EDITORIAL
Efeitos antiinflamatórios e antiproliferativos dos glicocorticóides: concordância ou discordância?
Margaret de Castro
Professora Associada, Divisão de Endocrinologia, Departamento de Clinica Médica da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, SP
Endereço para correspondência Endereço para correspondência Margaret de Castro Departamento de Clínica Médica Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto USP Avenida Bandeirantes 3900 14049-900 Ribeirão Preto, SP E-mail: castrom@fmrp.usp.br
A AÇÃO DOS GLICOCORTICÓIDES (GC) é mediada por um receptor protéico intracelular, o receptor de GC (RG), que pertence à superfamília dos receptores nucleares e age como um fator de transcrição ativado pelo hormônio, regulando a expressão dos genes responsivos aos GC. O gene do RG humano (GenBank NR3C1) encontra-se na porção distal do cromossomo 5, sendo composto por 9 éxons. Várias isoformas do receptor são produzidas por splicing alternativo de um único gene (1,2). A isoforma a, a forma clássica do RG, é o mediador primário da ação dos GC; a isoforma b não se liga aos GC e age como um inibidor dominante negativo da isoforma a (3,4).
O receptor inativo, não-ligado ao hormônio, encontra-se no citoplasma associado a um complexo multiprotéico que consiste de uma molécula do receptor, duas moléculas da proteína de choque térmico (hsp) 90, uma molécula de hsp 70, uma de hsp 56, hsp 40, p23 e p60 (5). A principal função do complexo RG/hsp é manter o receptor no citoplasma das células, estabilizado-o em sua forma inativa, e facilitar a ligação do hormônio ao RG. Após a ligação ao hormônio, o RG é dissociado do complexo e ocorrem alterações na conformação da molécula do receptor ocorrendo a dimerização do RG. O mecanismo de transativação gênica é a forma clássica de ação dos GC e caracteriza-se pela interação direta de dímeros do receptor do RG com uma seqüência palindrômica específica no DNA, chamada elemento responsivo aos glicocorticóides (ERG), presente geralmente na região promotora dos genes. A ligação do dímero de RG diretamente aos ERG estimula a transcrição dos genes responsivos aos GC, com envolvimento de componentes básicos da maquinaria de transcrição gênica, como a RNA polimerase II e fatores gerais da transcrição, além de fatores coativadores e correpressores da transativação (6,7).
Além da propriedade de ativar a transcrição gênica, o RG pode, também, reprimi-la. A transrepressão pode ocorrer pela ligação do RG aos elementos responsivos negativos aos glicocorticóides (nERG), localizados na região promotora de genes específicos, como o promotor do gene da proopiomelanocortina. Um segundo mecanismo de regulação da transrepressão gênica mediada pelos GC não envolve processos dependentes de ERG, porém interações do RG com outros fatores de transcrição, por meio de um antagonismo inibitório dependente de interação proteína-proteína. Os efeitos antiinflamatórios e imunossupressores dos GC envolvem esta regulação negativa da transcrição gênica. A proteína ativadora-1 (AP-1) e o NFkB são os fatores mais extensivamente estudados, que interferem negativamente com a transativação mediada pelo RG (8). Mais recentemente, tem sido descrita uma inibição pelos GC da via de sinalização utilizada pelos ";toll-like receptors"; (TLRs), os quais têm um papel crucial na indução da resposta imunológica inata, por reconhecer patógenos e promover a expressão de moléculas co-estimuladoras, comuns na tradução dos sinais e na expressão de genes pró-inflamatórios (9).
Os efeitos dos GC sintéticos são mediados pelo mesmo receptor do GC endógeno. Nos últimos 50 anos, os GC têm sido a droga com efeito antiinflamatório e imunossupressor mais comumente utilizada para o tratamento de doenças inflamatórias agudas e crônicas. Seus excelentes efeitos terapêuticos como antiinflamatório e imunossupressor são, freqüentemente, acompanhados por graves e, algumas vezes, irreversíveis efeitos colaterais, como diabetes mellitus, úlcera péptica, síndrome de Cushing com supressão do eixo hipotálamo-hipófise-adrenal, osteoporose, atrofia cutânea, psicose, glaucoma, entre outras (10), ficando o uso dos GC limitado por estes efeitos colaterais
A maioria dos GC sintéticos disponíveis, incluindo a budesonida, o propionato de fluticasona e a mometasona, drogas estudadas no presente estudo de Longui e cols. (11), quanto ao efeito não proliferativo in vitro, tem uma razoável taxa terapêutica, devido à absorção direta pela mucosa do pulmão e remoção da fração deglutida da droga pelo metabolismo hepático; entretanto, os efeitos sistêmicos podem ser observados se utilizadas em altas doses (12). Portanto, continua um desafio para a pesquisa farmacêutica o desenvolvimento de esteróides seguros. Novas drogas, mais modernas, têm sido desenvolvidas, como os GC inalados não halogenados, os quais são ativados nos pulmões através da clivagem de um éster no carbono 21 (C21) para formar um metabólito ativo que apresenta alta atividade antiinflamatória local no pulmão; como estes GC estão conjugados a ácidos graxos ocorre, ainda, um prolongamento da atividade antiinflamatória no local. Estas drogas, essencialmente, não apresentam biodisponibilidade na sua forma oral, pois além de circularem sistemicamente associadas a proteínas ligadoras, são rapidamente eliminadas pelo organismo, levando a uma diminuição dos efeitos colaterais.
Estudos investigando a responsividade aos GC em um animal transgênico, apresentando um receptor mutado no domínio de dimerização do RG (GRdim/dim) têm apoiado a hipótese de que os efeitos antiinflamatórios dos GC parecem ser regulados por transrepressão e os efeitos colaterais mediados por transativação. Esta mutação previne a dimerização do receptor e, conseqüentemente, sua capacidade de ligação ao DNA, rompendo com as ações clássicas de transativação mediadas pelo RG (diabetes mellitus, glaucoma), porém, as ações de transrepressão e os efeitos antiinflamatórios seriam mantidos (10,13).
Um estudo recente forneceu esclarecimentos quanto aos mecanismos moleculares envolvidos nos efeitos mediados pelo RG, confirmando que os efeitos terapêuticos seriam mediados por transrepressão, enquanto os efeitos colaterais seriam mediados por transativação. Utilizaram um composto não esteroidal, o SEGRA (composto ZK 216348), o qual se liga ao RG com elevada afinidade, mas preferencialmente induz transrepressão do RG. Embora o composto ZK 216348 se ligue ao RG com um afinidade similar à dexametasona, ele é menos ativo em todos os estudos celulares in vitro (14). Uma possível explanação para esta discrepância seria que a estrutura do ZK 216348 apresentaria diferentes propriedades físico-químicas e um comportamento celular diferente e/ou que este ligante não induziria as alterações conformacionais no RG necessárias para desencadear seus efeitos. No entanto, a atividade antiinflamatória do composto SEGRA foi semelhante à da prednisona. Estes dados, em conjunto, sugerem que a transrepressão seletiva seria suficiente para a atividade antiinflamatória in vivo e estão de acordo com as observações em camundongos transgênicos GRdim/dim. Adicionalmente, demonstraram que a dissociação entre transrepressão e transativação observada com o composto ZK 216348 in vitro refletia uma melhora no índice terapêutico in vivo, após a administração tópica e sistêmica. De fato, o composto induziu uma diminuição dos efeitos mediados pela transativação, tal como aumento da glicose no sangue, diminuindo o risco de indução de diabetes quando comparado com a prednisona. Houve ainda, em comparação ao uso de prednisona, redução do peso dos órgãos linfóides após administração por longo tempo de uso sistêmico ou tópico do composto ZK 216348. Não houve diferença quanto à supressão do eixo hipotálamo-hipófise-adrenal, provavelmente pelo fato de a regulação do CRH e do ACTH mediada pelo RG ocorrer por mecanismo de transrepressão.
Glicocorticóides também induzem inibição da proliferação de várias células, incluindo fibroblastos. Esta é uma possível causa da atrofia cutânea, às vezes irreversível, observada com o tratamento de longo tempo com GC. Muitas evidências sugerem que os efeitos antiproliferativos dos GC são acompanhados pela indução de apoptose. Um exemplo seria o uso de GC no tratamento das leucemias, onde esta droga induziria apoptose nos linfócitos. Trabalhos recentes na literatura têm tentado elucidar se as ações antiproliferativas dos GC em fibroblastos são acompanhadas pela indução de apoptose. Utilizando dexametasona, os resultados demonstraram que concentrações do GC que inibiram fatores de crescimento não obrigatoriamente induziram apoptose dos fibroblastos. Adicionalmente, a dexametasona protegeu as células de apoptose induzida pelo fator de necrose alfa (TNFalfa)/ actinomicina e irradiação UV (15).
O estudo de Longui e cols. (11) avaliando a potência relativa de diferentes GC na modulação da sobrevida celular de linfoblastos córtico-sensíveis (linhagem celular CEM-C7/14) comparando com potências antiinflamatórias descritas previamente na literatura, é bastante interessante. Os autores analisam diferentes GC sintéticos, entre os quais existem alguns sem referências na literatura de estudos semelhantes. Os autores desse artigo demonstram que durante o uso de concentrações baixas (10-8 e 10-7 molar) observou-se sobrevida semelhante dos linfoblastos após tratamento com hidrocortisona ou metilprednisolona; porém, esta última levou a uma menor sobrevida celular que a hidrocortisona. Nestas mesmas baixas concentrações, a sobrevida celular foi ainda menor quando se utilizou dexametasona, betametasona, budesonida ou mometasona. Raciocínio semelhante pode ser aplicado em relação às doses para se obter o EC50. Portanto, quando analiso os dados do trabalho, não observo, conforme sugerem os autores, discordância entre efeitos antiinflamatórios, descritos na literatura e não citados no presente estudo, e os efeitos antiproliferativos destes GC.
Embora discrepâncias entre atividade antiinflamatória e potências antiproliferativas descritas em estudos experimentais sejam de grande interesse terapêutico e um incentivo para o desenvolvimento de novas drogas, não creio que com os GC sintéticos hoje disponíveis tenhamos obtido as drogas ideais para tratamento com GC. O desenvolvimento de compostos com potência antiinflamatória semelhante aos atuais GC, mas com redução dos efeitos colaterais, como agonistas seletivos do receptor do GC que modulem diferencialmente as atividades de transativação e transrepressão do RG deverão ser o alvo da pesquisa farmacêutica.
REFERÊNCIAS
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
13 Out 2005 -
Data do Fascículo
Jun 2005