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A presença do capitalismo na teoria dos discursos de Lacan

Resumo:

O exame da referência ao capitalismo na teoria dos discursos é antecedido pela demarcação, a partir do domínio da linguística, da diferença entre a noção de discurso e aquela mais abstrata de linguagem. Esclarece-se assim que, ao recorrer aos discursos, Lacan evita derivas objetivantes da ordem linguística, implicando as dimensões ética e política. Com relação ao estabelecimento por Lacan de tais aparelhos teóricos, centramo-nos na referência ao capitalismo aí incluída. Busca-se situar tal referência no encaminhamento da teoria dos discursos, bem como interrogar o sentido da formulação daí advinda, ainda que pontualmente, de um discurso do capitalista.

Palavras-chave:
Lacan; quatro discursos; discurso capitalista; gozo.

ABSTRACT:

Examination of the reference to capitalism in the theory of discourses is preceded by demarcation, from the field of linguistics, from the difference between the notion of discourse and the more abstract notion of language. It is clear that, by resorting to the discourses, Lacan avoids objectifying the linguistic drift, implicating the ethical and political dimensions. With regard to the establishment of such theoretical devices by Lacan, we focus on the reference to capitalism there included. We try to situate such reference in forwarding the theory of discourse, as well as questioning the meaning of the formulation arising therefrom, albeit occasionally, of a discourse of the capitalist.

Keywords:
Lacan; four discourses; capitalist discourse; jouissance.

Linguagem, linguística e discurso

A proposta de tratar da problemática do capitalismo segundo o modo como ela se encontra articulada à teorização lacaniana dos discursos implica que, preliminarmente, situemos de modo breve a noção de discurso tanto em seus antecedentes linguísticos quanto no rigor de sua formulação por Lacan. Dividindo tal preâmbulo em duas partes, comecemos recordando o quanto a linguística possui uma data recente de nascimento, na medida em que é somente a partir de meados do século XIX, com o surgimento da gramática comparada, que algo como uma ciência propriamente dita da linguagem começa a ser projetada de maneira sistemática. Lembremos que Saussure situava o surgimento da ciência moderna da língua em F. Bopp, o qual teria sido o primeiro a compreender que “as relações entre línguas aparentadas podia se tornar a matéria de uma ciência autônoma. Esclarecer uma língua através de outra, explicar a forma de uma delas através daquela de outra, eis isso que ainda não havia sido feito” (SAUSSURE, 2005SAUSSURE, F. Cours de linguistique générale. Paris: Payot, 2005., p. 14).

Se, como nos lembra Ducrot, o estudo da linguagem começa antes como análise do discurso que como uma linguística da língua (DUCROT, s/dDUCROT, O.; TODOROV, T. Diccinonario enciclopédico de las ciencias del lenguaje. Buenos Aires: Siglo Veintiuno, s/d., p. 92), a epísteme inicial da linguagem é efetivamente a retórica, fazendo com que a locução concreta em contexto intersubjetivo seja o primeiro objeto de estudo sistemático neste campo. Deste modo, podemos retomar certa definição já clássica da retórica, proveniente de Aristóteles, segundo a qual ela seria a arte de persuadir e de refutar um discurso através de outro (REBOUL, 2004REBOUL, O. Introdução à retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2004., p. 18). Ou, ainda, outra mais moderna, que o caracteriza como “qualquer produção linguística, oral ou escrita, que fale de certo assunto e apresente sentido e unidade” (REBOUL, 2004REBOUL, O. Introdução à retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2004., p. 246). Tal definição, apesar de demasiado genérica, já nos indica, entretanto, seu caráter concreto, localizável contextualmente, razoável em sua coerência, finito, dirigido a outrem e tematicamente distinto em um ato mais ou menos contínuo de enunciação. Deste modo, importa-nos ressaltar o quanto tal caracterização se opõe à unificação do diverso empírico do discurso sob a abstração da noção de linguagem.

Postula-se tradicionalmente a linguagem como a determinante de uma marca eminentemente antropológica, pois vemos nela um dos traços distintivos do homem com respeito aos outros animais. Neste sentido, como sabia Saussure, apesar de sua ausência de uniformidade, postular sua existência implica de antemão a pressuposição de uma espécie de essência, ao menos sob a forma de uma faculdade da linguagem privativa do homem em sua humanidade. Fazendo isso, a busca de uma propriedade estrutural que nos permitisse reagrupar este conjunto em sua totalidade, algum universal linguístico auge da abstração coaduna-se com a redução do múltiplo ao uno, do particular ao universal, da contingência à necessidade e do outro ao mesmo. Cada uma das formas de expressão linguageiras denotaria sempre a mesma faculdade universal da linguagem, sinônimo de diferença antropológica naturalizada e atemporal.

É justamente esta tendência mais do que nunca atual presente hoje nas diversas ciências cognitivas, nos inúmeros projetos contemporâneos de naturalização da intencionalidade, e que manifesta uma possibilidade aberta pela própria objetivação da ordem linguística em cada um dos seus inúmeros registros que Lacan busca evitar através de sua referência ao discurso. Em outras palavras, a promessa implícita de objetivação estrutural, intrínseca à própria noção de linguagem, acaba por sugerir a exclusão da dimensão ética e política presente originalmente naquela de discurso. É neste sentido, ele mesmo político, que Lacan vai então buscar em seu ensino uma nova forma de teoria da linguagem. Para ele, a noção de discurso na medida em que implica necessariamente uma multiplicidade de estruturas particulares irredutíveis umas às outras e, sobretudo, identificáveis a formas vivas de existência caminha em sentido inverso ao do estudo da linguagem.

Será neste sentido que a noção de discurso permitirá a Lacan aprofundar seu distanciamento de uma leitura idealista e objetivante do inconsciente ameaça que incessantemente pairava sobre a perspectiva estruturalista sem perder sua exigência doutrinal de formalização. Através de sua adoção, Lacan realiza um tournant em sua orientação, digamos, materialista, na medida em que o discurso aponta para um registro muito mais pragmático da subjetividade que aquele de uma estrutura a priori com respeito a toda enunciação. Tal noção designa, para ele, a possibilidade de apreender diferentes modos de organização subjetiva, cada um referido a uma atividade concreta historicamente localizável, a uma conotação de expressão vivente e, logo, remetida assim a algo necessariamente corporalizado. Em termos mais próximos da antropologia estrutural, que tanto marcou o início do ensino de Lacan, quando passamos da linguagem ao discurso, passamos da idealidade estrutural à realidade dos processos de comunicação e aos sistemas locais de troca, ou, em termos mais wittgensteinianos, passamos ao campo inconsistente dos jogos de linguagem e de sua recusa de uma linguagem ideal.

A noção de discurso em Lacan

A partir do que vimos acima, podemos dizer que, enquanto a noção genérica e abstrata de linguagem remete a algo lógico e, digamos, formal, a noção de discurso remete por sua vez ao efetivo, ao político e ao econômico e, consequentemente, ao vivente. Assim, se o termo linguagem conota o ordenamento simbólico entendido como conjunto de significantes, se o termo foi definido em termos estruturais por Lacan, sobretudo com respeito à noção de Grande Outro como deserto de gozo e esvaziado de substância, a noção de discurso vem indicar justamente o seu avesso concreto: uma forma linguística desde sempre já saturada de gozo e marcada pelos impasses históricos de um vivente concreto. Em outras palavras, a noção de linguagem nos remete àquela de língua em Saussure, como seu componente formalmente isolável de toda prática concreta e para o qual somente existem diferenças organizadas em uma forma vazia. A noção de discurso, por sua vez, reintroduz em seu interior o problema da substância, assim como no interior da diferença uma positividade.

O discurso põe assim em relevo a importância do contexto histórico de sua manifestação e de sua ancoragem e, logo, da irredutível contingência e particularidade de toda formação discursiva. É esta singularidade concreta, estatuto próprio dos fenômenos históricos reais, que a noção de discurso possibilita cernir em primeiro lugar. É esta não-necessidade que o discurso faculta valorizar, e que justamente permite que Lacan introduza adiante sua temática da ausência de relação sexual. As fórmulas da sexuação, na sequência da teoria dos discursos, reportariam, neste sentido, mais do que a formas da linguagem, a modos de discurso. Se sexuar-se é discursivizar-se como corporalidade subjetiva, então é somente no campo do discurso, da linguagem em ato, que o surgimento do sujeito é possível como corpo sexuado. Para Lacan, o discurso designará sempre uma forma de laço social.

Se, desde esta perspectiva, centramo-nos no seminário O avesso da psicanálise, encontramos uma discussão crucial quanto à maneira como Lacan entendia os discursos e sua determinação pela psicanálise. Acerca de sua sustentação já no discurso analítico, o matema de Lacan é definido como um “aparelho de quatro patas, com quatro posições” que serve para “definir quatro discursos radicais” (LACAN, 1969-1970/1992, p. 18), dentre os quais o próprio discurso analítico que suporta o matema. O emprego do verbo definir não é sem consequência, pois implica que certas formas de agenciamento subjetivo, que as fórmulas lacanianas dos discursos estenografam, já estavam lá antes de serem abordadas por Lacan da mesma maneira que a transferência e a histeria, no caso de Freud, ou a mercadoria e a mais-valia, com respeito à teoria marxianaou seja, sob a forma de realidades que aguardavam a adequada apreensão pelo conceito para que se tornasse possível que operássemos sobre elas.

Não é, entretanto, a partir de uma dada realidade (social e histórica, por exemplo) já em ação apesar da obviedade de que nascemos em uma sociedade que necessariamente pré-existe a cada um de nós que algo seria abstraído como teórico. Ao contrário, Lacan visa assinalar que suas fórmulas não são abstrações de uma realidade prévia, mas fabricações de aparelhos teóricos que, introduzindo-se no real, tornam possível uma operação até então impossível. É isto que Lacan sugere no final do seminário, ao alertar que seus “esqueminhas quadrípodes” não são “a mesa espírita da história” (LACAN, 1969-1970/1992, p. 179), pois não se trata, em sua formulação dos discursos, de um instrumento neutro com respeito a uma realidade situada em exterioridade ao instrumento, concepção justamente de forte caráter teológico em sua união de realismo e finalismo. Ao contrário, segundo ele, as fórmulas dos quatro discursos devem ser entendidas como “funções radicais, no sentido matemático”, isto é, como exemplos de “algo que entra no real, que nele jamais havia entrado, e que corresponde não a descobrir, experimentar, cingir, destacar, deduzir, nada disso, e sim a escrever - escrever duas ordens de relações” (LACAN, 1969-1970/1992, p. 179). Semelhante a um instrumento científico, o qual não é exatamente descoberto por abstração a partir da realidade e por redução de sua riqueza empírica, mas construído através da literalidade matemática como modo de operação sobre esta própria riqueza (ao mesmo tempo em que a torna inteligível), o discurso nos situa, então, no âmbito estrito do manejo dos termos literais, no caso, S1, S2, a e S/.

A presença do capitalismo no encaminhamento da teoria dos discursos

A esquematização dos discursos, nos termos indicados, permite a Lacan refletir acerca de certas características da modernidade, no âmbito da qual se incluirá a referência ao capitalismo. Nesta via, observamos que uma de suas principais configurações discursivas reside naquilo que ele intitula discurso universitário, no qual se distingue certa maneira de se instalar o saber (S2) no lugar dominante, no alto à esquerda em sua fórmula. Tal localização eminente do saber seria própria da modernidade, na medida em que “se opera entre o discurso do senhor antigo e o do senhor moderno, que se chama capitalista, uma modificação no lugar do saber” (LACAN, 1969-1970/1992LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: J. Zahar, 1992. (O seminário, 17)., p. 29). Em relação a isso, Lacan lembra que conforme enunciara anteriormente quanto ao discurso designado como do mestre “partimos de que o saber, no primeiro estatuto do discurso do senhor, é a parte do escravo” (LACAN, 1969-1970/1992LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: J. Zahar, 1992. (O seminário, 17)., p. 29). Em nossa modernidade, ao mesmo tempo epistêmica, científica e politicamente liberal, é justamente o escravo, com seu saber técnico, que assume a posição dominante, endereçando-se ao que se torna então natureza em sentido propriamente moderno; algo, para ele, inerte em sua positividade mecânica (o objeto a na posição do outro, no alto à direita do discurso) e que se reduz assim ao único modo possível de existência. É interessante percebermos, tal como P. Macherey nos faz notar, que o discurso universitário, como indica seu nome, não é o discurso do universitário, mas simplesmente discurso universitário, ou seja, integralmente impessoal (MACHEREY, 2009MACHEREY, P. Lacan et le discours universitaire (1) et (2). La philosophie au sens large, classes du 2 décembre 2009. Disponível em: <Disponível em: http://www.philolarge.hypotheses.org/87 e http://philolarge.hypotheses.org/101/comment-page-1?lang=pt_PT >. Acesso em: 10 out 2013.
http://www.philolarge.hypotheses.org/87 ...
), dedicando-se a salvaguardar uma suposta neutralidade, sem que componentes éticos ou políticos sejam manifestados. O discurso universitário se pretende, deste modo, um discurso objetivo e objetivante, e, por consequência, sem traços subjetivos e redutor de toda realidade à mecânica da necessidade natural. É neste sentido que o discurso universitário se constrói de maneira regressiva a partir do discurso do mestre, através do recalcamento de sua arbitrariedade enunciativa e de sua autoridade de caráter eminentemente político.

No manejo dos termos por Lacan, destaca-se, portanto, o giro que converte a escrita de um discurso que concerne à problemática de um senhor antigo naquela de um discurso que suporta a emergência do capitalista como senhor moderno. O saber (S2), que constava no lugar no alto à direita no discurso do mestre, passa para a esquerda no discurso universitário. É por este motivo que interessa a Lacan destacar que, nesta passagem do saber (S2) do lugar original que ocupava no discurso do mestre àquele próprio ao discurso universitário, “não é {mais} o mesmo saber” (LACAN, 1969-1970/1992LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: J. Zahar, 1992. (O seminário, 17)., p. 33) de que se trata. Quanto à verdade, Lacan acrescenta: “O fato de que o tudo-saber tenha passado para o lugar do senhor, eis o que, longe de esclarecer, torna um pouco mais opaco o que está em questão” (LACAN, 1969-1970/1992LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: J. Zahar, 1992. (O seminário, 17)., p. 30). Este tudo-saber não deve ser entendido no sentido simplesmente de saber tudo, mas como a redução de tudo à forma do saber, como a redução de toda possibilidade de existência àquelas unicamente determinadas pela ciência. Disto decorre, então, o que chama de “nova tirania do saber”, pois o S2, nesta forma do senhor moderno, “é o que torna impossível que nesse lugar apareça, no curso do movimento histórico - como tínhamos, talvez, esperança o que cabe à verdade” (LACAN, 1969-1970/1992LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: J. Zahar, 1992. (O seminário, 17)., p. 30).

Entendemos que a citação acima remete a Marx. Retomando o que havia dito em seu seminário anterior, intitulado De um Outro ao outro, Lacan pontua que o discurso analítico daria a ver que, entre saber e verdade, o que Marx torna saliente concerne à questão do gozo. É o que se encontra sintetizado, por exemplo, na afirmação categórica de que: “A intrusão na política só pode ser feita reconhecendo-se que não há discurso - e não apenas o analítico - que não seja do gozo, pelo menos quando dele se espera o trabalho da verdade” (LACAN, 1969-1970/1992LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: J. Zahar, 1992. (O seminário, 17)., p. 74). Neste sentido, apesar de sua aparente neutralidade objetiva, também o discurso universitário seria por ele marcado. Este é um dos motivos pelos quais Lacan encontra em Marx um aliado, pois tanto a psicanálise quanto a economia política marxiana permitiriam apreender uma face, muitas vezes esquecida, do segredo da produtividade capitalista: “O que é chamado, em outros registros, de meios de produção - de quê? De uma satisfação” (LACAN, 1968-1969/2008LACAN, J. De um Outro ao outro (1968-1969). Rio de Janeiro: J. Zahar, 2008. (O seminário, 16)., p. 201).

Nossa modernidade, científica e capitalista, inaugura com ela não somente uma nova economia política, mas também uma nova economia libidinal, na medida em que a satisfação se torna capturada pelo saber técnico. Lacan percebe em Marx, entretanto, que sua denúncia do processo de espoliação merece ainda algumas retificações, pois este “a faz sem se dar conta de que é no próprio saber que está o seu segredo - como o da redução do próprio trabalhador a ser apenas valor” (LACAN, 1969-1970/1992LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: J. Zahar, 1992. (O seminário, 17)., p. 76). Transpondo a mais-valia para sua dimensão libidinal, como mais-de-gozar, Lacan insiste assim que o processo da espoliação concerne, sobretudo, ao gozo, enfatizando a importância para tal articulação do que se passa com o lugar do saber, na medida em que este é aqui tomado como meio de gozo em uma modernidade marcada essencialmente pela união da ciência universitária com o capital.

Do discurso universitário ao capitalismo há então somente um passo, na medida em que é uma modificação no estatuto e na função do saber aquilo que é necessário para o estabelecimento do capitalista como senhor moderno. O discurso universitário “é o que mostra onde o discurso da ciência se alicerça” (LACAN, 1969-1970/1992LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: J. Zahar, 1992. (O seminário, 17)., p. 97), sendo a partir dele que vemos associar-se, ao longo do seminário, o corte do capitalismo, no qual a absolutização do mercado, inseparável da absolutização da própria ciência moderna, reformula a questão de uma anterioridade lógica entre os discursos. É o que se verifica, por exemplo, na passagem abaixo:

“{...} a introdução do mundo novo no horizonte, das puras verdades numéricas, do que é contável, não significará por si só uma coisa bem diferente da instalação de um saber absoluto? O próprio ideal de uma formalização onde tudo é conta (...), não estará aqui o deslizamento, o quarto de giro? Este é o que faz com que se instaure, no lugar do senhor, uma articulação eminentemente nova do saber, completamente redutível formalmente, e que surja, no lugar do escravo, não uma coisa que iria se inserir de algum modo na ordem desse saber, mas que é antes seu produto.” (LACAN, 1969-1970/1992LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: J. Zahar, 1992. (O seminário, 17)., p. 76)

Este tudo contável, indissociável da instauração de um novo lugar do saber, é igualmente o que estaria em jogo no estabelecimento de uma lógica capitalista:

“Alguma coisa mudou no discurso do mestre a partir de certo momento da história. Não vamos esquentar a cabeça para saber se foi por causa de Lutero, ou de Calvino, ou de não sei que tráfico de navios em torno de Gênova, ou no mar Mediterrâneo, ou alhures, pois o importante é que, a partir de certo dia, o mais-de-gozar se conta, se contabiliza, se totaliza. Aí começa o que se chama de acumulação de capital.” (LACAN, 1969-1970/1992LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: J. Zahar, 1992. (O seminário, 17)., p. 169)

No seminário De um Outro ao outro, apesar de anterior à formalização do discurso universitário, já constatávamos essa associação: “Partamos de que a realidade capitalista não tem relações muito ruins com a ciência. Não se dá nada mal com ela. E tudo indica que isso pode continuar a funcionar assim, pelo menos por algum tempo” (LACAN, 1968-1969/2008LACAN, J. De um Outro ao outro (1968-1969). Rio de Janeiro: J. Zahar, 2008. (O seminário, 16)., p. 38). Lacan examina tal associação ainda mais de perto ao fazer menção a um mercado da ciência: “O próprio processo pelo qual a ciência se unifica, no que ela extrai seu nó de um discurso consequente, reduz todos os saberes a um único mercado” (LACAN, 1968-1969/2008LACAN, J. De um Outro ao outro (1968-1969). Rio de Janeiro: J. Zahar, 2008. (O seminário, 16)., p. 40).

É em razão desta “homogeneização dos saberes no mercado” ele dirá que veio a se revelar o que do gozo se ordena a partir do saber: “Nessa situação, portanto, o que representa o mal-estar da civilização, como se costuma dizer? É um mais-de-gozar obtido através da renúncia ao gozo, respeitado o princípio do valor do saber” (LACAN, 1968-1969/2008LACAN, J. De um Outro ao outro (1968-1969). Rio de Janeiro: J. Zahar, 2008. (O seminário, 16)., p. 40). Não é por acaso que Lacan cita o Mal-estar na civilização, pois lembremos, en passant, que, neste texto, Freud (1930LACAN, J. De um discurso que não fosse semblante (1971). Rio de Janeiro: J. Zahar, 2009. (O seminário, 18).{1929}/1974) já havia assinalado o quanto o segredo da economia política reside em sua capacidade de gerir a economia libidinal. É neste sentido que Lacan assinala: “Nem se cogita, por ora, de que se detenha o mercado do saber. Vocês mesmos é que agirão para que ele se estabeleça mais e mais. A unidade de valor, esse papelzinho que pretendem conceder a vocês, é isso. É o sinal daquilo em que o saber se transformará cada vez mais, nesse mercado chamado Universidade” (LACAN, 1968-1969/2008LACAN, J. De um Outro ao outro (1968-1969). Rio de Janeiro: J. Zahar, 2008. (O seminário, 16)., p. 42).

A noção de discurso foi introduzida, neste seminário, com o propósito de formalizar a relação entre saber e gozo. O que haveria aí de estrutural é algo que Lacan identifica na mais-valia tal como formulada por Marx. Por um lado, então, o mais-de-gozar de Lacan foi introduzido em homologia com a mais-valia de Marx. Por outro lado, se o objeto da investigação de Marx foi o capitalismo, a este último se deve algo do apoio que Lacan encontrou nas relações entre saber e gozo de que derivou o mais-de-gozar e a própria noção de discurso. Tal como estes últimos figuram já como efeitos de um discurso analítico, Lacan situa, no caso de Marx e da mais-valia, a correlação com o que nomeia como um discurso capitalista (LACAN, 1968-1969/2008LACAN, J. De um Outro ao outro (1968-1969). Rio de Janeiro: J. Zahar, 2008. (O seminário, 16)., p. 37). Isto para designar a absolutização do mercado, de seu regime de equivalência, de troca, que, ao englobar o próprio trabalho, estabeleceu as condições para a formalização da mais-valia por Marx.

Ao retomarmos o seminário O avesso da psicanálise, é possível precisar como Lacan situa o deslocamento do saber associado ao capitalista como senhor moderno, articulado ali nos termos do discurso universitário. Desde o início do seminário, ele já afirmava que “a tradição filosófica tinha sua responsabilidade nessa transmutação” (LACAN, 1969-1970/1992LACAN, J. Du discours psychanalytique (12/05/1972). Conferência inédita., p. 30). Ele é mais incisivo adiante, quando indica, admitindo recair no termo hegeliano, que “a filosofia teve o papel de constituir um saber de mestre e de senhor subtraído ao saber do escravo”, e que “a ciência, tal como atualmente se apresenta, consiste justamente nessa transmutação da função (...)” (LACAN, 1969-1970/1992LACAN, J. Du discours psychanalytique (12/05/1972). Conferência inédita., p. 140). Acerca do filósofo, Lacan dirá:

“não foi à toa que ele tenha interpelado o escravo e demonstrado que este sabe - que sabe, por sinal, o que não sabe. Só se mostra que ele sabe por que se lhe faz boas perguntas. Foi por esta via que se operou o deslocamento que faz com que, atualmente, nosso discurso científico esteja do lado do mestre. É isto precisamente que não se pode dominar, não se pode amestrar.” (LACAN, 1969-1970/1992LACAN, J. Du discours psychanalytique (12/05/1972). Conferência inédita., p. 30)

Quando o discurso científico ocupa o lugar do mestre, aquele não se torna instrumento deste, ao contrário, a centralização do poder pressuposta pela figura tradicional do senhor é deposta e o saber científico se emancipa de todo controle externo. Semelhante e indissociável da própria autonomia do capital, capitalismo e cientificidade tornam-se inseparáveis em seu movimento conjunto de auto-reprodução.

Lacan situa então o que emerge no mundo: “De maneira que existe de fato, sendo uma presença no mundo, não o pensamento da ciência, mas a ciência de algum modo objetivada, refiro-me a essas coisas inteiramente forjadas pela ciência, simplesmente essas coisinhas, gadgets e coisa e tal, que por enquanto ocupam o mesmo espaço que nós no mundo em que essa emergência teve lugar” (LACAN, 1969-1970/1992LACAN, J. Du discours psychanalytique (12/05/1972). Conferência inédita., p. 140). Se o discurso da ciência necessitou, para estabilizar-se, da vontade epistêmica própria ao âmbito da filosofia, é, no entanto, com o advento de uma ciência objetivada em sua união com o capital que se formula uma problemática mais ampla para Lacan, inclusive no que diz respeito às possibilidades de se deslocar deste discurso. No âmbito do que toma por ciência objetivada, Lacan situa tais fabricações da ciência como “efeitos de uma verdade formalizada” (LACAN, 1969-1970/1992LACAN, J. Du discours psychanalytique (12/05/1972). Conferência inédita., p. 152). A consolidação, no capitalismo, da forma lógica do objeto a sob a rubrica do mais-de-gozar possibilitou a ampliação de seu campo, retirando os objetos fabricados pela ciência do campo da pesquisa universitária e transpondo-os para a gênese do consumo de massa. É o que indica Lacan quando nomeia latusas “aos pequenos objetos a que vão encontrar ao sair, no pavimento de todas as esquinas, atrás de todas as vitrines, na proliferação desses objetos feitos para causar o desejo de vocês, na medida em que agora é a ciência que o governa” (LACAN, 1969-1970/1992LACAN, J. Du discours psychanalytique (12/05/1972). Conferência inédita., p. 153). Nisto, vemos que o saber do capitalista como senhor moderno, contrariamente à sabedoria antiga, encontra-se na exploração do desejo, tornando ele mesmo industrializado e permitindo, assim, como dito em Radiofonia, “a ascenção ao zênite social do objeto que chamo pequeno a” (LACAN, 1970/2003LACAN, J. Televisão (1974). In:LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2003., p. 411).

Lembremos que Lacan já havia observado que “o discurso da ciência só se sustenta na lógica, fazendo da verdade um jogo de valores, eludindo radicalmente toda sua potência dinâmica” (LACAN, 1969-1970/1992LACAN, J. Du discours psychanalytique (12/05/1972). Conferência inédita., p. 84) e fazendo dos valores o lugar da verdade, ou seja, instituindo um sistema social imune a toda denúncia. Se o capitalista é o senhor moderno, então a mercadoria é o significante-mestre e, enquanto tal, baliza da própria possibilidade de significação no mundo moderno técnico-capitalista. Lacan estava bastante advertido desta característica, pois, como reitera em Televisão, “ao denunciá-lo, eu o reforço - por normatizá-lo, ou seja, aperfeiçoá-lo” (LACAN, 1974/2003LACAN, J. Televisão (1974). In:LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2003., p. 517). Em lugar disso, é a associação da mais-valia à função do mais-de-gozar, no caso um mais-de-gozar que passou a ser contabilizado, que participaria, segundo Lacan, da elucidação do que caracteriza o laço social em nossa época. Neste sentido, para além da denúncia, é preciso “começar vendo por que o discurso do mestre está tão solidamente estabelecido, a ponto de poucos de vocês, ao que parece, avaliarem até que ponto ele é estável” (LACAN, 1969-1970LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: J. Zahar, 1992. (O seminário, 17)., p. 169). Tal idéia de estabilidade do discurso do mestre invoca, já neste seminário, a designação de um discurso do capitalista, fruto da união do capital e da ciência universitária: “Não se esperou, para ver isso, que o discurso do mestre tivesse se desenvolvido plenamente para mostrar sua clave no discurso do capitalista, em sua curiosa copulação com a ciência” (LACAN, 1969-1970LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: J. Zahar, 1992. (O seminário, 17)., p. 103).

Podemos nos perguntar sobre a razão de Lacan empregar a noção de discurso no contexto da formulação de um matema único dos quatro discursos para designar um discurso do capitalista, sendo menos controversa a adoção de outras designações, como ao falar do estilo capitalista (LACAN, 1969-1970LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: J. Zahar, 1992. (O seminário, 17)., p. 160) do discurso do mestre. O que já se verifica, contudo, é que a problemática do capitalismo excede claramente o escopo da delimitação do discurso universitário, o que Lacan explicita dizendo: “Indaguemos agora como pode esta sociedade, dita capitalista, proporcionar-se o luxo de se permitir um enfraquecimento do discurso universitário” (LACAN, 1969-1970LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: J. Zahar, 1992. (O seminário, 17)., p. 160). A copulação do capitalismo com a ciência se reporta aos desdobramentos do discurso do mestre, não exclusivamente em associação ao que formula no discurso universitário, pois o subverte de uma maneira imprevista ao conduzir os sujeitos a uma insaciável vontade de satisfação, incompatível com o ascetismo do discurso universitário. É nesta via que a questão persevera na sequência do ensino de Lacan.

A escrita de um discurso que fosse do capitalista

Como vimos, não se trata apenas de situar a lógica capitalista como condição da detecção da mais-valia e, consequentemente, do mais-de-gozar. Lacan a toma como ponto a ser essencialmente priorizado:

“Trata-se, em suma, de pormos uma coisa à prova: se a chave dos diversos problemas que se proporão a nós não está em nos colocarmos no nível do efeito da articulação capitalista que deixei na sombra no ano passado, ao lhes fornecer apenas sua raiz no discurso do mestre. Talvez eu possa dar-lhes um pouco mais este ano.” (LACAN, 1971/2009LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: J. Zahar, 1992. (O seminário, 17)., p. 36)

Se, no seminário O avesso da psicanálise, delimitou-se algo que derivaria do discurso do mestre, agora já se busca a apreensão formal desta mudança:

“Vocês não são muito curiosos e além disso, sobretudo, são pouco intervencionistas, de maneira que, quando lhes falei do discurso do mestre no ano passado, ninguém veio me provocar para me perguntar como se situava aí o discurso do capitalista. Eu esperava isso, só peço para explicá-lo a vocês, sobretudo porque é simples demais. Uma coisinha de nada que gira e o discurso do mestre de vocês mostra-se tudo o que há de mais transformável no discurso do capitalista.” (LACAN, 1971/2009LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: J. Zahar, 1992. (O seminário, 17)., p. 47)

No mesmo ano, em uma conferência proferida já no contexto de outro seminário, Lacan reitera que poderia mostrar, com relação ao discurso do mestre, “a viradinha de nada, em algum lugar, que faz dele o discurso do capitalista” (LACAN, 1971-1972/2011LACAN, J. Estou falando com as paredes (1971-1972). Rio de Janeiro: J. Zahar, 2011., p. 61). Encontra-se aí também um acréscimo que se mostrará crucial na continuação de seu ensino: “É exatamente a mesma coisa, só que é simplesmente mais bem feito, funciona melhor, vocês são ainda mais engambelados” (LACAN, 1971-1972/2011LACAN, J. Estou falando com as paredes (1971-1972). Rio de Janeiro: J. Zahar, 2011., p. 61). Na conferência que se segue a esta, a mesma ideia é retomada, mas acrescida da observação, semelhante ao que já vimos antes, de que a origem da formalização de tal discurso em Marx não impediu que, a partir daí, ele tenha se reforçado:

“Mas a história mostra que ele viveu durante séculos, esse discurso [do mestre], de maneira lucrativa para todo mundo, até um certo desvio em que, em razão de um ínfimo deslizamento, que passou despercebido aos próprios interessados, tornou-se o discurso do capitalismo, do qual não teríamos a menor ideia se Marx não se houvesse empenhado em completá-lo, em lhe dar seu sujeito, o proletário, graças a quê o discurso do capitalismo propagou-se por todas as regiões em que impera a forma do Estado marxista.” (LACAN, 1971-1972/2011LACAN, J. Estou falando com as paredes (1971-1972). Rio de Janeiro: J. Zahar, 2011., p. 88)

Podemos ver que o foco da análise lacaniana possui um alto grau de crítica. Não se trata, para Lacan, de apenas localizar historicamente o que permitiu o surgimento da união do capital com a ciência sob a forma do capitalismo. Seu interesse consiste, sobretudo, em tentar isolar de que maneira tal sistema de produção, justamente porque deve ser essencialmente definido com um sistema de auto-reprodução, não somente é resistente à crítica, mas se alimenta precisamente daquilo que a ele se opõe. Como ele especifica no seminário De um discurso que não fosse semblante, não se trata tanto de situar seu começo, mas sua ausência de fim: “O importante não é aquilo. A referência a Marx já era suficiente para mostrar que havia a mais profunda relação entre isso e o discurso do mestre. A coisa a que quero chegar é fazê-los captarem algo tão essencial quanto o que é, digamos, o suporte do mais-de-gozar” (LACAN, 1971/2009LACAN, J. De um discurso que não fosse semblante (1971). Rio de Janeiro: J. Zahar, 2009. (O seminário, 18)., p. 36).

Neste sentido, por um lado, Lacan vislumbra efetivamente a formalização do discurso do capitalista a partir do discurso do mestre, localizando tal passagem através de uma coisinha de nada que gira, de uma viradinha de nada, de um ínfimo deslizamento. Mas, por outro lado, indica que, mais do que mostrar a relação entre os dois, que permitiria a delimitação de seu sentido histórico, devemos avançar na apreensão do que responde por sua perenidade. E, neste caso, devemos entender a expressão utilizada por Lacan o suporte do mais-de-gozar nos genitivos subjetivo e objetivo ao mesmo tempo, tal como no caso de outras proposições lacanianas.

Quando a figura do mestre é recalcada e determinada regressivamente sob a forma universitária, a escravidão se universaliza e, no lugar da simples expropriação direta de uma produção, gera-se um excesso contraditório que serve como ancoragem a um sofrimento subjetivo e uma forma de defesa contra seus próprios impasses no campo da sexualidade. Neste momento, o escravo não é mais aquele submetido pela autoridade de um senhor, mas um indivíduo que se auto-explora e que manifesta no consumo a forma mesma de reprodução de sua expropriação.

Lacan já falara antes do ponto de impossibilidade ou da hiância que é própria à articulação de cada um dos discursos, a qual, comportando seus giros, permite igualmente que cada um deles possa ser superado na direção de outra modalidade discursiva o célebre quarto de volta que permite passarmos do mestre à histérica, e assim por diante. Agora, ele aponta para o fato, deveras perturbador, de que, necessariamente se rompendo um dos lados do tetraedro, poderíamos entrar em uma forma discursiva que, produzindo um movimento circular, tenderia a não poder ser mais superada:

“Aí está o discurso do mestre, como vocês talvez se recordem, caracterizado pelo fato de que, das seis arestas do tetraedro, uma é rompida. É na medida em que fazemos essas estruturas girarem nas quatro arestas do circuito que se seguem no tetraedro - essa é uma condição - que se engatam no mesmo sentido, é nessa medida que se estabelece a variação do que se passa com a estrutura do discurso, muito precisamente tal como ela se mantém num certo nível de construção, que é o nível tetraédrico. Não podemos contentar-nos com esse nível a partir do momento em que fazemos surgir a instância da letra. É inclusive por não podemos contentar-nos que, permanecendo nesse nível, há sempre um dos lados que se rompe no que cria o círculo.” (LACAN, 1971/2009LACAN, J. De um discurso que não fosse semblante (1971). Rio de Janeiro: J. Zahar, 2009. (O seminário, 18)., p. 95)

A inclusão por Lacan, no âmbito de sua teoria dos discursos, de um heteróclito como o discurso do capitalista torna pensável o próprio movimento de auto-reprodução do capital, a ser entendido como auto-circularidade do mais-de-gozar: “Uma pequenina inversão simplesmente entre o S1 e o S/… que é o sujeito… isso basta a que isso role como se estivesse deslizando sobre rodas! Não dá para funcionar melhor. Pode não funcionar melhor, mas justamente ele vai rápido demais, isso se consome, ele se consome tão bem que ele se consuma” (LACAN, 12/05/1972LACAN, J. Du discours psychanalytique (12/05/1972). Conferência inédita.). Nessa famosa conferência em Milão, na qual finalmente apresenta a fórmula completa do discurso do capitalista, invertendo S1 e S/, Lacan indica tratar-se de algo astucioso - como antes falara de algo que funciona melhor, mais bem feito, que nos engambela ainda mais, em um funcionamento que curto-circuita seus termos de maneira perigosa.

Ele se consome e nisso se consuma, no caminho quiçá de sua própria destruição, mas em um movimento circular, sem saída possível... talvez. A formalização do discurso do capitalista aponta para seu impasse, o que poderia justificar a escrita, por Lacan, de um discurso que incorre em uma impossibilidade lógica nos termos próprios da noção de discurso de que parte. Esta ideia da ausência de uma frenagem no discurso do capitalista já se apresentava em Radiofonia, ao se referir à mais-valia como:

“a causa do desejo do qual uma economia faz seu princípio: o da produção extensiva, portanto insaciável, da falta-de-gozar. Esta se acumula, por um lado, para aumentar os meios dessa produção como capital. Por outro lado, amplia o consumo, sem o qual essa produção seria inútil, justamente por sua inépcia para proporcionar um gozo com que possa tornar-se mais lenta.” (LACAN, 1970/2003LACAN, J. Televisão (1974). In:LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2003., p. 434)

Eis aí o que impõe o questionamento de um discurso que fosse do capitalista, pois este excluiria o ponto de impossibilidade inerente à definição de discurso de Lacan, desfazendo a ligação do discurso com o laço social. Pode-se acrescentar ainda que, se tal ponto de impossibilidade inscrito nos discursos se reporta ao fato de a castração encontrar-se no cerne do que a psicanálise desbrava no terreno da verdade, o que distingue o discurso capitalista é justamente “a Verwerfung, a rejeição para fora de todos os campos do simbólico, com as consequências de que já falei - rejeição de quê? Da castração” (LACAN, 2011LACAN, J. Estou falando com as paredes (1971-1972). Rio de Janeiro: J. Zahar, 2011., p. 88). Se o impossível no cerne da articulação dos discursos remete ao lugar da castração no veio aberto pela exploração da verdade na psicanálise, tal veio aberto acarreta, por sua vez, a impossibilidade de um discurso que não fosse semblante.

Conclusão

Não pretendemos com este artigo, obviamente, esgotar a problemática do capitalismo no ensino de Lacan. Ela é, por um lado, demasiadamente extensa na verdade, confundindo-se com a totalidade das referências à economia política que se iniciam em torno de seu quinto seminário e, por outro, extremamente complexa, na medida em que participa de um diálogo incessante não somente com a obra de Marx, mas convocando igualmente outros campos, como aqueles da metafísica da subjetividade, das matemáticas e evidentemente da linguística.

Entretanto, gostaríamos de assinalar que Lacan entrevê na psicanálise e, neste sentido, no discurso psicanalítico, umas das únicas disciplinas, junto àquelas oriundas do pensamento marxiano, capazes em nossos dias de sustentar uma crítica eficaz da circularidade do capital e deste com a ciência. Segundo Lacan, “o discurso analítico se especifica, se distingue por formular a pergunta de para quê serve essa forma de saber, que rejeita e exclui a dinâmica da verdade”; ao passo que à ciência “é vedado, justamente por ser ciência do mestre, colocar-se a questão do artesão” (LACAN, 1969-1970/1992LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: J. Zahar, 1992. (O seminário, 17)., p. 85). Ao ocupar-se da verdade, contrariamente às formas do saber que a rejeitam, Lacan entende que a psicanálise situa-se “na via aberta pelo marxismo - a saber, que o discurso está ligado aos interesses do sujeito” (LACAN, 1969-1970/1992LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: J. Zahar, 1992. (O seminário, 17)., p. 86). Interesses que Marx mostrou, na sociedade capitalista, serem passíveis de uma profunda alienação mercantil. Neste sentido, Lacan afirma aqui que, “sendo a mercadoria ligada ao significante-mestre, nada adianta denunciá-lo assim”, argumentando que “a mercadoria não está menos ligada a esse significante após a revolução socialista” (LACAN, 1969-1970/1992LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: J. Zahar, 1992. (O seminário, 17)., p. 86).

Quanto a nós analistas, na sucessão dos termos que relaciona para distinguir, dentre os discursos, aquele de que seríamos efeito, Lacan acrescenta, ao semblante e à verdade, o sintoma. Trata-se aí do sintoma tal como trabalhado por Freud, ainda que Marx seja identificado como aquele que introduziu a ideia. Freud foi então quem, ao perceber que existia o sintoma,

“se inquietou com algo que manifestamente se tornava o único elemento de interesse que ainda tinha alguma relação com essa coisa com que se sonhara no passado, e que era chamada de conhecimento, numa época em que já não havia o menor vestígio de algo que tivesse um sentido dessa espécie.” (LACAN, 1971/2009LACAN, J. Du discours psychanalytique (12/05/1972). Conferência inédita., p. 49)

A função da verdade na neurose, por ele destacada em relação ao sintoma, é coerente, segundo Lacan, “com a operação de subversão do que se havia sustentado, até então, através de toda uma tradição, sob o título de conhecimento” (LACAN, 1971/2009LACAN, J. Du discours psychanalytique (12/05/1972). Conferência inédita., p. 153). Acrescenta ainda que “a dimensão do semblante foi introduzida pelo engano fundamental denunciado como tal pela subversão marxista na teoria do conhecimento” (LACAN, 1971/2009LACAN, J. Du discours psychanalytique (12/05/1972). Conferência inédita., p. 153), o que esclarece que o sintoma, no sentido aqui identificado, teve sua origem imputada a Marx.

O sintoma é, portanto, o que resta de uma teoria do conhecimento subvertida. A verdade, por sua vez, reportada ao sintoma, está ligada ao semblante, não sendo alocável aqui a ideia de conhecimento. No seminário De um Outro ao outro, a verdade já fora situada, em razão da inconsistência do Outro, como só podendo corresponder à função de um objeto que não é do conhecimento, o objeto a, com o que se introduz o mais-de-gozar. Se a origem da subversão aí em jogo encontra-se em Marx, o passo que a ele não foi possível dar, como já dissera Lacan, é o que iria da mais-valia ao mais-de-gozar. Foi só com Freud que se instaurou o discurso que veio a elucidar quanto ao sintoma: “A maneira como cada um sofre em sua relação com o gozo, porquanto só se insere nela pela função do mais-de-gozar, eis o sintoma - na medida em que ele aparece provindo disto: de que já não há senão uma verdade social média, abstrata” (LACAN, 1968-1969/2008LACAN, J. Radiofonia (1970). In:LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: J. Zahar , 2003., p. 40). Se este discurso psicanalítico é consequente à via aberta por Marx, trata-se de verificar, através do debate em que este artigo se insere, o quanto ele pode, por sua vez, situar o discurso em que se apoia a formalização efetuada por Marx.

Referências

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  • REBOUL, O. Introdução à retórica São Paulo: Martins Fontes, 2004.
  • SAUSSURE, F. Cours de linguistique générale Paris: Payot, 2005.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Ago 2017

Histórico

  • Recebido
    24 Fev 2014
  • Aceito
    02 Fev 2015
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