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Estudo morfométrico do fígado de ratos submetidos a doses supra-fisiológicas de tiroxina

Resumos

Tireotoxicose é o estado hipermetabólico causado pelo excesso de hormônios tireoidianos circulantes, que exercem sua ação praticamente em todos os tecidos. No presente estudo avaliou-se, por métodos estereológicos, o fígado de ratos tratados com doses supra fisiológicas de T4 (20µg/100g de peso de corporal) durante 20 dias. Os níveis séricos de T4 desses animais estavam significativamente elevados (p=0,02). Houve tendência a perda de peso corporal dos animais tratados em relação ao grupo controle (p=0,10), enquanto o peso do fígado teve aumento, embora não significativo (p=0,08). A proporção do parênquima lobular foi maior (p=0,05) e a fração volumétrica do parênquima lobular ocupada pelas células de Kupffer foi significantemente menor (p=0,05) nos animais hipertireóideos que nos controles. Houve depleção significativa do glicogênio hepático no parênquima lobular, em relação ao grupo controle (p=0,008). Concluiu-se, então, que a tireotoxicose provoca hiperplasia e/ou hipertrofia dos hepatócitos, com redução das reservas energéticas.

Hipertireoidismo; Morfometria; Fígado; Glicogênio; Ratos


Thyrotoxicosis is a hypermetabolic state caused by elevated levels of free T3 and T4 in the blood, acting in nearly all body tissues. In this study, livers of rats treated with supraphysiologic doses of T4 (20µg/100g of body weight) for 20 days, and that had significantly increased serum T4 (p=0.02), were analyzed by stereologic methods. The treated rats lost body weight, while the control group did not (p=0.10), and their liver weight increased (p=0.08). The non-lobular parenchyma proportion was decreased in the T4-treated rats; thus, lobular parenchyma was significantly increased (p=0.05). The Kupffer cell volumetric fraction in the lobular parenchyma was significantly lower (p=0.05) than in controls. There was a significant hepatic glycogen depletion in the lobular parenchyma, as compared with the control group (p=0.008). In conclusion, thyrotoxicosis induces hyperplasia and/or hypertrophy of the hepatic cells, with reduction of the energy reserve.

Hypertyroidism; Morphometry; Liver; Glycogen; Rats


artigo original

Estudo Morfométrico do Fígado de Ratos Submetidos a Doses Supra-Fisiológicas de Tiroxina

Míriam F.B. Engelman

João Guidugli Neto

Carlos H.V. Andrade

Rosana Hernandez

Lúcia B.N.T. Goulart

Departamento de Clínica Médica,

Faculdade de Medicina da Universidade

de Alfenas, MG; Departamento de

Clínica Médica, Faculdade de Medicina

da Universidade de Pouso Alegre, MG e

Departamento de Patologia,

Universidade Federal de São Paulo

(UNIFESP/EPM), São Paulo, SP.

Recebido em 08/05/00

Revisado em 19/09/00 e em 30/11/00

Aceito em 04/12/00

RESUMO

Tireotoxicose é o estado hipermetabólico causado pelo excesso de hormônios tireoidianos circulantes, que exercem sua ação praticamente em todos os tecidos. No presente estudo avaliou-se, por métodos estereológicos, o fígado de ratos tratados com doses supra fisiológicas de T4 (20µg/100g de peso de corporal) durante 20 dias. Os níveis séricos de T4 desses animais estavam significativamente elevados (p=0,02). Houve tendência a perda de peso corporal dos animais tratados em relação ao grupo controle (p=0,10), enquanto o peso do fígado teve aumento, embora não significativo (p=0,08). A proporção do parênquima lobular foi maior (p=0,05) e a fração volumétrica do parênquima lobular ocupada pelas células de Kupffer foi significantemente menor (p=0,05) nos animais hipertireóideos que nos controles. Houve depleção significativa do glicogênio hepático no parênquima lobular, em relação ao grupo controle (p=0,008). Concluiu-se, então, que a tireotoxicose provoca hiperplasia e/ou hipertrofia dos hepatócitos, com redução das reservas energéticas.

Unitermos: Hipertireoidismo; Morfometria; Fígado; Glicogênio; Ratos.

ABSTRACT

Thyrotoxicosis is a hypermetabolic state caused by elevated levels of free T3 and T4 in the blood, acting in nearly all body tissues. In this study, livers of rats treated with supraphysiologic doses of T4 (20µg/100g of body weight) for 20 days, and that had significantly increased serum T4 (p=0.02), were analyzed by stereologic methods. The treated rats lost body weight, while the control group did not (p=0.10), and their liver weight increased (p=0.08). The non-lobular parenchyma proportion was decreased in the T4-treated rats; thus, lobular parenchyma was significantly increased (p=0.05). The Kupffer cell volumetric fraction in the lobular parenchyma was significantly lower (p=0.05) than in controls. There was a significant hepatic glycogen depletion in the lobular parenchyma, as compared with the control group (p=0.008). In conclusion, thyrotoxicosis induces hyperplasia and/or hypertrophy of the hepatic cells, with reduction of the energy reserve.

Keywords: Hypertyroidism; Morphometry; Liver; Glycogen; Rats.

TIREOTOXICOSE É O ESTADO HIPERMETABÓLICO causado pelo aumento dos hormônios tireoidianos (T3 e T4) circulantes (1). Esses são substâncias hidrofóbicas que circulam ligadas a proteínas plasmáticas carreadoras, principalmente a a-globulina de ligação da tiroxina (TBG) (2). Embora haja evidências de ações extranucleares (membrana plásmatica e mitocôndrias) dos hormônios tireoidianos (3), o que está comprovado é a sua ação nuclear, desencadeada pela ocupação de receptores nucleares que exibem grande afinidade pelo T3, ativando a transcrição gênica e promovendo, assim, a síntese de proteínas específicas, como fatores de crescimento, hormônios e enzimas, aumentando o metabolismo intermediário e o crescimento em vários tecidos (4-6).

As células de diferentes tecidos possuem número diferente de receptores nucleares e o fígado, assim como o cérebro, coração e rim, é um órgão altamente responsivo à ação dos hormônios tireoidianos. O fígado tem um papel importante no metabolismo dos hormônios tireoidianos e estes também são importantes para a função hepática normal e o metabolismo das bilirrubinas (7). Diversos estudos correlacionam hipertireoidismo com alterações clínicas e das provas de função hepática, no entanto, as disfunções hepáticas em pacientes hipertireóideos não são bem caracterizadas (8).

Alterações da tireóide podem afetar o fígado causando lesões e alterações funcionais na ausência de doença hepática prévia (9), assim como nos casos de insuficiência cardíaca de alto débito, com congestão hepática crônica (10). Também em decorrência do uso de drogas, como o propiltiouracil, utilizadas no tratamento do hipertireoidismo (11), potencializando ou agravando lesões hepáticas de outras causas (12,13), ou até induzindo toxicidade por drogas (14).

Diversos autores descrevem alterações histológicas do fígado em pacientes com hipertireoidismo, entre essas esteatose, degeneração hidrópica, hiperplasia das células de Kupffer, depleção de glicogênio nos hepatócitos, pequenos focos de necrose, infiltrado mononuclear, congestão passiva, áreas extensas de necrose na tireotoxicose grave e alterações crônicas que variam de fibrose portal leve até franca cirrose (8,15,16).

Estudos recentes demonstram que os hormônios tireoidianos podem aumentar a comunicação célula a célula, modulando a ação das chamadas junções comunicantes (junções GAP) no fígado de ratos (17). Tal efeito também é relatado em decorrência da ação de outros hormônios pertencentes à grande super- família dos receptores intracelulares (18), tais como o estrógeno (19) e retinóides (20). As junções comunicantes ou em fendas são grupos de canais intercelulares que permitem a troca de íons, de segundos mensageiros e de pequenos metabólitos entre as células de um tecido permitindo a coordenação da atividade celular, como a regulação do crescimento, a diferenciação e a sinalização do desenvolvimento (21). Os hormônios tireoidianos também podem influenciar a síntese de DNA e, portanto, a divisão celular durante a regeneração hepática em ratos, regulando a atividade de enzimas, como a Timidinacinase (22).

A maneira clássica para se descrever a unidade funcional do fígado envolve o conceito do chamado lóbulo hepático. Histologicamente, o lóbulo hepático apresenta forma hexagonal, com uma veia centro-lobular e com as tríades portais nas extremidades desse hexágono imaginário. As colunas de hepatócitos dispõem-se lado a lado, a partir da veia central e entre elas estão situados os sinusóides hepáticos, que transportam o sangue que chega pelos ramos da veia porta e da artéria hepática e os chamados espaços de Disse. Há ainda os canalículos biliares que transportam a bile até os ductos biliares, nos espaços porta (23).

Em 1969, Weibel e cols. (24) descreveram os dados morfométricos normais em fígado de ratos. Segundo os autores, estudos pela microscopia de luz demonstraram que 96% do volume hepático dos ratos é constituído pelo parênquima lobular, isto é, pelos hepatócitos, sinusóides, espaços de Disse e capilares biliares, enquanto os 4% restantes constituem o parênquima não lobular, ou seja, espaços portais, veias centro-lobulares e ramos da veia hepática.

As células de Kupffer são as representantes, no fígado, do chamado Sistema Fagocitário Mononuclear e proliferam em diversas situações inespecíficas, quando há agressão hepática ou sistêmica (23), sendo a hiperplasia das mesmas descrita na tireotoxicose (7,16).

O metabolismo dos carboidratos, assim como o das gorduras, e o metabolismo protéico são estimulados, em quase todos os seus aspectos, pelos hormônios tireoidianos (25-27). O fígado tem papel central no metabolismo dos carboidratos, sendo que o glicogênio é um componente importante da célula hepática, que à microscopia eletrônica se apresenta sob a forma da grânulos grosseiros, geralmente localizados na zona do retículo endoplasmático liso, funcionando como um depósito que o hepatócito mobiliza quando ocorre hipoglicemia.

Apesar do T3 estimular a síntese do glicogênio em cultura de células hepáticas de ratos, o estado hipertireóideo está associado à depleção do glicogênio hepático, e isto poderia ser explicado por: (1) um efeito direto do hormônio tireoidiano no metabolismo do glicogênio hepático; (2) alterações na concentração de hormônios circulantes que têm efeitos diretos no metabolismo do glicogênio hepático (insulina, glucagon e catecolaminas); (3) alterações na sensibilidade do hepatócito à insulina ou aos hormônios glicogenolíticos; (4) alterações na oferta de glicose ou precursores glicogênicos ao fígado (28).

O presente trabalho tem como objetivo estudar por métodos estereológicos a morfologia hepática em ratos submetidos a doses supra fisiológicas de T4, na tentativa de evidenciar seus efeitos sobre o crescimento e a proliferação celular e o conteúdo de glicogênio.

MATERIAL E MÉTODO

Foram utilizados 18 ratos machos (Rattus norvergicus albinus) da linhagem Wistar, provenientes do Biotério Central da Universidade de Alfenas, com peso corporal entre 400 e 500 gramas e idade entre 4 e 5 meses, distribuídos aleatoriamente, de maneira pareada em relação ao peso, em 2 grupos de 9 animais, acomodados em gaiolas individuais, devidamente identificados, com acesso livre à água e à ração própria para a espécie (Labina®). O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de São Paulo.

O hormônio tireoidiano foi administrado por meio de sondagem oro-gástrica, utilizando agulha de raquianestesia nº6 com uma esfera soldada na ponta. O Grupo estudo recebeu, diariamente, a dose de 20µg/100 gramas de peso corporal, ou seja, 2ml/kg de peso, de uma suspensão de T4 a 0,01%, que foi obtida com 10 comprimidos de 100µg de T4 (Synthroid®, Knoll) em 10ml de água destilada. Também por gavagem, ao Grupo controle foi administrada, diariamente, água destilada na quantidade de 2ml/kg de peso corporal. Após 20 dias, os animais foram pesados, sedados com thiopental sódico a 25%, na dose de 3ml/kg de peso, por via intraperitonial, e submetidos a laparatomia e punção da veia cava inferior para a retirada de 2ml de sangue, que foi centrifugado durante 10 minutos. O coração foi retirado para certificar-se do óbito de cada animal. Os fígados foram retirados, pesados em balança analítica e fixados em solução de formalina neutra a 10%. Parte do material foi fixado em álcool absoluto, para pesquisa de glicogênio. Do material coletado, foram realizadas preparações histológicas com 5µm de espessura, coradas pela técnica da hematoxilina-eosina, PAS (ácido periódico e reativo Schiff), PAS com diástase e tricrômico de Masson.

Antes do processamento do material, a numeração das amostras foi substituída, de maneira que, até a apuração dos resultados, não se teve conhecimento de qual grupo pertencia cada um dos animais.

Os níveis totais de T4 circulante foram dosados utilizando-se método de imunoensaio enzimático por polarização e fluorescência (FPIA).

Determinou-se, por métodos estereológicos, a proporção entre o parênquima não lobular e lobular do fígado dos ratos dos dois grupos, utilizando uma quadrícula com 100 pontos-teste, colocada sobre a imagem digitalizada das preparações histológicas coradas pelo tricrômico de Masson, pois este facilita a visualização dos espaços porta ao utilizar-se métodos esterológicos, ou seja, pela simples contagem de pontos. Em virtude do tamanho relativamente grande das estruturas avaliadas e da necessidade de uma visão global do corte histológico a contagem foi feita de maneira aleatória em 20 campos de menor aumento (40x) para cada rato (figura 1A).


De maneira semelhante, quantificou-se as células de Kupffer e, como se trata de uma estrutura relativamente pequena, realizou-se a contagem das mesmas em 10 campos microscópicos de grande aumento (400x), de cada animal, em preparações coradas pela hematoxilina-eosina, nas quais se pode evidenciar o núcleo alongado e característico das células em relação aos núcleos volumosos e arredondados dos hepatócitos (figura 1B).

Realizou-se o estudo morfométrico para quantificar o glicogênio hepático, utilizando as preparações histológicas coradas pelo PAS, em campos de maior aumento (400x), já que se trata de um elemento intracitoplasmático. A contagem foi feita em 5 campos microscópicos, considerando-se a homogeneidade e proporcionalidade dos achados para cada amostra (desvio padrão pequeno na maioria das lâminas). Teve-se o cuidado de utilizar para tal estudo os fragmentos hepáticos fixados em álcool absoluto, tendo em vista que o glicogênio é uma substância hidrossolúvel e poderia se dissolver se o material fosse preservado em fixadores habituais, de base aquosa. As imagens foram digitalizadas e utilizadas para a quantificação do glicogênio hepático, com a ajuda dos programas de computador Corel PHOTO-PAINT 7 (Eastman Kodak Company) e Image–tool for Windows 1,27 (UTHSCSA).

As variáveis estudadas foram todas quantitativas. As paramétricas foram analisadas pelo teste t de Student, para os valores independentes. As não paramétricas foram estudadas pelo teste de Mann-Whitney. Considerou-se o nível de rejeição da hipótese de nulidade a 5% (p<0,05).

RESULTADOS

Os níveis séricos de T4 dos animais submetidos à ação do hormônio tireoidiano mostraram-se significativamente elevados (p=0,02). Houve tendência à perda de peso corporal dos animais tratados em relação ao grupo controle (p=0,10), enquanto o peso do fígado teve aumento, embora não significativo (p=0,08). A proporção do parênquima lobular foi maior (p=0,05) e a fração volumétrica do parênquima lobular ocupada pelas células de Kupffer foi significantemente menor (p=0,05) nos animais hipertireóideos que nos controles. Houve uma depleção significativa do glicogênio hepático no parênquima lobular em relação ao grupo controle (p=0,008).

Os resultados encontrados estão resumidos na tabela 1.

DISCUSSÃO

Os métodos para indução do hipertireoidismo agudo e crônico foram propostos por diversos autores (29). Em nosso estudo, os ratos receberam doses elevadas de T4 (20µg/100g de peso corporal), durante 20 dias, tempo suficiente para induzir tireotoxicose crônica. O T4 (L-tiroxina) é a forma menos ativa do hormônio tireoidiano, que na célula é quase todo transformado em T3 (triiodotironina) (4). Conseqüentemente, a sua ação máxima ocorre mais tardiamente do que a ação da forma ativa, porém seus níveis permanecem mais elevados durante um período maior, sendo, portanto, a forma ideal para indução do hipertireoidismo crônico. A via oral, por meio da sondagem oro-gástrica, foi escolhida por ser considerada mais prática do que a administração por injeções. A preparação comercial usada mostrou-se ser a mais facilmente solúvel em água destilada. As doses administradas foram baseadas em estudos experimentais ainda não publicados (Araújo MFA, 1999), quando se usou 10µg/100g de peso corporal, sendo esta dosagem bem tolerada e não induzindo alterações nos órgãos estudados. Os níveis séricos de T4 dosados foram significativamente mais altos (p=0,02) nos animais que receberam o hormônio tireoidiano que nos controles.

Apesar da diferença do peso dos animais dos dois grupos, entre o início e o fim do experimento, não ter significância estatística, houve uma tendência (p=0,10) à perda de peso corporal nos animais do grupo estudo. Tal fato não invalida a hipótese de tireotoxicose, pois apesar do excesso dos hormônios tireoidianos causar quase sempre uma diminuição ponderal, por promover um acentuado aumento do metabolismo geral e por estimular diretamente a lipólise (30), também leva a um aumento do apetite (29), promovendo ingestão calórica maior, o que pode explicar a manutenção ou o ganho de peso em alguns dos animais do grupo estudo, visto que todos tiveram livre acesso à ração própria para a espécie durante todo o experimento.

O peso do fígado dos ratos foi maior, porém não significativamente, nos animais do grupo estudo que nos animais do grupo controle. Considerando-se que o peso corporal dos ratos do grupo controle no final do experimento foi maior em relação ao grupo estudo, tal fato pode indicar uma tendência ao aumento do peso do fígado pela ação do hormônio tireoidiano.

Este aumento ponderal do fígado poderia ser determinado tanto por alterações primárias no próprio órgão como por uma congestão passiva secundária a uma insuficiência cardíaca, determinada pela ação do hormônio tireoidiano. Tal fato é pouco provável, já que os animais do grupo estudo não apresentaram dispnéia ou qualquer outra alteração clínica que sugerisse tal condição. Mesmo que este fato passasse desapercebido, não havia alterações histológicas hepáticas que sugerissem falência cardíaca.

No presente estudo, a análise morfométrica do fígado dos ratos demonstrou haver um aumento do parênquima lobular (p=0,05), no grupo estudo em relação ao grupo controle. Tal achado contraria uma das propostas iniciais do trabalho, visto que se realizou tal estudo na tentativa de se evidenciar a presença de alargamento dos espaços portais, apesar de o tempo de exposição ao efeito hormonal parecer-nos insuficiente para o desenvolvimento de fibrose, mesmo em se tratando de hipertireoidismo crônico; ou talvez se comprovar uma congestão hepática por insuficiência cardíaca congestiva, que provavelmente levaria à dilatação das veias centro-lobulares, aumentando a proporção do volume do parênquima não lobular ou mesmo a manutenção da proporção normal, já que neste caso haveria também a dilatação dos sinusóides hepáticos. Conforme já discutimos, não havia, entretanto, evidências histológicas de que houvesse falência cardíaca em nenhum dos animais.

Uma provável explicação para o resultado encontrado seria o aumento do volume da célula hepática em decorrência do aumento do metabolismo e da síntese protéica estimulados pelos hormônios tireoidianos, ou seja, hipertrofia do hepatócito. Deve-se considerar, ainda, a possibilidade da ação hormonal induzir a proliferação das células hepáticas, ou seja, hiperplasia (21,31). O método mediu a massa total de parênquima, que era o objetivo, e não o número de células.

Em relação às células de Kupffer estabelecemos a proporção, ou seja, a fração volumétrica (densidade volumétrica) ocupada pelas mesmas no parênquima lobular. Naturalmente isto difere da simples contagem do número de células (densidade numérica), onde não se leva em consideração a proporção do volume ocupado por outros elementos ou estruturas no componente lobular do fígado (32).

Apesar de alguns descreverem a hiperplasia das células de Kupffer no estado hipertireóideo, conforme já referimos, encontrou-se uma diminuição da fração volumétrica ocupada pelas mesmas (p=0,05), no parênquima lobular dos ratos do grupo estudo. Tal achado, considerando-se o aumento do parênquima lobular nos ratos submetidos à ação dos hormônios tireoidianos, reforça a hipótese de que esta diminuição possa ocorrer em decorrência do aumento do volume e/ou do número dos hepatócitos, ou seja, ser somente relativo ao aumento do parênquima lobular.

No presente estudo encontrou-se uma diminuição altamente significante (p=0,008) do conteúdo de glicogênio no grupo estudo, mesmo com aumento significante do parênquima lobular, comprovando a depleção do glicogênio hepático pela ação dos hormônios tireoidianos.

Existe uma heterogeneidade metabólica nas regiões pericentral e perilobular do fígado em decorrência das diferenças do suprimento sangüíneo e, portanto, na distribuição do glicogênio nas células hepáticas (33,34). Apesar disto, neste trabalho teve-se o propósito de quantificar o conteúdo total da substância no parênquima lobular, independentemente da sua distribuição no mesmo. Obedecendo os princípios da estereologia, a contagem deve ser aleatória (32).

Quanto ao método utilizado para a quantificação do glicogênio hepático, é válido ressaltar que, mesmo utilizando a ajuda da informática para realizar tal parte do estudo morfométrico, não se fugiu dos métodos estereológicos, já que o programa de análise de imagens utilizado no microcomputador apenas quantificou a proporção entre pontos brancos e pretos das imagens modificadas, de maneira análoga a um sistema de pontos testes.

De grande ajuda foi a utilização do Programa Corel PHOTO-PAINT que permitiu modificar a coloração magenta das áreas PAS-positivas, muito próxima à tonalidade rósea do restante do citoplasma celular. Através da sua utilização, pode-se "limpar" as imagens, facilitando a análise morfométrica. Tal método poderia ser utilizado, inclusive, quando se usam técnicas imunohistoquímicas, facilitando a quantificação da positividade nas lâminas.

Podemos concluir, com o presente estudo, que a tireotoxicose experimental em ratos provoca hiperplasia e/ou hipertrofia dos hepatócitos, com redução das reservas energéticas.

Endereço para correspondência:

Míriam de Fátima Brasil Engelman

Rua São Paulo 85

37.550-000 Pouso Alegre, MG

e.mail: engelman@overnet.com.br

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Jul 2001
  • Data do Fascículo
    Abr 2001

Histórico

  • Aceito
    04 Dez 2000
  • Revisado
    30 Nov 2000
  • Recebido
    08 Maio 2000
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