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POR QUE A CLÍNICA COMO PARADIGMA DA PESQUISA PSICANALÍTICA?

WHY THE CLINIC AS PARADIGM OF PSYCHOANALYTIC RESEARCH?

RESUMO:

Defendo a hipótese da clínica como paradigma da pesquisa psicanalítica, independentemente dos procedimentos metodológicos utilizados. Percorro Freud e Lacan com vistas à extração de lógicas da verdade em relação ao real para mostrar a clínica como fundamento paradigmático da pesquisa psicanalítica. Em Freud, parto da discussão da Weltanschauung da psicanálise em relação à da ciência. Em Lacan, discuto dois movimentos em relação à verdade em sua obra. Apoio-me no número transfinito de Cantor para mostrar a construção da verdade como suplemento extraído do real impossível de cernir. Concluo com a mostração de experiências de pesquisa psicanalítica de fenômenos sociais complexos.

Palavras-chave:
pesquisa; psicanálise; Weltanschauung; verdade; transfinito

Abstract:

I defend the hypothesis that the clinic is the paradigm of psychoanalytic research. I go through Freud and Lacan seeking to elucidate the relationship between truth and reality. In Freud, I start from the discussion of the Weltanschauung of psychoanalysis in relation to that of science. In Lacan, I discuss two movements in relation to the truth in his work. I rely on Cantor’s transfinite number to show the construction of truth as a supplement extracted from the impossible to grasp real. I conclude with the presentation of experiences of psychoanalytic research of complex social phenomena.

Keywords:
research; psychoanalysis; Weltanschauung; truth; transfinite

INTRODUÇÃO

A descoberta freudiana é tributária daquilo que permaneceu fora de questão para a racionalidade vigorosa e clássica da modernidade: a existência do inconsciente como experiência com o real. Escrever o real - tarefa analítica, impossível ao lado de governar e educar (FREUD, 1937/1976FREUD, S. Análise terminável e interminável (1937). Rio de Janeiro: Imago, 1976. (Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 23)) - participou de uma revolução social, cultural e epistemológica mais ampla. O confronto com esse impossível tem sido a matéria mais vigorosa e viva da Psicanálise, o que a mantém uma disciplina atual. Nesse artigo, tomarei o real a partir perspectiva da verdade para discutir a relação entre clínica e pesquisa em Psicanálise. Defenderei a hipótese de que, qualquer que seja o método adotado, a pesquisa psicanalítica tem seu paradigma lógico assentado em seu modelo clínico, tal qual propôs Freud.

Tomarei os termos freudianos originais (FREUD, 1912/1976FREUD, S. Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise (1912). Rio de Janeiro: Imago, 1976. (Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 12)) de que clínica e pesquisa não se dissociam e, portanto, participam da mesma lógica de composição, articulação e produção. Para Lacan, “o sujeito sobre o qual operamos em psicanálise só pode ser o sujeito da ciência” (LACAN, 1998LACAN, J. Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano (1960). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 1998, p. 807-842., p. 873), no sentido da ciência moderna como condição de possibilidade da psicanálise. No conjunto abrangente das proposições lacanianas, procuraremos discutir a hipótese da clínica como paradigma da pesquisa psicanalítica, a partir do ponto que não se pode escrever do trabalho do inconsciente. Daí, podemos isolar e destacar o real, produzindo, a partir dele, um novo saber que o desloca pelo simbólico. Só assim, entendemos, as investigações avançam e se acessa a verdade não-toda que sistematiza o que podemos alcançar do mundo. Dessa maneira também, o saber psicanalítico progride - menos pelo acúmulo e mais pela subtração, tocando o real.

Com vistas a desenvolver as ideias acima expostas, trabalharei em três tempos em torno da verdade. No primeiro, remontarei a Freud e sua posição quanto à ciência. Em seguida, distinguirei dois tempos da construção lacaniana em torno da relação verdade e ciência. Nesse ponto, recorrerei à matemática de Cantor. E, finalmente, mostrarei, nas investigações de fenômenos sociais complexos que venho realizando nos últimos anos, como essa lógica se realiza.

FREUD, A VERDADE E A CIÊNCIA

Freud define a psicanálise como “o nome de (1) um procedimento para a investigação dos processos mentais que são quase inacessíveis por qualquer outro modo; (2) um método (baseado nessa investigação) para o tratamento de distúrbios neuróticos e (3) uma coleção de informações psicológicas obtidas ao longo dessas linhas, e que gradualmente se acumula numa nova disciplina científica” (FREUD, 1923 [1922]/1976FREUD, S. Dois verbetes de enciclopédia (1923). Rio de Janeiro: Imago, 1976. (Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 18), p. 287). Em outras palavras, toma por indissociáveis investigação, clínica e teoria no campo psicanalítico. Assim, o método psicanalítico é, no fundo, constituído daquilo que, pela experiência da clínica, é transponível fora dela, para a teoria, de maneira permanentemente investigada, sem romper o laço com o discurso analítico (GUERRA, 2020GUERRA, A. M. C. Adolescências em Tempos de Guerra: Modos de Pensar, Modos de Operar. Porto Alegre: UFRGS, 2020.).

Ainda que Freud tenha exposto seu método, discutido casos e construído ininterruptamente conceitos, será em um texto mais avançado no tempo, de 1933, que ele se dedicará mais longamente a pensar a relação da psicanálise com a ciência. Nessa exposição, ele, então, trabalha a relação externa da psicanálise com a ciência de sua época, e menos se ocupa em demonstrar o movimento interno da psicanálise na produção de ideias em seu campo.

Remonto à reconstituição desse ponto de partida para destacar seu propósito político de transmissão e pesquisa, a partir daquilo que Freud chamou de visão de mundo, cosmovisão ou Weltanschauung, quando ele se pergunta acerca da relação da psicanálise com a ciência. Ele, na ocasião, define a Weltanschauung como:

[...] uma construção intelectual que soluciona todos os problemas de nossa existência, uniformemente, com base em uma hipótese superior dominante, a qual, por conseguinte, não deixa nenhuma pergunta sem resposta e na qual tudo o que nos interessa encontra seu lugar fixo. (FREUD, 1932-1933/1976FREUD, S. A questão de uma Welthanschuung (1932-1933). Rio de Janeiro: Imago, 1976. (Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 22), p. 193).

Essa definição mostra, portanto, uma natureza especulativa que repousa em uma hipótese universal de natureza abrangente, crendo-se ser possível extrair dela qualquer solução para os problemas do mundo. Freud guarda com essa dimensão especulativa uma dupla relação. De um lado, influenciado pelo estilo empirista de Brentano, conflita-se com ela. Porém, guardada a tradição da filosofia científica de sua época, com Haeckel e von Hartmann, vale-se dela para propor um método próprio de fazer ciência no campo nascente da psicanálise (ROCHA, 2004ROCHA, Z. Freud e a filosofia alemã na segunda metade do século XIX. Síntese - Revista de Filosofia, v. 31, n. 99, p. 45-64, 2004.).

Nessa conferência, Freud qualificara a psicanálise como uma espécie de psicologia do inconsciente, buscando constituir uma classificação científica para a novidade que criara. Ele entendia, então, que a contribuição da psicanálise tinha sido justamente ter “estendido a pesquisa à área mental” (FREUD, 1932-1933/1976, p. 194), ampliando o campo da ciência. E concluira que a psicanálise não precisava de uma Weltanschauung, já que poderia aderir à Weltanschauung científica, ainda que esta não pudesse ser reconhecida, por ser ainda incompleta e encontrar-se em processo de construção.

A interpretação rápida dessa afirmação poderia considerar que Freud não via sua disciplina como constituinte de uma visão de mundo. Entretanto, segundo diferentes autores (SANTOS, 1991SANTOS, T. C. A questão de uma weltanschauung psicanalítica: transmissão e laço social da psicanálise. Anuário Brasileiro de Psicanálise, v. 1, n. 1, p. 85-89, 1991. Disponível em:Disponível em:http://isepol.com/bibliotecavirtual/8weltanschauung.pdf . Acesso em: 04 jun. 2022.
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; ROTSTEIN; BASTOS, 2011ROTSTEIN, E.; BASTOS, A. A concepção freudiana de experiência. Psicologia: Teoria e Pesquisa, v. 27, n. 3, p. 371-380, 2011. Disponível em:https://doi.org/10.1590/S0102-37722011000300013. Acesso em:04 jun. 2022.
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; ROCHA, 2004ROCHA, Z. Freud e a filosofia alemã na segunda metade do século XIX. Síntese - Revista de Filosofia, v. 31, n. 99, p. 45-64, 2004.), Freud apostava nessa consolidação. Haveria, sim, uma Weltanschauung psicanalítica interna e derivada do próprio campo psicanalítico que não crê numa verdade toda, dado que a experiência com o inconsciente sempre subtrai da realidade sua apreensão totalizante.

Assim, suponho e trago para o debate a perspectiva de que a incompletude da Weltanschauung, seja para a ciência, seja para a psicanálise, conforme Freud demonstra e defende, diz mais respeito ao encontro estrutural com um impossível de dizer que a uma inexistência da Weltanschauung psicanalítica, como se ela prescindisse de uma por estar acoplada à da ciência. As epistemologias modernas, ancoradas respectivamente na ideia de acúmulo, refutação, ruptura ou distorção, em nenhum dos casos, se assenta sobre a premissa de uma verdade toda que traduziria a realidade sob uma perspectiva unívoca.

Lacan cunha de “acontecimento-freudiano” (LACAN, 1964/1998LACAN, J. Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 1998. (O Seminário, 11), p. 29) essa descoberta que renova a teoria do inconsciente existente até então, destacando-a do registro epistêmico que a continha. Se Freud não hesita em aproximar a psicanálise das ciências da natureza, ele o faz dado não ver justificativas para distingui-la das ciências do espírito. Ele efetivamente inscreve a psicanálise em um outro modelo, ao inaugurar o valor de uma nova escrita e de uma nova formulação sobre o inconsciente, já que, depois dela, não é mais possível abordar o sujeito da mesma forma com a qual se fazia antes. Por isso, estamos de acordo com Lacan de que a noção de inconsciente freudiana tem o valor de um trauma. Ela escreve um antes e um depois, ao mesmo tempo em que funda um irreparável e um inapreensível para a época freudiana e para a que a sucedeu.

Como falar de verdade, depois de Freud, se qualquer disciplina, qualquer saber científico será sempre uma tentativa de tomada de posição diante dessa dimensão da experiência de mundo irredutível a todo controle e à completa representação? Aliás, pergunto-me, qual o sentido de um critério de validação (FEYERABEND, 1977FEYERABEND, P. K. Contra o método. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977. Disponível em: Disponível em: https://soife.files.wordpress.com/2009/06/paul-feyerabend-contra-o-metodo.pdf . Acesso em: 04 jun. 2022.
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) quando toda construção será sempre refletida e referida a um campo de poder (STENGERS, 1990STENGERS, I. Quem tem medo das ciências? Ciências e Poderes. São Paulo: Siciliano, 1990.) e a uma versão que se pretenda hegemônica como a “verdade verdadeira”? Inconsciente, saber, verdade e real, na pesquisa psicanalítica, me parecem categorias que, articuladas do interior do campo psicanalítico, permitem assim a elucidação da clínica como paradigma para a pesquisa. Sigamos com Lacan.

PSICANÁLISE E CIÊNCIA

Estamos nos dando conta até aqui que a pesquisa científica diz respeito sempre a uma relação com a verdade, o que nos conduz à questão acerca de como concebemos e de como abordamos a verdade a partir da psicanálise. Acompanhei seus desdobramentos nos Escritos de Lacan (1998LACAN, J. Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano (1960). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 1998, p. 807-842.), nos quais há uma exaltação da verdade. Especialmente quando Lacan discute o método psicanalítico a partir do discurso do método e da filosofia cartesianos. Testemunhamos a maneira como, a fim de garantir um fiel acesso à suposta verdade-toda, ao conhecimento puro e limpo, o método científico, em seus fundamentos, deveria descolar o saber da verdade do sujeito, eliminando este último para evitar a deformação da verdade por suas paixões e opiniões. Com Descartes, o sujeito é isolado para ser foracluído da operação científica, de forma a aceder-se ao conhecimento claro, objetivo e destituído de falsidade pela objetividade do método. Assim, o sujeito da ciência é velado à própria ciência, salvo ao ser percebido por Descartes em seus preliminares (LACAN, 1966/1998LACAN, J. A ciência e a verdade (1966). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 869-891., p. 875).

Lacan recupera esse sujeito foracluído pela ciência na subversão que opera através da psicanálise ao restitui-lo como sujeito do inconsciente no interior mesmo do campo científico. A psicanálise, segundo Stengers (1990STENGERS, I. Quem tem medo das ciências? Ciências e Poderes. São Paulo: Siciliano, 1990.), participa de um movimento maior de contestação da ciência clássica. Ela participa de um movimento de suspeita da ciência moderna, especialmente a partir dos desdobramentos da filosofia da linguagem e do advento do movimento estruturalista no contexto francês.

Percebo dois movimentos historicamente diferentes na relação da psicanálise com a verdade, no que toca à ciência, em Freud e em Lacan. Freud busca o reconhecimento da disciplina que fundava, participando da passagem no Zeitgeist alemão de uma filosofia especulativa e metafísica para uma filosofia científica (ROCHA, 2004ROCHA, Z. Freud e a filosofia alemã na segunda metade do século XIX. Síntese - Revista de Filosofia, v. 31, n. 99, p. 45-64, 2004.). Entretanto, acaba por fundar uma lógica própria, com todas as ambivalências de um pensador de sua época prestes a abrir um novo campo epistemológico, cujo objeto carece de evidente e direta demonstração empírica. A verdade freudiana centra-se no sujeito que, ao falar, revela a experiência do inconsciente sob transferência.

Com Lacan - imerso no ambiente estruturalista francês e eivado de suspeitas científicas advindas da filosofia da linguagem - a verdade, em um primeiro momento, é encarnada pela própria psicanálise. A psicanálise, então, detém a verdade da ciência (STENGERS, 1990STENGERS, I. Quem tem medo das ciências? Ciências e Poderes. São Paulo: Siciliano, 1990.). E, em um segundo momento, é a própria verdade que, como testemunha da experiência com a linguagem sobre o real, realiza-se como uma versão parcial de uma forma de acesso à realidade, que condensa em si mesma uma via de satisfação. A ciência se torna uma espécie de bastião da verdade, sendo ela mesma seu próprio epicentro e sua própria garantia. Em outros termos, o caráter ficcional da verdade científica é desvelado no mesmo ato em que a ciência se torna o campo que fixa o verdadeiro no regime dos semblantes. A psicanálise, nesse segundo movimento lacaniano, é (re)veladora da maneira como se goza de um saber e como se o mantém contido e representado sob o regime dos semblantes e das hierarquias de poder pela ciência. Eu vou agora tentar desdobrar o que se encontra condensado nesse parágrafo.

A QUESTÃO DA VERDADE EM J. LACAN

A psicanálise lacaniana ensina que a verdade recebe da fala “[...] a marca que a institui numa estrutura de ficção” (LACAN, 1960/1998LACAN, J. A ciência e a verdade (1966). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 869-891., p. 822). Essa marca, como podemos presumir, é o que se pode escrever da experiência como limite do saber - que costumamos chamar, em psicanálise, de castração. Devido à castração, a verdade é, a rigor, sempre parcial, no duplo sentido desse termo. Ela é não toda, apresentando-se como um semi-dizer sobre o real (LACAN, 1972-73/1982LACAN, J. Mais ainda (1972-1973). Rio de Janeiro: Zahar, 1982. (O seminário, 20)), e não neutra, devido à intromissão do sujeito com sua subjetividade na palavra (LACAN, 1960/1998LACAN, J. Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano (1960). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 1998, p. 807-842.).

Por esses traços determinados pela castração, a verdade se aproxima da mentira. Aliás, não há equívoco em dizer que a própria verdade tem estrutura de ficção, pela qual ela se manifesta como uma espécie de verdade mentirosa. Falar de verdade mentirosa implica “[...] considerar como essencial, constitutiva, a aliança da verdade com a mentira” (MILLER, 2009MILLER, J.-A. Perspectivas do Seminário 23 de Lacan: O sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar , 2009., p. 125).

Em meados dos anos 1960, quando se detém sobre essa questão da verdade e da ciência, foracluído o sujeito, a psicanálise lacaniana se detém na discussão da verdade, abrindo a sua diferença em relação ao real. A verdade em psicanálise e a verdade para a ciência não possuem, assim, o mesmo estatuto, cabendo aí a pergunta acerca de qual ciência incluiria a psicanálise. Muito próximo ao que propunha como práxis psicanalítica, vemos a dimensão clínica orientar a forma como Lacan toma aqui a verdade, a partir do aforismo: “Eu, a verdade, falo” (LACAN, 1956[1955]/1998LACAN, J. A coisa freudiana (1956 [1955]). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 1998, p. 402-436., p. 410).

Lacan introduz no debate epistemológico uma dimensão perscrutadora e reveladora do modo ficcional como a ciência produz a ilusão de uma certeza metódica. Ao reintroduzir o sujeito pela via do inconsciente, ele, ao mesmo tempo, demarca um limite quanto ao saber, que considera a castração e o jogo de poder e gozo exercido pela produção científica. Mas também lança um novo nível de suspeita quanto à certeza do método. Ao longo de seu ensino, Lacan (1972/2003LACAN, J. O aturdito (1972). In: LACAN, J. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 2003, p. 448-497.) opera um novo deslocamento lógico quanto à verdade na década de 1970, explicitada quando propõe uma distinção entre fixão e ficção. Ele localiza o primeiro termo como aquilo que possibilita a ancoragem do sujeito no real e que permite um contraponto às ficções. Assim, ele diz:

[...] recorrer ao não todo, ao pelo menos um, quer dizer aos impasses da lógica, é, por mostrar como escapar das ficções da mundanidade, fazer uma outra fixão do real: isto é, do impossível que o fixa pela estrutura da linguagem. E também é traçar o caminho por onde em cada discurso se depara o real com o qual ele se envolve, e despachar os mitos com os quais ele ordinariamente se supre. (LACAN, 1972/2003LACAN, J. O aturdito (1972). In: LACAN, J. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 2003, p. 448-497., p. 480).

A ancoragem do real pela via psicanalítica, assim, pode ser pensada, menos pela referência a uma verdade científica, escondida e a ser descoberta pela razão ou reencontrada na natureza - esclarecendo o que restava oculto ou insabido -, e mais por operar como seu avesso. Entre corpo e Outro, entre fantasia e ficção, entre gozo e linguagem, trata-se de encontrar uma forma de composição da realidade face ao real.

Nesse sentido, a psicanálise nos ensina que a verdade decorre de uma operação de extração de um suplemento. A práxis clínica nos ensina que a verdade não diz respeito à descoberta de algo que já estivesse previamente disposto no mundo, pronto a ser recuperado pelo sujeito. Ao contrário, parte do Real e daquilo que lhe vem em socorro como suplemento de linguagem na forma de saber. Assim, toda fixão faz referência à verdade pela via do saber. Com isso, entendemos que, se, num primeiro momento da proposição lacaniana, a afirmação de que “eu, a verdade, falo”, nos conduz à ideia de construção de um saber sobre uma verdade não toda, com o avanço da transmissão lacaniana uma nova espiral se desenha no horizonte.

Dela emerge nova assertiva lógica nos anos 1970, com a qual Lacan abre seu texto Televisão: “Sempre digo a verdade: não toda, porque dizê-la toda não se consegue” (LACAN, 1973LACAN, J. Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos (1973a). In: LACAN, J. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 2003, p. 550-556., p. 508). Na mesma direção, ele retoma o paradoxo do mentiroso: “Sempre digo a verdade. Eu minto. É verdade que eu minto” - que contém o paradoxo de Epimênides1 1 Sugere-se que o paradoxo de Epimênides (cerca de 600 a.C.) é um exemplo de paradoxo mentiroso. Atribui-se a afirmação “Todos os cretenses são mentirosos” a ele, Epimênides, que, justamente, é de Creta... e o de Gödel2 2 O paradoxo do mentiroso, contido na afirmação: “Esta sentença é falsa”, reaparece em Gödel. Uma análise do paradoxo mostra que a sentença não pode ser verdade (porque alega ser falsa), nem é falsa (porque seria verdadeira, então). Uma sentença de Gödel G para a teoria T faz uma alegação similar à alegação do mentiroso, mas com uma demonstrabilidade trocada: G diz “G não é demonstrável na teoria T”. A análise da verdade e demonstrabilidade de G é uma versão formalizada da análise da verdade da sentença do mentiroso. . Se minto, então isso é verdade, não sendo, logicamente, possível verdade e mentira habitarem a mesma sentença. O paradoxo remete à perspectiva de que existiria uma verdade que se oporia à mentira, desvelando sua inconsistência. É justamente esse outro estatuto da verdade “interna ao dizer” e “dissimétrica da falsidade” (MILLER, 2011MILLER, J.-A. A psicanálise, seu lugar entre as ciências. Correio 69, v. N, p. 15-30, 2011., p. 23) que Lacan destaca e recupera nesse período de seu ensino.

Essa verdade, interna ao próprio ato de fala, nos lança em um outro nível de definição e de relação com a verdade. No nível da verdade que se fala (n+), escreve-se uma verdade subtraída no próprio ato de falar (n-), dado que não se alcança pela linguagem: a verdade toda. Nesse sentido, pode-se escrever algo em torno desse impossível de capturar. Se há alguma relação entre verdade e real, ela se refere a esse impossível de escrever. Ao invés de se buscar elucidar o sentido oculto da verdade, o analisante acrescenta uma palavra nova ao real indizível, que não o contém todo, que não o decifra, senão criando uma nova cifra. Essa nova cifra, como saber novo, transforma o Real.

[...] existe um saber [inconsciente] que não calcula, mas que nem por isso deixa de trabalhar em prol do gozo. O que não se pode escrever do trabalho do inconsciente? É aí que se revela uma estrutura de fato pertinente à linguagem, já que [sua] função é permitir o ciframento. Esse é o único ponto pelo qual o discurso analítico tem que se ligar à ciência; mas, se o inconsciente atesta um real que lhe é próprio, aí se encontra inversamente nossa possibilidade de elucidar o modo como a linguagem veicula, no número, o real com que a ciência se elabora. (LACAN, 1973a/2003LACAN, J. Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos (1973a). In: LACAN, J. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 2003, p. 550-556., p. 556).

Transfinito: a verdade como suplemento

Aqui, Lacan recorre à matemática da teoria dos conjuntos de Cantor e se refere ao número transfinito. Ao pensar o aleph zero, que nomeia e cerne o infinito, Cantor destaca-o do Real cernindo um ponto, ainda que não o contenha e não o defina. Ao propor esse significante novo para pensar o infinito, o matemático fez uma operação sobre o real, transformando-o ao permitir que operações lógicas pudessem ser feitas com o infinito a partir de então. Ele nos ensina, assim, a operar sobre uma lógica de suplementaridade quanto ao Real e não de complementaridade quanto ao sentido.

A posição de Lacan em relação à ciência e à práxis clínica se modifica então. Em A ciência e a verdade (1966/1998LACAN, J. A ciência e a verdade (1966). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 869-891.), Lacan encontrava-se em uma espécie de busca da verdade que a ciência forclui. A psicanálise se encontraria do outro lado da ciência, buscando extrair a verdade que (cor)responderia à ciência. Enquanto, em 1973, nesse segundo momento, a psicanálise se encontraria no avesso da ciência, a saber, imbuída da tarefa de escrever o real como impossível.

Assim, em Radiofonia (1970/2003LACAN, J. Radiofonia (1970). In: LACAN, J. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 2003, p. 400-447.), Lacan afirma que a verdade não existe. “Porque a verdade situa-se por supor o que do real faz função no saber, o que se acrescenta a ele” (LACAN, 1970/2003LACAN, J. Radiofonia (1970). In: LACAN, J. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 2003, p. 400-447., p. 443). O efeito de verdade decorre, assim, do que cai como saber. “Conclui-se [então], por não haver várias formas que se impõem ao verdadeiro”, ao contrário, que “um discurso, ao se produzir, apaga a verdade, que aparece como variável” (MILLER, 1993MILLER, J.-A. Sobre o transfinito: em direção a um novo significante. Opção lacaniana, v. 1, n. 6, p. 01-05, 1993., p. 03). A noção de que toda verdade é um suplemento ao Real coloca em ação a função do psicanalista em relação àquilo que fixa tanto o sujeito, quanto o saber em determinada posição, a partir dessa perda no nível do sentido.

Ao passar do princípio da não contradição lógica para o da “não relação”, Lacan (1972-73/1982), coloca em operação uma nova lógica que implica o equívoco do sentido - e não sua contradição lógica. O mais seguro de todos os princípios aristotélicos - “é impossível o mesmo pertencer e não pertencer simultaneamente ao mesmo e segundo o mesmo” (ARISTÓTELES, 2002ARISTÓTELES. Metafísica. São Paulo: Loyola, 2002., p. 19-23) - não pode ser demonstrado diretamente, salvo por refutação. Essa fragilidade do universal radicar-se na univocidade do sentido e não em uma intuição de tipo lógico-predicativa (S não é ao mesmo tempo P e não P) ou proposicional (se todos os S são P, então um S não é não-P), abre a condição de sua superação, de sua reinterpretação.

O sentido, enquanto atributo de significação, implica quem fala - e é isto que está oculto na lógica aristotélica e no discurso do método cartesiano. “O mundo está estruturado como linguagem, e o ente é feito de sentido” (CASSIN, 2013CASSIN, B. O Ab-senso ou Lacan de A a D. In: CASSIN, B. Não há relação sexual: Duas Lições sobre “O Aturdito” de Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2013., p. 16). Quem enuncia, no ato de fala, realiza o universal. Por isso, ele só pode ser verificável a partir do particular - e não o contrário. O universal não pode mais ser tomado como condição a priori e transcendental dos contraditórios, contrários e subcontrários, como na lógica aristotélica. A questão, que se desloca, com Lacan, é a de que a mesma palavra simultaneamente tem e não tem o mesmo sentido “e isso se chama ‘ab-senso’, escapadela para fora da norma aristotélica do sentido” (CASSIN, 2013, p. 17).

Como a lógica da não-relação evidencia o novo topos da verdade no ensino de Lacan? Retornemos a Cantor. Na invenção de seu infinito, ele pretende diferenciá-lo daquele do uso corrente. O infinito, no uso comum, é concebido como grandeza variável que cresce ou decresce além de todo limite. Cantor, por seu turno, projeta o infinito sobre um ponto em um plano e analisa as propriedades e relações desse ponto no infinito com todos os demais pontos do plano. Ele inclui, assim, o não sabido acerca do infinito como ponto destacado da própria cadeia de números inteiros.

Ao colocar em um conjunto os números inteiros, ele pode estabelecer suas relações porque articuladas a partir do ponto exterior extraído desse conjunto, a saber, o infinito ou Aleph. Dessa maneira, podemos entender que sempre haverá um n-1, que equivale a um número menor na linha infinita decrescente dos números inteiros, ou um n+1, correspondente à ordem crescente, se tomados em relação à possibilidade infinita de crescimento ao longo da cadeia infinita. Esta é tomada em seu conjunto em referência ao ponto exterior ao conjunto dos números inteiros.

Figura 01
Extração do não sabido como número transfinito

“Uma vez que o não sabido é posto no exterior constitui-se como o próprio quadro do saber anterior; então se pode inventar um significante novo; um número que será absorvente de toda adição ou subtração, segundo a fórmula: No + 1 = No - 1 = No” (MILLER, 1993MILLER, J.-A. Sobre o transfinito: em direção a um novo significante. Opção lacaniana, v. 1, n. 6, p. 01-05, 1993., p. 4). No lugar do não sabido, Cantor inventou o número Aleph zero. Ele desloca a questão acerca do não sabido do infinito e funda uma nova condição de existência para ele ao tomá-lo como número.

Retomando a citação de Lacan: “Esse é o único ponto pelo qual o discurso analítico tem que se ligar à ciência; mas, se o inconsciente atesta um real que lhe é próprio, aí se encontra inversamente nossa possibilidade de elucidar o modo como a linguagem veicula, no número, o real com que a ciência se elabora” (LACAN, 1973a/2003LACAN, J. Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos (1973a). In: LACAN, J. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 2003, p. 550-556., p. 556). Daí, extraímos o a posteriori na construção do sentido como suplemento em relação ao real, como número. Trata-se, na “construção do caso própria à psicanálise [...] de construir uma sequência que faça aparecer, na sequência mesma, não um termo que falta, mas a parte indizível do que ele comporta” (MALENGREAU, 2003MALENGREAU, P. Notas sobre a construção do caso. Almanaque de Psicanálise e Saúde Mental, Belo Horizonte, Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais, n. 9, p. 11-16, 2003.) e que, como novo significante assemântico, pode ser extraído como letra ou como numerável.

A verdade como invenção variável em relação ao real ganha assim sua forma lógica e sua justificativa epistemológica. A operação de extração clínica se mostra como paradigma da operação de extração na pesquisa em psicanálise.

A PRÁXIS PSICANALÍTICA COM A VERDADE E O REAL NA PESQUISA PSICANALÍTICA

Assim, em seus primórdios, Freud descobre a sexualidade e o próprio inconsciente com as histéricas. Pouco depois, constrói o conceito de transferência para esclarecer e estabelecer indicações clínicas a partir de experiências dos tratamentos que conduz, definindo-a como conceito ao tratar a histeria de Dora. Aloca novo uso para o recalque e funda uma condição do ser falante com a pulsão, que interroga a clássica divisão dualista entre alma e corpo, entre orgânico e psíquico. Lacan também, com seu objeto a, nomeia o não sabido. Com a ideia de letra, funda um novo uso para um termo (re)corrente na linguística e, com lalíngua, inventa um neologismo que nem mesmo o próprio dicionário contém. Se, portanto, a verdade é uma invenção variável que fixa um ponto em relação ao real, ao ser escrita, ela passa a funcionar como fixão, agenciando como significante o modo como um sujeito na clínica articula o gozo ou como um saber se estrutura em relação ao real.

Em nossa prática como pesquisadora, essa tem sido uma constante. Por isso, a seguir, tomarei três experiências recentes de investigação de um fenômeno social complexo (GUERRA, 2020GUERRA, A. M. C. Adolescências em Tempos de Guerra: Modos de Pensar, Modos de Operar. Porto Alegre: UFRGS, 2020.), multicausal e sobredeterminado, a saber, a experiência do adolescente em conflito com a lei, mostrando como essa extração descompleta o campo científico, suplementando-o.

Na primeira, ao buscar entender como se articulava o laço social entre jovens moradores de territórios de aglomerados com alto índice de criminalidade violenta, deparei-me com uma inesperada estratégia de laço-desenlace, cuja matemática Markov me ensinou a ler:

Figura 02
Laço e Desenlace

Os mesmos elementos, que favorecem o enlaçamento de jovens com o corpo coletivo dos aglomerados, podem servir ao seu desenlace. Assim, na figura acima, a linha azul contém elementos que se repetem na experiência dos adolescentes, favorecendo ou desfavorecendo, no mesmo plano, o laço (em amarelo) ou o desenlace (em verde). A estrutura lógica que decorre da aplicação da clínica como paradigma da pesquisa permite-nos ler a verdade contraditória - e, por vezes, tomada como cínica ou mentirosa - do texto desses adolescentes, sem tentarmos estabelecer binarismos ou contradições. Busquei simplesmente explicitar o real em jogo nesses corpos matáveis da periferia, para os quais o Estado insiste em oferecer estratégias de disciplinarização ou simplesmente eliminá-los.

Em outra ocasião, através de conversações psicanalíticas nas quais buscávamos localizar o lugar e a função do pai no discurso dos adolescentes envolvidos com a criminalidade, emergiu a guerra como articulador conceitual, entre a clínica e a política, que permitiu a construção de uma relação de equivalência, tal qual a fórmula abaixo explicita:

Figura 03
Fórmula Pai-Guerra

O desaparecimento do Pai no plano político está para a Guerra, assim como o abandono do pai (edípico) está para a guerrinha. O que isso quer dizer? Na atualidade, face ao enfraquecimento de referentes universais de ordenação do mundo no plano, desvela-se a lógica de extermínio da população supérflua do capitalismo. Lacan é assertivo e nos oferece a explicação dessa estrutura da segregação com clareza:

Creio que em nossa época o traço, a cicatriz da evaporação do pai é o que poderíamos colocar sob o cabeçalho e o título geral da segregação. Acreditamos que o universalismo, a comunicação de nossa civilização, homogeneíza as relações entre os homens. Penso, pelo contrário, que o que caracteriza nosso século, e não podemos deixar de nos aperceber disto, é uma segregação ramificada, reforçada, recortada em todos os níveis, que não faz mais que multiplicar as barreiras. (LACAN, 1969LACAN, J. Intervention sur l’exposé de M. de Certeau: ce que Freud fait de l’histoire. Note à propos de: Une névrose démoniaque au XVII siècle. Congrès de Strasbourg, 12/10/1968. Paris: Lettres de l’École Freudienne, 7, 1969., p. 84).

Para ele, é isso o que “assinala a entrada de um mundo inteiro no caminho da segregação” (LACAN, 1968/2003LACAN, J. Alocução sobre as psicoses da criança (1968). In: LACAN, J. Outros sscritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 359-368., p. 367). Dentro desse grande conjunto de vidas, marcado pela exclusão, uma parcela do grupo de jovens homens, negros e pobres, no Brasil, compõe a guerrinha, enquanto sistema de vida ancorado na rivalidade imaginária e na identificação servil à lógica do crime, especialmente no microtráfico de drogas ilícitas, realizando em ato cotidiano a necropolítica do Estado moderno neoliberal contemporâneo (MBEMBE, 2018MBEMBE, A. Necropolítica. São Paulo: N-1, 2018.).

Assim, eles conformam simultaneamente uma resposta à sua condição histórica e afetiva. Respondem, às avessas, à determinação que condiciona suas existências. Paradoxalmente, onde se arranjam para deixarem de ser supérfluos - na inserção no crime - tornam-se elimináveis. Instala-se entre eles uma lógica na qual o extermínio é a pedra angular, respondendo esse estado de Guerra ao desaparecimento da ordem regulatória no campo político, com a queda dos ideais no contemporâneo, dentro de um regime permanente de estado de exceção.

O totalitarismo moderno pode ser definido, nesse sentido, como a instauração, por meio do estado de exceção, de uma guerra civil legal que permite a eliminação física não só dos adversários políticos, mas também de categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não integráveis ao sistema político. (AGAMBEN, 2004AGAMBEN, G. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004., p. 13).

E, a esse desaparecimento do ordenador no plano político, corresponde o abandono simbólico do pai, em sua função de regulação e de autorização referidas ao desejo e ao gozo, no plano edípico. Como resposta, verificamos os adolescentes em conflito com a lei estabelecendo laços identificatórios, pela via imaginária, ao saber do Outro do crime, com sua tirania e ordens de ferro não dialetizáveis, vividas na rivalidade imaginária entre gangues e ou grupos rivais.

Longe de um modelo patriarcal, ancorado no pai, que responderia a uma suposta ordem universal, a clínica como paradigma da pesquisa psicanalítica revela o que não se escreve na história como parte indizível do real. A pergunta original dessa investigação acerca do pai se desdobra, se expande e nos coloca face ao deserto do real, produzindo um saber como suplemento que resta possível de ser dito acerca desta parte indiscernível. De uma questão local e circunscrita, deparamo-nos com uma verdade não-toda acerca do modo como o gozo se articula politicamente no contemporâneo como refração real da estrutura de uma época.

Finalmente, como terceira experiência de pesquisa, deparamo-nos com uma nova metodologia que se impôs como lógica decorrente da clínica como nosso paradigma. Trata-se das Narrativas memorialísticas (GUERRA et al., 2017GUERRA, A. M. C.; MOREIRA, J. O.; OLIVEIRA, L. V.; LIMA, R. G. The Narrative Memoir as a Psychoanalytical Strategy for the Research of Social Phenomena. Psychology, n. 8, p. 1238-1253, 2017. Disponível em: Disponível em: http://www.scirp.org/journal/psych . Acesso em: 04 jun. 2022.
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), usadas em pesquisas psicanalíticas de fenômenos sociais complexos. Ao investigar psicanaliticamente a desistência do crime entre adolescentes, reencontramo-nos com as noções de inconsciente e de memória. Como o inconsciente é atemporal, a memória se escreve a partir de traços que fixam formas reiteradas de satisfação e de desprazer, na relação entre desejo e gozo, concorrendo para uma composição memorialística de fixão/ficção narrativa (LACAN, 1972/2003LACAN, J. Alocução sobre as psicoses da criança (1968). In: LACAN, J. Outros sscritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 359-368.).

Em seu texto O artudito (1972/2003LACAN, J. Alocução sobre as psicoses da criança (1968). In: LACAN, J. Outros sscritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 359-368.), Lacan aponta para a diferença entre fixão e ficção, localizando os termos como contrapostos na medida em que a fixão ancora o sujeito ao Real, opondo-se às ficções, aos impasses da lógica singular com que o sujeito se escreve na história (LACAN, 1972/2003LACAN, J. Alocução sobre as psicoses da criança (1968). In: LACAN, J. Outros sscritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 359-368.), como vimos acima. Nesse sentido, as narrativas consideram a linguagem a partir de sua possibilidade de comunicação, mas também incluem a palavra como aparelho de gozo que movimenta o corpo, incidindo sobre a forma que ganha sua presença no laço discursivo.

Por isso, elas permitem uma operação clínica se realizar na pesquisa ao compreender as marcas históricas que organizam o texto discursivo como pontos de fixação, de detenção ou, às vezes, de impossibilidade de significação da própria experiência. Perceber esses hiatos de impossibilidade como pontos de retorno, de repetição, de onde nascem versões novas de uma história que se conjugam sem se eliminarem no plano discursivo, implica em tomar a materialidade linguística como base sobre a qual se dispõe também o corpo político da narrativa.

Assim, como podemos ver, em cada uma dessas três diferentes experiências de pesquisa, a clínica opera como lógica subjacente ou estrutural a qualquer metodologia de pesquisa orientada pela psicanálise.

CONCLUSÃO

Busquei, a partir de minha experiência como clínica e como pesquisadora orientada pela psicanálise, fazer a monstração do impossível na clínica como forja do tratamento com o real na base da orientação para a pesquisa psicanalítica. É exatamente o novo real conformado na escrita lógica de cada situação que isola aquilo que não é passível de generalização - a singularidade do gozo - e aquilo que se faz modelo - o tratamento do impossível. Como no processo químico da decantação, o que resta é aquilo que, da infinitude de possibilidades combinatórias, escreveu-se como único, como singular, em uma operação, esta sim, passível de universalização. As perdas do processo não se escrevem senão como restos que, em sua origem, bordam um contorno para o nada no ponto de partida.

Nessa lógica suplementar, não se espera completar o que falta ao conhecimento ou chegar ao que o origina ou buscar o que produz com ele um sentido derradeiro. Por isso, quando clinicamos ou pesquisamos, buscamos o saber que suplementa, mas não equaciona; que cifra (gozo), mas não decifra (inconsciente); que fixa sem necessariamente traduzir ou oferecer sentido. A dimensão da fala, ou a dit-mension, não revela a estrutura ao chegar ao término da sequência a que conduz a decifração.

A inscrição do impossível - que chamamos de sexual em psicanálise - resta como o que faz cifra e aponta o único real que não pode se escrever: a relação sexual. “Falamos do valor que tem o estalão do sentido. Chegar a ele não o impede de fazer furo. Uma mensagem decifrada pode continuar a ser um enigma. [...] O analista se define a partir dessa experiência” (LACAN, 1973/2003LACAN, J. Televisão (1973b). In: LACAN, J. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 2003, p. 508-543., p. 550). E se, como nos lembra Freud (1923[1922/1976FREUD, S. Dois verbetes de enciclopédia (1923). Rio de Janeiro: Imago, 1976. (Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 18)), clínica, teoria e pesquisa são indissociáveis, é deste lugar que sustentamos a articulação do campo psicanalítico na indissociabilidade dessas três operações. E isso não é sem consequências para o regime do gozo da clínica ou para a hegemonia dos saberes da pesquisa.

A direção extraída da psicanálise, portanto, não é a da reprodução dos saberes, mas a da formulação da pergunta acerca do que não se pode escrever como saber - intervalo que recupera o real em causa com a verdade freudiana -, antes como fixão, que como sentido. Como duvidar agora dessa verdade?

REFERÊNCIAS

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  • 1
    Sugere-se que o paradoxo de Epimênides (cerca de 600 a.C.) é um exemplo de paradoxo mentiroso. Atribui-se a afirmação “Todos os cretenses são mentirosos” a ele, Epimênides, que, justamente, é de Creta...
  • 2
    O paradoxo do mentiroso, contido na afirmação: “Esta sentença é falsa”, reaparece em Gödel. Uma análise do paradoxo mostra que a sentença não pode ser verdade (porque alega ser falsa), nem é falsa (porque seria verdadeira, então). Uma sentença de Gödel G para a teoria T faz uma alegação similar à alegação do mentiroso, mas com uma demonstrabilidade trocada: G diz “G não é demonstrável na teoria T”. A análise da verdade e demonstrabilidade de G é uma versão formalizada da análise da verdade da sentença do mentiroso.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    20 Jul 2020
  • Aceito
    31 Maio 2022
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