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A terapêutica endoscópica nas complicações biliares pós-transplante hepático

Resumos

RACIONAL: O transplante hepático é o único tratamento efetivo para as hepatopatias crônicas terminais e a taxa de sobrevida tem aumentado nas últimas décadas. No entanto, as complicações biliares têm alta incidência e permanecem como o "calcanhar de Aquiles" do transplante de fígado. OBJETIVO: Avaliar retrospectivamente os resultados do tratamento endoscópico das complicações biliares em pacientes submetidos à transplante hepático. MÉTODOS: Foram avaliados pacientes transplantados hepáticos para realização de colangiopancreatografia retrógrada endoscópica por suspeita de complicação biliar. RESULTADOS: Quinze pacientes (11 homens, média de idade de 49,57 anos) foram estudados. Nesse período foram realizadas 36 colangiopancreatografias retrógradas endoscópicas (2,4/paciente). Neste grupo, 100% receberam órgão de doador falecido. Estenose da anastomose coledococoledocociana foi diagnosticada em 13 pacientes e o sucesso da terapêutica endoscópica foi de 53,84% (38,46% ainda em tratamento). Fístula biliar foi diagnosticada em um paciente, sendo resolvida pelo tratamento endoscópico. Disfunção da âmpola hepatopancreaticobiliar com coledocolitíase foi diagnosticada em um paciente, também resolvida pela terapêutica endoscópica. CONCLUSÕES: As complicações biliares pós-transplante hepático são relativamente comuns, com predominância de estenoses. O tratamento endoscópico foi eficaz na maioria dos pacientes desta série.

Transplante hepático; Fístula biliar; Pancreatocolangiografia retrógrada endoscópica


BACKGROUND: Liver transplantation is the only effective treatment for chronic liver diseases and terminal survival rate has increased in recent decades. However, biliary complications have high incidence and remain as the "Achilles heel" for liver transplantation. AIM: To evaluate retrospectively endoscopic treatment outcomes of biliary complications in post-liver transplantations. METHODS: The sample consisted of post-liver transplantation patients for endoscopic retrograde cholangiopancreatography due to suspected biliary complications. RESULTS: Fifteen patients were included (10 male, mean age of 49.57 years) and 36 endoscopic retrograde cholangiopancreatographies were undertaken (2.4/patient). Biliary stricture was diagnosed in 13 patients and endoscopic treatment was successful in 56% (38,46% still in treatment). Biliary leaks were found in one patient and dysfunction of the hepatobilliary ampulla with choledocholithiasis was diagnosed in one patient, both cured by endoscopic treatment. CONCLUSIONS: Post-liver transplantation biliary complications are relatively common and endoscopic treatment may result in satisfactory outcome. Stenosis was the more frequent complication in this series.

Liver transplantation; Biliary fistula; Cholangiopancreatography; endoscopic retrograde


ARTIGO ORIGINAL

A terapêutica endoscópica nas complicações biliares pós-transplante hepático

Endoscopic management of biliary complications after liver transplantation

Jeany Borges e Silva RibeiroI; Fabrício de Sousa MartinsI; José Huygens Parente GarciaII; Adriano César Costa CunhaI; Ricardo Augusto Rocha PintoI; Marcus Vallerius SatacasoI; Francisco Paulo Ponte Prado-JúniorI; Ricardo Rangel de Paula PessoaIV

IHospital Geral Cesar Cals, Fortaleza, CE, Brasil

IIHospital Universitário Wálter Cantídio da Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, CE, Brasil

Correspondência Correspondência: Jeany Borges e Silva Ribeiro Capitão Francisco Pedro Street, n. 1016/105 Fortaleza, CE, Brazil. ZIP code: 60430372.

RESUMO

RACIONAL: O transplante hepático é o único tratamento efetivo para as hepatopatias crônicas terminais e a taxa de sobrevida tem aumentado nas últimas décadas. No entanto, as complicações biliares têm alta incidência e permanecem como o "calcanhar de Aquiles" do transplante de fígado.

OBJETIVO: Avaliar retrospectivamente os resultados do tratamento endoscópico das complicações biliares em pacientes submetidos à transplante hepático.

MÉTODOS: Foram avaliados pacientes transplantados hepáticos para realização de colangiopancreatografia retrógrada endoscópica por suspeita de complicação biliar.

RESULTADOS: Quinze pacientes (11 homens, média de idade de 49,57 anos) foram estudados. Nesse período foram realizadas 36 colangiopancreatografias retrógradas endoscópicas (2,4/paciente). Neste grupo, 100% receberam órgão de doador falecido. Estenose da anastomose coledococoledocociana foi diagnosticada em 13 pacientes e o sucesso da terapêutica endoscópica foi de 53,84% (38,46% ainda em tratamento). Fístula biliar foi diagnosticada em um paciente, sendo resolvida pelo tratamento endoscópico. Disfunção da âmpola hepatopancreaticobiliar com coledocolitíase foi diagnosticada em um paciente, também resolvida pela terapêutica endoscópica.

CONCLUSÕES: As complicações biliares pós-transplante hepático são relativamente comuns, com predominância de estenoses. O tratamento endoscópico foi eficaz na maioria dos pacientes desta série.

Descritores: Transplante hepático. Fístula biliar. Pancreatocolangiografia retrógrada endoscópica.

ABSTRACT

BACKGROUND: Liver transplantation is the only effective treatment for chronic liver diseases and terminal survival rate has increased in recent decades. However, biliary complications have high incidence and remain as the "Achilles heel" for liver transplantation.

AIM: To evaluate retrospectively endoscopic treatment outcomes of biliary complications in post-liver transplantations.

METHODS: The sample consisted of post-liver transplantation patients for endoscopic retrograde cholangiopancreatography due to suspected biliary complications.

RESULTS: Fifteen patients were included (10 male, mean age of 49.57 years) and 36 endoscopic retrograde cholangiopancreatographies were undertaken (2.4/patient). Biliary stricture was diagnosed in 13 patients and endoscopic treatment was successful in 56% (38,46% still in treatment). Biliary leaks were found in one patient and dysfunction of the hepatobilliary ampulla with choledocholithiasis was diagnosed in one patient, both cured by endoscopic treatment.

CONCLUSIONS: Post-liver transplantation biliary complications are relatively common and endoscopic treatment may result in satisfactory outcome. Stenosis was the more frequent complication in this series.

Headings: Liver transplantation. Biliary fistula. Cholangiopancreatography, endoscopic retrograde.

INTRODUÇÃO

O transplante de fígado é procedimento que salva vidas de pacientes com doença hepática crônica em estágio terminal ou insuficiência hepática aguda quando não há outros tratamentos clínicos e cirúrgicos disponíveis. Desde o primeiro transplante de fígado realizado por Thomas Starzl em 1963, existem avanços significativos em todos os aspectos de recuperação, seleção, preservação e técnicas de implante de órgão. A sobrevida em um ano para adultos e crianças transplantados de doador cadáver é superior a 85%; em cinco e dez anos ela é superior a 70% e 60%, respectivamente. No entanto, as complicações do trato biliar continuam a ser fonte comum de morbidade e mortalidade. Alguns autores chamam de "calcanhar de Aquiles" do transplante hepático2.

Estudos sobre resultados a longo prazo após o transplante hepático indicam que de 5% a 30% dos receptores desenvolvem complicações biliares após o transplante. Fístula biliar e estenose são as complicações mais comuns das vias biliares, mas disfunção do esfíncter de Oddi, hemobilia, e obstrução biliar do duto cístico por mucocele ou cálculos também são observados. A taxa de fístula biliar ou estenoses no local da anastomose são relatados em 15% a 60% dos receptores. Estas altas taxas de complicações pós-transplante biliar, podem apontar para natureza inerentemente sensível do epitélio biliar para dano isquêmico, em comparação com hepatócitos e endotélio vascular.

O tratamento cirúrgico tem sido a abordagem tradicional nas complicações biliares do transplante hepático. Com os avanços na endoscopia terapêutica e diagnóstica, o tratamento conservador das complicações biliares tem se tornado uma das modalidades mais utilizadas2.

O objetivo deste trabalho foi avaliar retrospectivamente os resultados do tratamento endoscópico das complicações biliares em pacientes submetidos a transplante hepático.

MÉTODOS

Foram avaliados 15 pacientes submetidos à transplante hepático (doador cadáver) encaminhados ao Serviço de Endoscopia do Hospital Cesar Calls e à uma clínica particular de endoscopia, no período de dezembro de 2004 a julho de 2011, para realização de colangiopancreatografia retrógrada endoscópica (CPRE) por suspeita de complicação biliar pós-transplante. Ela foi baseada na elevação das enzimas hepáticas ou colestáticas, presença de icterícia, prurido, dor, coleperitônio, após retirada do dreno biliar, febre ou colangite.

A CPRE e a terapêutica apropriada foram realizadas individualmente, conforme indicação do médico no momento do exame. As complicações observadas após o exame foram classificadas em leves (bacteremia, oclusão ou migração da prótese) e graves (pancreatite aguda, sangramento, perfuração) sendo avaliadas também retrospectivamente. O resultado da terapêutica endoscópica foi considerado sucesso quando houve melhora clínica, laboratorial e/ou do aspecto endoscópico. Foi considerada falha do tratamento quando não houve melhora dos parâmetros acima citados e/ou os pacientes precisaram de outra modalidade terapêutica (drenagem percutânea ou cirúrgica).

RESULTADOS

Analisaram-se 15 pacientes pós-transplante sendo 10 (66,67%) homens e cinco (33,33%) mulheres. A média de idade dos pacientes foi de 49,5 (27- 67) anos.

A causa mais frequente da doença hepática que levou os pacientes ao transplante foi a hepatite C (5/33,3%), seguida pela associação da hepatite C com hepatocarcinoma (4/ 26,7%), hepatite B (2/13,33%), hepatite B e Delta (2/13,33%), hepatite B e cirrose alcoólica (1/6,7%) e somente cirrose alcoólica (1/6,7%). A maioria dos receptores apresentava doença avançada, e foram classificados como Child B e todos receberam órgão de doador cadáver. O tempo de isquemia fria do enxerto foi em média de 5,7 h. O tempo de isquemia quente do enxerto foi em média de 41,2 min (Tabela 1).

Estenose biliar foi diagnosticada em 13 (86,7%) pacientes, disfunção da papila maior associado à coledocolitíase em um paciente (6,67%) e fístula biliar também em um paciente (6,67%) (Tabela 2). As estenoses foram dilatadas com cateter ou balão hidrostático, seguida da colocação de próteses conforme indicação do endoscopista no momento do exame. O tempo médio entre o transplante e a realização da primeira CPRE foi de 12,6 meses (1- 69) nos pacientes com estenose. Dois pacientes realizaram a CPRE tardiamente, um deles após cinco anos de transplante e outro com mais de dois anos. No período do estudo foram realizadas 33 CPRE nos 13 pacientes com estenose, com média de 2,53 (1-5) exames por paciente e três CPRE ao todo nos demais casos (Tabela 3).

O sucesso da terapêutica endoscópica nestes casos foi de 53,84 (7/13), sendo que 38,46% (5/13) ainda estão em vigência de tratamento e um paciente morreu na vigência de tratamento por recidiva de hepatocarcinoma. No caso do paciente com fístula biliar houve sucesso no tratamento endoscópico com prótese plástica, como também no com coledocolitíase associada à disfunção da ampola hepatopancreaticaduodenal, sendo tratado com papilotomia e retirada de cálculos. O tempo médio de permanência com a prótese biliar foi de 8,73 meses (0-16). Dos 13 com estenose da anastomose, apenas um paciente evoluiu com recidiva da estenose, sendo tratado endoscopicamente com balão dilatador, sem necessidade de prótese. A mediana do tempo de segmento pós-resolução da estenose foi de 28 meses. (Tabela 3).

O seguimento pós-transplante hepático variou de quatro a 86 meses, com mediana de 27 meses.

Houve um óbito por recidiva de hepatocarcinoma pós-transplante, um caso de bacteremia pós-CPRE e alguns casos de obstrução de próteses, predominante nos pacientes que passaram maior tempo com prótese biliar.

DISCUSSÃO

O cenário das complicações biliares após transplante hepático mudou rapidamente nas últimas duas décadas. O tratamento convencional destas condições no passado foi exclusivamente cirúrgico. No entanto a endoscopia terapêutica desempenha papel importante no tratamento de estenose anastomótica pós-transplante de fígado. Atualmente, a abordagem endoscópica preferencial é a dilatação agressiva da estenose e inserção de múltiplos stents plásticos, particularmente em estenoses anastomóticas. Modalidades cirúrgicas e percutâneas estão agora reservadas para pacientes com falha do tratamento endoscópico e para aqueles com múltiplas estenoses intra-hepáticas ou com anastomoses em Y de Roux inacessíveis. Próteses metálicas recobertas ou bioabsorvíveis podem fornecer resultados superiores e merecem investigação mais aprofundada. A área de terapêutica endoscópica continuará a evoluir e oferecer oportunidades a novas técnicas inovadoras de transplante de fígado que desenvolvam estenose da via biliar.

Atualmente, a CPRE é indicada para definição e tratamento das complicações biliares pós-transplante hepático, com índices de sucesso satisfatórios evitando grande número de reoperações. Complicações biliares podem ocorrer em 6% a 39,5% dos pacientes submetidos à transplante hepático, sendo mais frequentes após o transplante hepático intervivos. O desenvolvimento das complicações pode ser determinado por uma série de fatores, tais como: doença de base, operação biliar prévia, tipo da anastomose, desproporção entre o tamanho da via biliar do doador e receptor, extensão inadequada da via biliar do enxerto e complexidade anatômica da via biliar direita, que pode resultar na anastomose de mais de um ramo biliar. Outros fatores importantes que podem contribuir para o desenvolvimento da complicação biliar são: utilização de drenos biliares, infecção (citomegalovirus, CMV) e isquemia5.

Na presente casuística, houve predominância do sexo masculino, com média de idade de 49,4 anos, semelhante ao encontrado na literatura consultada. A causa mais frequente de transplante hepático foi a hepatite C, também de acordo com a literatura. O mais frequente diagnóstico encontrado foi o de estenose biliar, com um índice superior ao encontrado na literatura

Segundo Rerknimitr et al4, analisando o resultado da terapia endoscópica de 43 pacientes submetidos à tranplante hepático de doador cadáver, evoluindo com estenose da anastomose biliar houve média de 8,3 meses(0,5-60) do transplante até a realização da CPRE, inferior ao valor encontrado nesta casuística. Em uma casuística semelhante de 25 pacientes, Zoepf et al.7 encontrou o intervalo médio de tempo da realização do transplante até a CPRE de cinco meses (1-33) e Pasha et al.3, em casuística similar de 25 pacientes encontrou o intervalo médio de tempo de dois meses (0,2-24)2.

A média de CPRE por paciente foi 3,8 (1-8) na casuística de Rerknimitr et al.4 Holt et al.1 encontrou taxa de sucesso da terapêutica endoscópica de 69%, um pouco superior ao encontrado nesta casuística, utilizando como modalidade terapêutica o balão dilatador associado à endoprótese, com média de duração da terapêutica endoscópica de 11,3 meses (7-14), também superior ao encontrado neste estudo. Para Pasha et al.3, o tempo mediano de segmento sem a prótese foi de 15 meses, um pouco superior ao deste trabalho. Quanto à recorrência da estenose da anastomose, Zoepf et al7 relatou taxa de 31%, superior ao desta série. A taxa de complicações em recente revisão publicada na literatura, variou de 5% a 24%1.

CONCLUSÕES

As complicações biliares pós-transplante hepático são relativamente comuns, com predominância de estenoses. O tratamento endoscópico foi eficaz na maioria dos pacientes desta série.

Recebido para publicação: 04/06/2012

Aceito para publicação: 22/08/2012

Fonte de financiamento: não há

Conflito de interesses: não há

Trabalho realizado no 1Hospital Geral Cesar Cals, Fortaleza, CE, Brasil e; 2Hospital Universitário Wálter Cantídio da Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, CE, Brasil.

  • 1. Holt AP, Thorburn D, Mirza D, Gunson B, Wong T, Haydon G. A prospective study of standardized nonsurgical therapy in the management of biliary anastomotic strictures complicating liver transplantation. Transplantation 2007;84:857-863.
  • 2. Martins FP, Tafarel JR, Ferrari AP. Terapêutica endoscópica nas complicações biliares pós-transplantes hepáticos. Einstein. 2008; 6(4):422-7
  • 3. Pasha SF, Harrison ME, Das A, Nguyen CC, Vargas HE, Balan V, Byrne TJ, Douglas DD, Mulligan DC.. Endoscopic treatment of anastomotic biliary strictures after deceased donor liver transplantation: outcomes after maximal stent therapy. Gastrointest Endosc 2007;66:44-51.
  • 4. Rerknimitr R, Sherman S, Fogel EL, Kalayci C, Lumeng L, Chalasani N, Kwo P, Lehman GA.. Biliary tract complications after orthotopic liver transplantation with choledochocholedochostomy with whole-liver transplants. Transplant Proc 2005;37:1164-1166
  • 5. Ryu CH, Lee SK. Biliary Strictures after Liver Transplantation. Gut and Liver. 2011; 5( 2):133-142.
  • 6. Thuluvath PJ, Atassi T, Lee J. An endoscopic approach to biliary complications following orthotopic liver transplantation. Liver Int 2003;23:156-162.
  • 7. Zoepf T, Maldonado-Lopez EJ, Hilgard P, Malago M, Broelsch CE, Treichel U, Gerken G.. Balloon dilatation vs. balloon dilatation plus bile duct endoprostheses for treatment of anastomotic biliary strictures after liver transplantation. Liver Transpl 2006;12:88-94.
  • Correspondência:
    Jeany Borges e Silva Ribeiro
    Capitão Francisco Pedro Street, n. 1016/105
    Fortaleza, CE, Brazil. ZIP code: 60430372.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      07 Fev 2013
    • Data do Fascículo
      Dez 2012

    Histórico

    • Recebido
      04 Jun 2012
    • Aceito
      22 Ago 2012
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