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Os bloqueadores dos receptores da angiotensina II (BRA-II) aumentam a incidência de infarto do miocárdio?

PONTO DE VISTA

Os bloqueadores dos receptores da angiotensina II (BRA-II) aumentam a incidência de infarto do miocárdio?

Mário Sérgio Soares de Azeredo Coutinho

Florianópolis, SC

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Mário Sérgio Soares de Azeredo Coutinho Rua Dr. Percy João de Borba 129 88036-200 - Florianópolis - SC E-mail: mario@hu.ufsc.br

O editorial escrito por Verma e Strauss no British Medical Journal de 27 novembro 2004, (349:1248) levanta a possibilidade de que os bloqueadores dos receptores da angiotensina II pudessem estar associados ao aumento da taxa de infarto agudo do miocárdio (IAM). Os ensaios clínicos usados para embasar tal hipótese foram o estudo VALUE1 e o CHARM-alternativo2. Em ambos, houve um aumento estatisticamente significativo na incidência de infartos do miocárdio com 19% (IC 95% de 2 a 38%) e 52% (IC 95% de 6 a 118%), respectivamente. Entretanto foram deixados de lado os dois maiores estudos comparativos com desfechos cardiovasculares entre os BRA-II e os inibidores da enzima conversora da angiotensina (IECA), ou seja, os estudos OPTIMAAL3 e VALIANT4.

No estudo OPTIMAAL, 5.477 pacientes pós-IAM e com disfunção ventricular esquerda foram randomizados para losartan (50 mg/dia) ou captopril (150 mg/dia). Após um seguimento de 2,7 anos, houve um excesso de mortalidade no grupo losartan, entretanto, sem atingir significância estatística (18% vs 16%, p=0,07) e a incidência de IAM entre os grupos foi igual (14%).

No estudo VALIANT, 14.703 indivíduos pós-IAM foram randomizados para valsartan, captopril ou a combinação de ambos. Os resultados se mostraram neutros em termos do desfecho primário (morte) entre os 3 grupos. O número de indivíduos com IAM foi semelhante entre os grupos valsartan (820) e captopril (840), portanto, sem indicação estatisticamente significativa (16,7% vs 17,1%) de excesso entre os grupos.

Portanto, a hipótese apresentada pelos autores de excesso de mortalidade por IAM associada ao uso dos BRA-II peca pela tendenciosidade e pela análise incompleta. O cenário ideal para se testar tal hipótese seria o de um ensaio clínico com poder estatístico para detectar diferenças clinicamente relevantes, no caso específico, a incidência de infartos do miocárdio fatais e não-fatais, na comparação entre os BRA-II e os IECA. Os resultados dos estudos ONTARGET e TRANSCEND5 são aguardados para esclarecer ainda mais esta questão. Até lá, uma alternativa seria uma meta-análise6 com todos os estudos disponíveis realizada de forma isenta e não-enviesada.

Os IECA têm uma longa história de resultados positivos e de grande relevância clínica, incluindo a redução da incidência do infarto agudo do miocárdio em pacientes de alto risco cardiovascular. Os BRA-II, até aqui, não mostraram superioridade quando comparados aos IECA neste e em outros contextos, tais como na insuficiência cardíaca. Diante destes fatos, os IECA continuam sendo a primeira opção quando se trata de inibir o sistema-renina-angiotensina em busca de resultados relevantes para o paciente. Os BRA-II são úteis nos casos de intolerância (tosse e angioedema, principalmente) aos IECA. Estes casos ocorrem entre 5 a 20% dos casos de primeira exposição aos IECA, ou seja, pelo menos 80% dos indivíduos são tolerantes aos IECA e podem usá-los cronicamente. A afirmativa de que os BRA-II não são mais alternativos, mas "substitutos" dos IECA, não tem base científica sólida. Além disso, os aspectos de custo-efetividade devem ser considerados em um país como o Brasil, e também neste item, os IECA continuam sendo superiores aos BRA-II e, portanto, a primeira escolha.

Referências

1. Julius S, Kjeldsen SE,Weber M et al. VALUE Trial Group. Outcomes in hypertensive patients at high cardiovascular risk treated with regimens based on valsartan or amlodipine: the VALUE randomised trial. Lancet 2004; 363: 2022-31.

2. Granger CB, McMurray JJ, Yusuf S et al. CHARM Investigators and Committees. Effects of candesartan in patients with chronic heart failure and reduced left-ventricular systolic function intolerant to angiotensin-converting-enzyme inhibitors: the CHARM-alternative trial. Lancet. 2003; 362: 772-6.

3. Dickstein K, Kjekshus J. OPTIMAAL Steering Committee of the OPTIMAAL Study Group. Effects of losartan and captopril on mortality and morbidity in high-risk patients after acute myocardial infarction: the OPTIMAAL randomised trial. Optimaal Trial in Myocardial Infarction with Angiotensin II Antagonist Losartan. Lancet. 2002; 360: 752-60.

4. Pfeffer MA, McMurray JJ, Velazquez EJ et al. Valsartan, captopril or both in myocardial infarction complicated by heart failure, left ventricular dysfunction or both. N Engl J Med. 2003; 349: 1893-906.

5. Teo K, Yusuf S, Anderson C et al. Rationale, design and baseline characteristics of 2 large, simple, randomised trials evaluating telmisartan, ramipril and their combination in high-risk patients: the Ongoing Telmisartan Alone and in Combination with Ramipril Global Endpoint Trial/Telmisartan Randomized Assessment Study in ACE Intolerant Subjects with Cardiovascular Disease (ONTARGET/TRANSCEND) trials. Am Heart J. 2004; 148: 52-61.

6. Lee VC, Rhew DC, Dylan M, Badamgarav E, Braustein GD, Weingarten SR. Meta-analysis: Angiotensin-Receptor blockers in chronic heart failure and high-risk acute myocardial infarction. Ann Intern Med. 2004; 141: 693-704.

Enviado em 21/01/2005

Aceito em 26/01/2005

  • Endereço para correspondência
    Mário Sérgio Soares de Azeredo Coutinho
    Rua Dr. Percy João de Borba 129
    88036-200 - Florianópolis - SC
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Jun 2005
    • Data do Fascículo
      Jun 2005
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