização da arteriografia cerebral, em princípio sucedendo à tomografia de crânio. No relato de exames deste caso não há descrição da realização de angiografia cerebral. Pacientes com líquor hemorrágico e cefaléia unilateral em qualquer época do curso da endocardite devem submeter-se a arteriografia dos vasos encefálicos.

Para o diagnóstico de endocardite infecciosa é necessário analisar a somatória de dados clínicos, morfológicos e microbiológicos. Em 1994, foram publicados os critérios da Duke University para o diagnóstico de endocardite infecciosa:

Definitivo

Critério patológico

Microrganismos: demonstrados por cultura ou por análise histológica em vegetação, êmbolo séptico ou abscesso cardíaco

Ou

Lesões patológicas: vegetação ou abscesso cardíaco confirmado por análise histológica demonstrando endocardite ativa

Critério clínico

Usando definições específicas:

- dois critérios maiores

- um critério maior + três menores

- cinco critérios menores

Possível

Achados consistentes com endocardite infecciosa que não se classificam nos critérios: definitivo ou rejeitado.

Rejeitado

Diagnóstico alternativo sólido.

Resolução do quadro com quatro dias ou menos de antibioticoterapia.

Nenhuma evidência de endocardite infecciosa na cirurgia ou necropsia com antibioticoterapia por quatro dias ou menos.

Critérios maiores

Hemocultura positiva

Microrganismos típicos para endocardite infecciosa em duas amostras separadas:

- Streptococcus viridans, S. bovis do grupo HACEK

Ou

- Staphylococcus aureus ou enterococos comunitários, em ausência de foco primário

Ou

- Hemocultura persistentemente positiva, definida como microrganismo compatível com endocardite infecciosa isolado a partir de:

- amostras sangüíneas colhidas com intervalo de doze horas

Ou

- todas de três, ou a maioria de quatro ou mais amostras sangüíneas separadas, com intervalo de pelo menos uma hora entre a primeira e a última

Evidência de envolvimento endocárdico:

Ecocardiograma positivo para endocardite infecciosa:

- massa cardíaca oscilante em valva ou estruturas de suporte, ou em trajeto de jato regurgitante, ou em material implantado, em ausência de explicação anatômica alternativa

Ou - abscesso

Ou - nova deiscência parcial de prótese

Nova regurgitação valvar (aumento ou modificação em sopro preexistente não-expressivo)

Critérios menores

1) Predisposição: condição cardíaca ou vício em droga injetável por via venosa.

2) Febre: ³ 38ºC.

3) Fenômeno vascular: embolia em grande artéria, infarto pulmonar séptico, aneurisma micótico, hemorragia intracraniana, hemorragia conjuntival, lesão de Janeway.

4) Fenômeno imunitário: glomerulonefrite, nódulo de Osler, mancha de Roth, fator reumatóide.

5) Evidência microbiológica: hemocultura positiva mas sem preencher os critérios maiores ou evidência sorológica de infecção ativa com microrganismo compatível com endocardite infecciosa.

6) Ecocardiograma compatível com endocardite infecciosa mas sem preencher os critérios maiores.

Foi aventada a possibilidade de tuberculose para o caso descrito. As tomografias de crânio revelaram dilatação dos ventrículos laterais (hidrocefalia) e a ressonância magnética de crânio mostrou hidrocefalia com aqueduto e quarto ventrículo livres e presença de dois granulomas no cerebelo. Na neurotuberculose temos um denso exsudato meníngeo composto por células mononucleares incluindo células epitelióides que agem como macrófagos e podem sofrer fusão e formar as células gigantes de Langhans. O bloqueio da base da cisterna subaracnóidea em volta da ponte por denso exsudato ou estreitamento do aqueduto e terceiro ventrículo por um pequeno tuberculoma causa hidrocefalia 5,6. O desenvolvimento do granuloma focal (tuberculoma) ocorre no cérebro e cerebelo. Mecanismo patogênico similar produz meningite tuberculosa.

Convém lembrar que foi demonstrada a presença de vegetações no ecocardiograma e a endocardite tuberculosa é excepcionalmente rara, usualmente manifestando-se no contexto de tuberculose miliar 7,8.

(Dra. Margleicia Maria Vasconcelos Coutinho)

Hipótese diagnóstica - Abscesso cerebral como complicação de endocardite infecciosa; doença reumática crônica.

Necropsia

O coração pesava 500g. Externamente havia aumento do volume dos átrios e áreas pequenas e focais de espessamento epicárdico, sem aderências. Aos cortes, os átrios apresentavam moderadas dilatação e hipertrofia da parede, com espessamento e opacificação difusos do endocárdio, mais acentuados no átrio esquerdo, não se encontrando trombos. A valva mitral mostrava alterações morfológicas sugestivas de estenose, observando-se espessamento difuso e áreas de calcificação das cúspides, fusão das comissuras e das cordas, com encurtamento destas últimas e acentuada oclusão dos espaços intercordais (fig. 2). A valva aórtica apresentava leve espessamento das semilunares, não se observando calcificação ou fusão de comissuras. Havia hipertrofia concêntrica, moderada, do miocárdio do ventrículo esquerdo, com áreas múltiplas e irregulares de espessamento e opacificação do endocárdio, principalmente nos músculos papilares. O ventrículo direito apresentava moderada hipertrofia miocárdica e dilatação, esta mais acentuada na via de saída. Sua superfície epicárdica era lisa e brilhante, não se observando trombos. A valva tricúspide mostrava cúspides finas, brilhantes, com cordas delicadas, sem fusão de comissuras. A valva pulmonar não apresentava alterações macroscópicas.


O estudo microscópico do coração mostrou hipertrofia de fibras miocárdicas, fibrose intersticial leve e espessamento fibroso endocárdico e epicárdico. Na valva mitral encontramos processo inflamatório crônico, com leve infiltrado inflamatório linfomononuclear, fibrose e neovascularização do estroma, compatível com valvulite crônica de etiologia reumática, sem evidências histológicas de atividade da doença. Também não foram observadas alterações morfológicas compatíveis com comprometimento reumático nas demais valvas cardíacas.

Ao exame macroscópico, as artérias coronárias apresentavam aterosclerose moderada, notando-se graus variáveis de obstrução parcial da luz, com raras áreas de calcificação da parede. A obstrução coronariana máxima observada foi de aproximadamente 60%, no terço proximal do ramo interventricular anterior da artéria coronária esquerda. Aterosclerose moderada foi encontrada também na aorta, mais acentuada na região abdominal, com calcificação de algumas placas ateroscleróticas, e nas artérias cerebrais e renais.

Os pulmões pesavam 1.000g em conjunto e exibiam edema agudo intenso, além de alterações decorrentes de congestão passiva, já com espessamento fibroso venocapilar.

Alterações macroscópicas e histológicas sugestivas de congestão passiva crônica também foram observadas no fígado e no baço.

Nos pulmões, gânglios linfáticos do hilo pulmonar, fígado e baço, encontramos múltiplos e diminutos nódulos de cor branca, medindo até 0,2cm de diâmetro que, ao estudo histológico, apresentavam-se como granulomas constituídos por células epitelióides, células gigantes do tipo Langhans e infiltrado inflamatório linfomononuclear (fig. 3), muito raramente com necrose central, caracterizando o comprometimento difuso desses órgãos por uma doença granulomatosa crônica. Em um dos gânglios do hilo pulmonar, havia também uma lesão irregular, de aproximadamente 1,5cm no maior eixo, constituída por tecido branco, com área central cavitada, preenchida por material branco, friável, de aspecto caseoso, histologicamente representada por múltiplos granulomas coalescentes, com extensa necrose caseosa central. As pesquisas histoquímicas de bactérias, fungos e bacilos álcool-ácido resistentes das lesões acima descritas resultaram negativas.


O encéfalo apresentava edema difuso, notando-se compressão das amígdalas cerebelares pela calota craniana. Havia moderado espessamento e opacificação das meninges, predominantemente na região basal do cérebro e dos hemisférios cerebelares. Na região parietal direita, no local de passagem do dreno da derivação ventricular externa, o tecido cerebral apresentava aspecto cruento e, à palpação, havia saída de pequena quantidade de líquido purulento. Aos cortes, havia moderada dilatação dos ventrículos laterais, não se observando obstrução ou dilatação do quarto ventrículo ou do aqueduto de Sylvius. No epêndima e nos plexos coróides encontramos apenas áreas pequenas e focais de leve espessamento e opacificação. O exame histológico do cérebro e cerebelo mostrou meningite crônica granulomatosa, apresentando granulomas com e sem necrose, e áreas extensas de infiltrado inflamatório misto, com necrose fibrinóide do tecido conjuntivo e da parede de vasos de pequeno calibre. Nessas áreas, através da coloração histoquímica de Ziehl-Neelsen, pudemos identificar inúmeros bacilos álcool-ácido resistentes, extra e intracelulares. A pesquisa imuno-histoquímica de micobactérias resultou positiva, utilizando-se o anticorpo policlonal anti-BCG (B0124; Dako A/S, Glostrup, Dinamarca) ou seja, um anticorpo anti-Mycobacterium bovis.

Nos rins havia alguns infartos focais pequenos, corticais, cicatrizados, e congestão medular. À microscopia havia, também, esclerose glomerular e necrose tubular aguda.

Diagnósticos anatomopatológicos - Micobacteriose generalizada (provavelmente tuberculose); cardiopatia reumática crônica.

Comentários

Trata-se de uma paciente com micobacteriose sistêmica, muito provavelmente tuberculose, apresentando também insuficiência cardíaca congestiva, decorrente de estenose mitral reumática. A causa do óbito foi edema cerebral, devido à micobacteriose meníngea. Pela evolução do quadro clínico, parece que o acentuado edema pulmonar representa mais um evento final, secundário à insuficiência cardíaca congestiva, contribuindo, mas não determinando o óbito. A paciente apresentava, também, hipertensão arterial sistêmica, aterosclerose sistêmica e diabetes mellitus.

As micobacterioses e a doença reumática crônica são doenças de grande interesse para a saúde pública, uma vez que apresentam alta incidência em países de baixo nível de desenvolvimento socioeconômico, entre os quais, infelizmente, se inclui o Brasil.

A doença reumática é a causa mais comum de estenose mitral adquirida e, dentre as valvas cardíacas, a mitral é a mais freqüentemente acometida por essa doença 9. Na valvulite crônica reumática, o comprometimento mitral se caracteriza, basicamente, por fusão de comissuras, espessamento e endurecimento das cúspides, fusão de cordas tendíneas e obstrução dos espaços intercordais, causando redução dos orifícios valvares principal e secundários. Na valva mitral desta paciente foram observadas todas as alterações citadas.

Nos países pouco desenvolvidos, apesar da incidência da doença reumática estar diminuindo, ela ainda é a causa de muitos óbitos na infância, e também é responsável por lesões cardíacas incapacitantes em adultos jovens, acarretando um grande número de plastias e trocas valvares 9.

No caso em discussão, a paciente já havia sido submetida a duas comissurotomias da valva mitral, uma há 12 anos, e a outra, há dois anos do óbito.

À necropsia, também havia comprometimento difuso dos pulmões, gânglios linfáticos do hilo pulmonar, fígado, baço e meninge por processo inflamatório crônico granulomatoso, sendo mandatórias as pesquisas de bactérias, fungos e bacilos álcool-ácido resistentes nos diferentes órgãos. As pesquisas histoquímicas de fungos e bactérias resultaram negativas. Porém, a coloração histoquímica de Ziehl-Neelsen mostrou a presença de inúmeros bacilos álcool-ácido resistentes, com morfologia de micobactérias, apenas nas lesões meníngeas.

No laboratório de anatomia patológica, a identificação de micobactérias em fluidos orgânicos ou em tecidos, pode ser feita através de métodos histoquímicos, como as colorações de Ziehl-Neelsen e de Kinyioun e, também, por imunofluorescência ou imuno-histoquímica 10.

Apesar da pesquisa imuno-histoquímica por anticorpos anti-BCG resultar positiva no caso em discussão, este método não permite a identificação do tipo específico de micobactéria, pois o anticorpo é policlonal, sendo freqüente a ocorrência de reações cruzadas entre os diferentes tipos desse microorganismo 10-11.

Outras técnicas laboratoriais, como a cultura em meio específico ou a realização de PCR (polymerase chain reaction), a partir de material obtido de fluidos orgânicos ou de tecidos doentes, permitem a identificação de algumas espécies de micobactérias 12. A técnica de PCR é um procedimento sofisticado, que consiste na extração, síntese e amplificação do ácido desoxirribonucleíco (ADN) do material a ser examinado, através da utilização de segmentos curtos e previamente conhecidos de ADN (primers) ou sondas de diferentes espécies de micobactérias 12-16.

Tanto a cultura quanto o método de PCR são sensíveis para a identificação de diferentes espécies de micobactérias; porém, a cultura é mais específica, de fácil execução e de baixo custo 9,10. A sua grande desvantagem é ser um procedimento lento pois, por exemplo, o Mycobacterium tuberculosis pode levar de três a seis semanas para ser cultivado 10. Portanto, o resultado negativo da cultura do líquor desta paciente deveria ser interpretado com reservas, pois datava de apenas quatro dias da coleta. Como não dispomos da técnica de PCR em nosso laboratório, a mesma não foi realizada.

É muito interessante observar a ocorrência de diferentes formas de apresentação histológica da micobacteriose, nos diversos órgãos desta paciente. Esta variação histológica, seja num mesmo paciente ou em diferentes indivíduos, tem sido relatada na tuberculose, e parece ser reflexo do grau de imunidade do paciente, do tipo de reação imunológica nele desencadeada e, também, da quantidade, localização e forma de apresentação dos antígenos de Mycobacterium tuberculosis na lesão 17-19.

Neste caso, considerando que os bacilos álcool-ácido resistentes eram intra e extracelulares, e que o quadro histológico nas meninges era diferente, quando comparado com a apresentação da doença nos outros órgãos da paciente, a hipótese diagnóstica mais provável dentre as micobacterioses, seria a de tuberculose 17-19. Porém, somente métodos como a cultura do material ou PCR permitiriam a certeza deste diagnóstico.

Muitas vezes, o diagnóstico de micobacteriose torna-se difícil devido à sua apresentação clínica e/ou laboratorial atípica, particularmente se o doente tem algum grau de deficiência imunológica 20. No caso em discussão, a paciente também apresentava diabetes mellitus, o que a tornaria mais susceptível a doenças infecciosas, incluindo as micobacterioses 20.

É muito importante lembrar que a incidência de infecções por micobactérias vem aumentando nos últimos anos 19,20, principalmente devido ao "ressurgimento" da tuberculose9,12 e, em pacientes com a síndrome da imunodeficiência adquirida (SIDA), à ocorrência de infecções pelo Mycobacterium avium 9,20.

(Dra. Léa Maria Macruz Ferreira Demarchi)

Referências

Editor da Seção: Alfredo José Mansur (ajmansur@incor.usp.br)

Editores associados: Desidério Favarato (dclfavarato@incor.usp.br),

Vera Demarchi Aiello (anpvera@incor.usp.br)

Correspondência: Margleicia Maria Vasconcelos Coutinho - InCor - Av. Dr. Enéas C. Aguiar, 44 - 05403-000 - São Paulo, SP - E-mail:

  • 1. Grinberg M, Mansur AJ, Décourt LV, et al. Endocardite infecciosa: aspectos peculiares de dados clínicos etiopatogênicos e a fase pré-hospitalar. Arq Bras Cardiol 1988; 51: 203-10.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Set 2002
  • Data do Fascículo
    Jun 2002
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