RESUMO:
Um dos efeitos das transformações contemporâneas é a ausência de referência para o eu, em face de que o nível de angústia se eleva. O presente artigo objetiva colocar em discussão a política do aparecimento e desaparecimento das imagens na contemporaneidade e suas consequências clínicas. Resultado parcial de uma pesquisa que visa investigar a ascensão vertiginosa das imagens e o declínio da função das palavras na subjetividade contemporânea. Diante da angústia paralisante, impõe-se uma política da existência que remarque o lugar da singularidade a fim de que o sujeito do inconsciente apareça.
Palavras-chave:
imagens; subjetividade; contemporaneidade; clínica psicanalítica
Abstract:
One of the effects of contemporary transformations is the absence of reference to the self, as the level of anguish rises. This article aims to discuss the politics of the appearance and disappearance of contemporary images and their clinical consequences. It is one of the results of a larger research that aims to investigate the dizzying rise of images and the decline of the function of words in contemporary subjectivity In the face of paralyzing anguish, a politics of existence is imposed that re-marks the place of singularity so that the subject of the unconscious appears.
Keywords:
images; subjectivity; contemporaneity; psychoanalytic clinic
INTRODUÇÃO
A imagem é um dos marcadores do ponto de partida da constituição da subjetividade, uma vez que é através dela que o sujeito é fundado sob a captura exercida sobre ele. Isso ajuda a entender por que a diferença entre o humano e o animal atravessa a civilização, desde as sombras nas cavernas até o livro das faces (Facebook), notavelmente marcada pelo júbilo com a própria imagem.
Essa condição da qual o sujeito jamais vai se livrar demonstra ainda mais a sua importância quando a clínica psicanalítica revela uma elevação do nível de angústia, em contraste com uma falência das palavras, além de novas formas de subjetivação como repercussão da inclusão do ciberespaço e sua explosão de imagens. De forma crescente, há pessoas em busca de ajuda por se encontrarem submetidas constantemente a severas crises de angústia, que não alcançam a formação de um sintoma.
Questionar sobre o estatuto atual da imagem na estrutura psíquica contribui para o debate sobre a ideia de uma razão tecnológica, que produz uma subjetividade própria à época em que vivemos em virtude da progressiva digitalização da vida privada e das interações sociais, tanto no sentido de uma instrumentalização quanto no sentido de um determinismo. Abre-se espaço para que possamos pensar as imagens numa cultura visual na subjetividade contemporânea a partir da teoria psicanalítica, e de sua interlocução com outros saberes, onde episteme, clínica e política não se separam.
O presente artigo objetiva colocar em discussão a política do aparecimento e desaparecimento das imagens na contemporaneidade a partir do estatuto das imagens no campo da interlocução entre a psicanálise e a filosofia, ilustrado por um fragmento de caso clínico.
O aparecimento
Um dia, ou talvez uma noite, na África Oriental, por volta de 200.000 anos atrás, fez-se um movimento, um gesto, que se duplicou em uma parede formando uma imagem, uma sombra. Talvez tenham sido a primeira imagem da representação humana e seu primeiro espectador. A sombra é aqui compreendida como metáfora do elemento de configuração do eu/corpo, como imagem a partir do outro, que vai compor essa imagem de si na relação especular. A sombra é o motivo que constitui o eu como modelo, assim como o registro perceptivo na linguagem.
As imagens rupestres da Serra da Capivara nos conduzem às longas noites pré-históricas quando a imagem da sombra humana desenhou, pintou e criou outras imagens endereçadas a outros olhares, os nossos. Mondzain (2015MONDZAIN, M. J. Homo spectator: ver, fazer ver. Lisboa: Orfeu Negro, 2015.) evocou as pinturas rupestres das cavernas mais antigas como o cenário que inaugurou e instalou o homem como espectador, inventando a vida em outro tempo, em outra cena, e criando uma nova relação com o tempo e com o espaço.
Instala-se uma intermitência originária, a intermitência própria do espectador e do criador de signos. [...] Vai surgir uma duração singular que escapa à que faz da sua vida um segmento orgânico entre o nascimento e a morte. O homem desvia o seu corpo e os seus gestos das tarefas quotidianas de sobrevivência e conservação. Há um tempo para viver e haverá doravante um tempo para olhar a vida e para pensá-la. O homem que aqui vem desenhar experimenta uma temporalidade nova cujos vestígios transportam a marca. (MONDZAIN, 2015MONDZAIN, M. J. Homo spectator: ver, fazer ver. Lisboa: Orfeu Negro, 2015., p. 33).
Das imagens do acervo de arte da Serra da Capivara e suas espetaculares pinturas rupestres até as imagens digitais e virtuais inteiramente calculadas pela computação nos dias atuais, há uma distância temporal imensa. Entretanto, o júbilo com a própria imagem é a diferença entre o humano e o animal e atravessa a civilização desde as sombras nas cavernas até as famosas selfies que inundam as redes sociais digitais. A política do aparecimento e do desaparecimento das imagens também apaga as distâncias no tempo e no espaço para fazer aparecer, reaparecer e desaparecer as imagens num movimento que alcança velocidade explosiva com as tecnologias digitais.
Dessa forma, através do desejo decidido, de uma política do desejo personificado em Niède Guidon, que desde os anos 1970 chefia a missão franco-brasileira que realizou as grandes escavações no parque situado no interior do Piauí, e com base nas considerações analíticas realizadas por ela, se delineou a “Arqueologia do Movimento”. Tal arqueologia consiste na instrumentalização computacional da pesquisa arqueológica aplicada inicialmente à área que tem a maior e mais antiga concentração de sítios pré-históricos da América para fazer surgir das imagens visuais, obras de arte rupestres de extremo valor, imagens sonoras. Buco descreveu o processo da seguinte forma:
Utilizando a tecnologia informática foi possível inserir figuras rupestres em um programa de computador, o Software MIDI ORCHESTRATOR PLUS, version I.63, Voyetra Technologies, 1995 para PC e, baseado nas duas qualidades do som: a altura e a duração, o programa traduziu os signos gráficos em signos musicais (notas) obtendo um resultado sonoro, ou seja para cada figura rupestre há uma partitura. (BUCO, 2009BUCO, C. A. Arqueologia do movimento: visões sonoras da pré-história na Serra da Capivara. Piauí, Brasil. GLOBAL ROCK ART. Resumos e Atas Digitais - Abstracts and Digital Actas. Vol. I Congresso Internacional da IFRAO 2009 - Piauí / BRASIL, 2009. Disponível em: Disponível em: https://www.academia.edu/8354580/Arqueologia_do_Movimento_Vis%C3%B5es_Sonoras_da_Pr%C3%A9-hist%C3%B3ria_na_Serra_da_Capivara_Piau%C3%AD-Brasil?auto=download . Acesso em: 20 mar. 2019.
https://www.academia.edu/8354580/Arqueol... , p. 1).
Esse é apenas um exemplo das infinitas possibilidades que a instrumentalização computacional tem proporcionado ao campo das ciências e que se pode considerar de grande relevância, principalmente no que diz respeito ao tema da relação homem/imagem.
Entretanto, no debate sobre o tema das imagens, existe uma polêmica gerada nos estudos dos meios de comunicação contemporâneos que contrapõe determinismo tecnológico e instrumentalização tecnológica. É preciso destacar que, com o advento dos novos meios de comunicação de massa, renova-se a matriz crítica sobre a racionalidade instrumental e a tecnológica na tradição da Escola de Frankfurt.
Nesse sentido, Walter Benjamin (1935-1936/1987BENJAMIN, W. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov (1936). São Paulo: Brasiliense , 1987, p. 197-221. (Obras escolhidas, 1, Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura)) contribui significativamente para a compreensão a respeito de como as novas tecnologias impõem novas formas de ver e de ser visto, além de inaugurar uma nova modalidade de relação do sujeito com o tempo e com o espaço. O autor salientou que as novas formas de percepção expressam-se num sensorium diferente em razão da nova técnica. Desvelando o caráter fragmentário da vida moderna e se referindo ao surgimento da imprensa de massa, da fotografia e do cinema, revelou-nos que a noção de temporalidade é marcada pela aceleração e pela fugacidade, o que é demonstrado por meio da rapidez com que tudo aparece e desaparece, refletindo uma era da multiplicação da imagem de massa. Dessa forma, a experiência é simplesmente esvaziada, significando que as novas formas de perceber promovidas pelas tecnologias são, em síntese, extensões dos sentidos, pois interferem no próprio homem e no cenário em que está destinado a viver, provocando novas formas de subjetivação.
Isso implica a consideração dos efeitos para a experiência subjetiva diante das transformações globalizadas, bem como a circunscrição e o cerne das relações entre os humanos e as imagens. Na atual época, a veiculação de imagens se processa como instrumento mobilizado para a construção de modos de ver o outro e alcança proporções planetárias. Televisão, rádio, cinema, fotografia, jornalismo, literatura, produção cientifica, dentre outros, encontram-se unificados num sistema portátil.
Benjamin (1936/1987BENJAMIN, W. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov (1936). São Paulo: Brasiliense , 1987, p. 197-221. (Obras escolhidas, 1, Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura)) tratou a respeito do risco de extinção da figura do narrador e do consequente enfraquecimento da experiência narrativa oral ligada ao desaparecimento do trabalho manual e ao aparecimento de tecnologias que podem evidenciar e atualizar as transformações em curso na contemporaneidade, seu novo sensorium, conforme a perspectiva benjaminiana, e sua proliferação de imagens, conforme a perspectiva adotada no presente estudo; o que pode ser encontrado em suas palavras:
Contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo, e ela se perde quando as histórias não são mais conservadas. Ela se perde porque ninguém mais fia ou tece enquanto ouve a história. Quanto mais o ouvinte se esquece de si mesmo, mais profundamente se grava nele o que é ouvido. Quando o ritmo do trabalho se apodera dele, ele escuta as histórias de tal maneira que adquire espontaneamente o dom de narrá-las. Assim se teceu a rede em que está guardado o dom narrativo. E assim essa rede se desfaz hoje por todos os lados, depois de ter sido tecida, há milênios, em torno das mais antigas formas de trabalho manual. (Benjamin, 1936/1987BENJAMIN, W. A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica (1935-1936). São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 165-196. (Obras escolhidas, 1, Magia e técnica, arte e política), p. 205).
Tal colocação pode ser entendida como um exemplo de crítica sobre a racionalidade instrumental e tecnológica em relação ao narrador que evidencia como o uso dessas tecnologias pode gerar profundas transformações subjetivas, cuja compreensão é imprescindível para a Psicologia Clínica e para Psicanálise.
Bruno levantou questões de interesse fundamental para a Clínica ao indagar sobre as transformações ocorridas com os novos regimes de visibilidade, exposição e “narrativas do eu” no ciberespaço, tendo como consequência topologias redesenhadas “[...] do público e do privado; da intimidade e da sociabilidade; da interioridade e da exterioridade” (BRUNO, 2013BRUNO, F. Máquinas de ver, modos de ser: vigilância, tecnologia e subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2013., p. 7).
Em seu trabalho, Bruno (2013BRUNO, F. Máquinas de ver, modos de ser: vigilância, tecnologia e subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2013.) desenhou o que designou como topologia da subjetividade e do cotidiano. Para essa autora, essa topologia circunscreve a relação do sujeito com o espaço, onde o limite entre o público e o privado se perde no espaço aberto dos meios de comunicação, nas câmeras de vigilância, dentre outros. Em uma sociedade ordenada pelo discurso capitalista, a felicidade está atrelada aos bens de consumo, aos regimes de visibilidade em vigor refratários às particularidades do desejo em que a singularidade do sujeito desaparece.
Por isso, a reflexão sobre a Clínica psicanalítica como uma política de subjetivação inevitavelmente problematiza a atualidade de alguns operadores conceituais que norteiam essa prática na contemporaneidade, tal como o Estádio do Espelho. Esse operador foi proposto por Lacan (1949/1998LACAN, J. O estádio do espelho como formador da função do eu tal como nos é revelada na experiência psicanalítica (1949). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 96-103.) para destacar a função do imaginário, o que permite examinar o estatuto da imagem na metapsicologia freudiana, sobre o qual serão elaboradas algumas considerações.
A perspectiva do Estádio do Espelho diz respeito à assunção jubilatória do filhote humano ao configurar a unidade do corpo próprio como imagem, deixando para trás (pelo recalque) o caos do corpo despedaçado e sem delimitações, próprio à sua prematuridade. Essa proposição teórica permite tecer considerações que articulam a constituição da subjetividade ao mal-estar na contemporaneidade através do tema das imagens, que aparece nos textos iniciais da teoria lacaniana e desaparece (LACAN, 1949/1998LACAN, J. O estádio do espelho como formador da função do eu tal como nos é revelada na experiência psicanalítica (1949). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 96-103.).
Para desenvolver seu conceito do Estádio do Espelho, Lacan (1949/1998LACAN, J. O estádio do espelho como formador da função do eu tal como nos é revelada na experiência psicanalítica (1949). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 96-103.) o abordou partindo do narcisismo freudiano como um momento estrutural do ser humano que ocorreria entre os seis e os dezoito meses de vida. A partir desse processo, ocorre o reconhecimento na imagem do outro semelhante, geralmente aquele que faz a função dos cuidados e da sobrevivência. A identificação com essa imagem lhe proporciona uma ilusão de completude que é antagônica à vivência de despedaçamento e do caos inicial referendado pelo seu momento pulsional, como também vai possibilitar que o sujeito tenha um corpo a partir do qual disponha da condição de, nesse lugar, ser capturado no olhar do outro (LACAN, 1949/1998LACAN, J. O estádio do espelho como formador da função do eu tal como nos é revelada na experiência psicanalítica (1949). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 96-103.).
O desaparecimento
Diferentemente de períodos anteriores, foi possível constatar uma profusão de publicações sobre o tema das imagens a partir do final de 2015, o que demonstra tanto a velocidade do fluxo de informações quanto à evidência do fenômeno da pletora de imagens. Contudo, para contribuir a partir dessas publicações, fez-se necessário inicialmente abordar a questão da imagem em si para então chegar à problemática de sua profusão.
Onde podemos situar o tema das imagens? Quando e onde as imagens se tornaram objeto de reflexão de forma mais ou menos sistemática?
Há consenso sobre a antiguidade do tema. Desde os primeiros filósofos gregos ocorre a pergunta a respeito do que é uma imagem e de qual seja o seu papel na constituição do conhecimento e na formação do ser humano. Para Boehm (2017BOEHM, G. Aquilo que se mostra: sobre a diferença icônica. In: ALLOA, Emmanuel. Pensar a imagem. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015, p.23-38.), a questão da imagem e das imagens é mesmo filosófica. Ela aparece e desaparece na filosofia. Como objeto durante muito tempo excluído, destaca-se também por seu desaparecimento do logos filosófico, todavia, mais do que nunca, reaparece na atualidade e ganha visibilidade tal que a coloca à prova crítica, na qual pensar a imagem se torna imprescindível.
No campo da estética e em relação às obras de arte, o tema das imagens ganha força inovadora ao se articular com outros campos do saber, tal como a Psicanálise. Para Didi-Huberman (2013aDIDI-HUBERMAN, G. A. Diante da imagem: questão colocada aos fins de uma história da arte. São Paulo: Editora 34, 2013b.), a subjetividade é plástica, e as imagens possuem poderes que impactam, configuram e atualizam realidades plásticas e psíquicas. A partir de suas pesquisas, analisou que as imagens sofrem de reminiscências. Quando tratou da dimensão política, Didi-Huberman (2013bDIDI-HUBERMAN, G. A. Imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013a.) aproximou o seu entendimento ao pensamento freudiano ao apropriar-se das análises das imagens dos sonhos e aplicá-las às imagens da arte.
No que diz respeito à implicação do tema das imagens às novas tecnologias, são inúmeros os recortes produzidos. Na perspectiva de Giddens (2002GIDDENS, A. Modernidade e identidade. São Paulo: Zahar, 2002.), uma das mais distintas marcas da nossa época é que as coisas não valem pelo que são, mas a partir das fontes midiáticas efervescentes e evanescentes divulgadas pelo sistema de comunicação, se medidas por esse processo. Se o que garante a existência das coisas é o fato de serem veiculadas pelos meios de comunicação de massa, dos quais adquire lugar no regime de visualidade atual, o que não aparece é como se não existisse, enquanto o que aparece tende a desaparecer rapidamente em meio à inundação de imagens.
Um dos trabalhos mais recentemente encontrados a respeito das imagens foi elaborado por Santos, que permite uma articulação com os estudos que abordam os pontos de convergência entre internet, algoritmos e novas formas de poder político. Ele aposta principalmente no determinismo que aponta para uma política da existência em conformidade com a noção foucaultiana de governamentalidade. Apoiado na filósofa do direito, Antoinette Rouvroy, esse autor verifica e sinaliza “[...] a ocorrência em possíveis riscos e perigos de um processo de instalação de um novo tipo de governo que age através da otimização algorítmica dos comportamentos, das relações sociais e da própria vida” (SANTOS, 2019SANTOS, R. L. Comunicação oral: Governo algorítmico como construtor de subjetividades ou sobre o digital como forma-devida. IISimpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital: saber, criação e virtualidade. Anais... Belo Horizonte, 2019.).
Virilio considera que o virtual não é uma utopia, mas uma atopia, um não lugar. Diz ele: “A utopia é um lugar. Um lugar ideal onde se tenta a aventura da unidade, da justiça, da unidade da beleza, da verdade, etc.” (VIRILIO, 2001VIRILIO, P. Entrevista concedida a MACHADO, J. da S. Revista FAMECOS. Porto Alegre, n. 16, dezembro 2001, quadrimestral. Disponível em:Disponível em:http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/revistafamecos/article/viewFile/3134/2405 . Acesso em: 19 ago. 2019.
http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/...
, p. 8). Ele é bastante criticado por ser tomado como apocalíptico e retrógado, mas o que revelou em entrevista em 1997 sobre o risco de um controle social através dos meios tecnológicos, em parte, já pode ser constatado.
Na concepção do autor, em um mundo inundado por imagens, existe o risco de que um processo de instalação de um novo tipo de controle social vigore plenamente. Com efeito, o espaço se dissolve, os objetos só se manifestam em seu desaparecimento e tudo se torna muito rápido para a percepção humana, obrigando-o a certa automatização. Em conformidade com o autor, no ciberespaço, o que desaparece é o espaço entre as pessoas, a separação. De modo contrário, notemos que aparece um espaço enorme entre pessoas próximas. É comum que se observe, por exemplo, casais que estejam separados numa mesma mesa de restaurante, cada um com o olhar fixo em sua própria tela.
A Psicanálise e as imagens
A fascinação humana pela imagem se eleva à categoria de obra de arte, e encontra na Psicanálise suas razões e desrazões. O ponto de ancoragem do tema desse trabalho é pensar a imagem como ponto de partida da subjetividade, o eu durante toda a sua vida é capturado por imagens, às quais ele se identifica sucessivamente.
Questionar sobre o estatuto da imagem na estrutura psíquica contribui para o debate sobre a ideia de uma razão tecnológica que produz novas formas de subjetivação. Contudo, numa perspectiva epistemológica, é preciso acompanhar Lacan em sua análise sobre a noção de subjetividade separando sujeito e subjetividade. Pois, para Lacan, no que diz respeito à clínica psicanalítica, importa “o sujeito verdadeiro, isto é, o sujeito do inconsciente [...]” (LACAN, 1988/1954LACAN, J. Os escritos técnicos de Freud (1953-1954). Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 1986. (Seminário, 1), p. 372). “O sujeito que vai muito além do que o indivíduo experimenta ‘subjetivamente’ [...]” (LACAN, 1953LACAN, J. Função e campo da fala e da linguagem (1953). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 238-324., p. 266).
No que diz respeito à psicanálise, a imagem como elemento operador constituinte da subjetividade obriga-nos, através de seu dispositivo clínico, a investigar sobre o estatuto da imagem na psicanálise e para além. Embora Freud tenha abordado a questão da imagem em relação ao funcionamento psíquico em vários de seus textos, a problemática da imagem não encontra um lugar determinado na obra. Coube a Lacan enfrentar a questão da imagem em seus textos iniciais numa interlocução com os mais variados campos do saber, demonstrando que a complexidade do tema só alcança resultados no trabalho interdisciplinar.
Inicialmente, a leitura do texto de Freud (1923/1976FREUD, S. O Ego e o Id (1923). Rio de Janeiro: Imago, 1976. (Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, 19)) orientou que se confira atenção aos efeitos da superabundância das imagens na vida subjetiva na medida em que também sinalizou a importância dos “resíduos mnêmicos ópticos” e do “caráter especial do pensar visual”, que, para muitas pessoas, “parece ser o método favorito”. A respeito disso, ele escreveu sobre o pensar visual:
Aprendemos que o que nele se torna consciente é, via de regra, apenas o tema geral concreto do pensamento, e que as revelações entre os diversos elementos desse tema geral, que é o que caracteriza especialmente os pensamentos, não podem receber expressão visual. Pensar em figuras, portanto, é apenas uma forma muito incompleta de tornar-se consciente. De certa maneira, também, ela se situa mais perto dos processos inconscientes do que o pensar em palavras, sendo inquestionavelmente mais antiga que o último, tanto ontogenética quanto filogeneticamente. (FREUD, 1923/1976FREUD, S. O Ego e o Id (1923). Rio de Janeiro: Imago, 1976. (Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, 19), p. 34-35).
Notemos que o pai da Psicanálise revelou algo contraditório ao senso comum de que uma imagem vale mais que mil palavras: as imagens, diferentemente das palavras, produzem um pensamento raso e limitado à reprodução do tema geral e acrítico. Aqui, cabe uma ressalva para mencionar, a partir de Freud (1923/1976), que, para imagens das obras de arte, sobretudo as que subvertem a representação linear simbólica e operam a divisão frente às imagens totalizantes: “O Sonho da Razão Produz Monstros”, o que, dos Caprichos de Goya, resume a discussão política de sua época, evidenciando que a obra de arte mobiliza o espectador a passar à palavra.
No sentido estabelecido por Lacan (1949/1998LACAN, J. O estádio do espelho como formador da função do eu tal como nos é revelada na experiência psicanalítica (1949). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 96-103.) a partir do Estádio do Espelho e sob o registro do imaginário, a subjetividade está dotada de uma completude, de uma totalidade que tende a se reeditar e se ligar, a fazer massa. Mondzain considerou que a indústria do espetáculo depaupera paulatinamente os recursos do espectador ao oferecer milhões de objetos para serem consumidos pela visão. “As massas, às quais se oferece diariamente milhões de coisas para ver, tornadas “público”, perdem de vista, em bom rigor, a sua própria aparição subjetiva no campo cruzado do reconhecimento” (MONDZAIN, 2015MONDZAIN, M. J. Homo spectator: ver, fazer ver. Lisboa: Orfeu Negro, 2015., p. 17).
Embora não esteja explícito no texto, a autora faz uma distinção entre ver e olhar. A poluição visual à qual estamos submersos não permite o tempo para o olhar que exige o reconhecimento cruzado dos sujeitos envolvidos na produção de imagens. “O verbo ver torna-se um infinitivo sem sujeito, ou seja, uma operação orgânica que absorve o olhar nos objetos que ele consome e que o consomem” (MONDZAIN, 2015MONDZAIN, M. J. Homo spectator: ver, fazer ver. Lisboa: Orfeu Negro, 2015., p. 17).
Diante das circunstâncias que se apresentam no cotidiano na relação do Homo spectador com a força imperiosa das imagens e dada a situação de desamparo e medo em que se vive imerso em ondas de violência, a relação do sujeito com as novas tecnologias da comunicação torna-se visceral, constante, contínua e começa cada vez mais cedo. Para Lacan (1951/1999LACAN, J. Algumas reflexões sobre o Ego (1951). Opção Lacaniana - Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 24, jun. 1999. São Paulo: Edições Eólia.), tratava-se do aparecimento de um tipo novo de humano, denominado por ele como Homo psychologicus, derivado das diversas funções que ocupamos na sociedade como terapeutas, assim como das enfermidades que tentamos aliviar.
Homo psychologicus, produto de nossa era industrial. As relações entre esse homo psychologicus e as máquinas que ele utiliza são surpreendentes, especialmente quanto ao automóvel. Temos a impressão que sua relação com esta máquina é tão íntima que é como se os dois estivessem unidos - seus defeitos mecânicos e suas panes são com frequência sincrônicos a seus sintomas neuróticos. Para ele, esta significação funcional provém do fato de que exterioriza a concha protetora de seu ego, assim como o fracasso de sua virilidade. (LACAN, 1951/1999LACAN, J. Algumas reflexões sobre o Ego (1951). Opção Lacaniana - Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 24, jun. 1999. São Paulo: Edições Eólia., p. 12).
Freud discorreu sobre os mecanismos da formação das massas, sua submissão cega a um líder e a intolerância ao diferente, tendo em vista que a sugestionabilidade “[...] é na realidade um fenômeno irredutível e primitivo, um fato fundamental na vida mental do homem” (FREUD, 1921/1976FREUD, S. Psicologia de grupo e análise do ego (1921). Rio de Janeiro: Imago , 1976. (Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, 18), p. 114). Mais uma vez, ele sublinhou a questão de “pensar por imagens” em referência à subjetividade das massas:
Um grupo é extremamente crédulo e aberto à influência; não possui faculdade crítica e o improvável não existe para ele. Pensa por imagens, que se chamam umas às outras por associação (tal como surgem nos indivíduos em estados de imaginação livre), e cuja concordância com a realidade jamais é conferida por qualquer órgão razoável. Os sentimentos de um grupo são sempre muito simples e muito exagerados, de maneira que não conhece a dúvida nem a incerteza. (FREUD, 1921/1976FREUD, S. Psicologia de grupo e análise do ego (1921). Rio de Janeiro: Imago , 1976. (Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, 18), p. 101).
Com relação às palavras, Freud escreveu que “em essência, uma palavra é, em última análise, o resíduo mnêmico de uma palavra que foi ouvida” (FREUD, 1921/1976FREUD, S. Psicologia de grupo e análise do ego (1921). Rio de Janeiro: Imago , 1976. (Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, 18), p. 34). Atente-se para a distinção entre o tempo da fala que tem por unidade a palavra e o tempo da percepção visual. A percepção visual diz respeito ao instantâneo, ao instante, ao aqui e agora.
Mondzain também apontou uma mentalidade tecnológica típica de nossa época. Diz ela: “Seria necessário aceitar que a técnica do zapping se tornou também zapping mental, e que a renovação contínua dos objetos não dá a menor chance ao ritmo da atenção e da palavra” (MODZAIN, 2016MONDZAIN, M. J. Sideração. Dansk bogfortegnelse: Zazie, 2016. Disponível em:Disponível em:https://static1.squarespace.com/static/565de1f1e4b00ddf86b0c66c/t/58499d20ff7c50d55a81e220/1481219365499/MARIE+JOSE+MONDZAIN_SIDERACAO_ZAZIE_2016.pdf . Acesso em: 19 ago. 2019.
https://static1.squarespace.com/static/5...
, p. 5).
Trata-se de se formar conexões entre um conceito estabelecido e fenômenos sociais, viabilizando provocações reflexivas e uma discussão consequente sobre o tema intangível da imagem no âmbito da clínica psicanalítica. A clínica é o coração pulsante da Psicanálise, que não aparece dissociada da episteme e da sua política. É notável, conforme Dunker, que na clínica psicanalítica escuta-se o sujeito e que esse sujeito não é o indivíduo, o sujeito é dividido, “[...] o sujeito não é só o particular, sua divisão se dá pelo fato de que ele é também lugar do universal (o tabu do incesto, por exemplo, é a marca desta universalidade)” (DUNKER, 2011DUNKER, C. Antropologia e Psicanálise: entrevista com Christian Dunker. Revista de Antropologia Social dos Alunos do PPGAS-UFSCar, v. 3, n. 2, p. 121-146, jul./dez2011. Disponível em: Disponível em: http://www.rau.ufscar.br/wp-content/uploads/2015/05/Vol3no2_ENTREVISTADUNKER.pdf . Acesso em: 25 set. 2019.
http://www.rau.ufscar.br/wp-content/uplo...
, p. 130). É no sentido de colher da clínica as narrativas que forneçam indícios do mal-estar, sintomas e sofrimento próprios de nossa época que um fragmento de caso clínico será abordado a seguir.
Entre uma casa sem chão e uma mulher sustentada, a indestrutível aparição do sujeito
“Você chega na casa da pessoa e ela não está... É tão estranho chegar na casa dela e ela não tá, como se eu não tivesse ali... sinto uma falta que não é só dela, é maior, sinto falta do mundo, de mim, do jeito que eu era antes. Sinto falta do jeito que ela me olhava, como se eu fosse uma criança, eu estava lá, firme. Assim, com esse olhar. Perdi meu chão.”
_ Uma casa sem chão? FIM
A fala do sujeito sobre o momento em que adentra a casa e não encontra o chão, o seu chão, fala de um não lugar e ao mesmo tempo aponta o dispositivo analítico como um lugar para falar. Falar sobre o quê? Falar daquilo que não encontra lugar no mundo e, portanto, é silenciado, reaparecendo e desaparecendo, através de imagens cenestésicas sem sentido algum, tais como falta de ar, sensação de que os pulmões não se enchiam de ar, tontura, “amolecimento”, aceleração dos batimentos cardíacos e ânsia de vômito. Fala da morte de sua avó.
É na falta da imagem de um olhar, em transferência e em sincronia com a passagem para o divã, que a imagem da casa sem chão aparece como interpretação. Ao mesmo tempo, as imagens cenestésicas desaparecem para que se inicie uma construção narrativa sobre os vários lugares que o sujeito ocupou, enseja ocupar no mundo e que aparece como queixa em relação ao outro próximo. O pai, a mãe, o marido, a universidade e, finalmente, queixa-se de si. Tem medo de escolher errado. Dessa forma, abre-se a via para uma construção em análise, assim como para uma ressignificação da falta desse olhar e, consequentemente, um trabalho do luto.
A passagem para o divã merece aqui um destaque, porque é o momento preciso do aparecimento de uma imagem, a conversão em uma imagem, uma figuração plástica de algo que ainda não era um pensamento, mas, como definiu a jovem mulher, era “apenas uma agonia”, imagens cenestésicas terrivelmente perturbadoras. Dito de outro modo, o aparecimento da “casa sem chão” é concomitante ao desaparecimento da figura do analista que comparece apenas com a escuta e corta o tempo colocando o enigma da casa sem chão.
A própria palavra Díwàn que, na língua turca, significou a “sala do conselho do sultão”, diz uma coisa na língua turca antiga, mas a imagem do objeto diz outra coisa. Um sofá “sem braços”, “sem encosto”. Não há onde se encostar, não é para relaxar. Se nele a imagem do analista deve desaparecer para que o sujeito do desejo inconsciente compareça através da fala, perguntamo-nos: qual o destino desse objeto simbólico na experiência analítica em tempos de atendimentos on-line? Um objeto/lugar que promove uma noção de temporalidade outra.
Antes de dirigir o pedido de análise, a jovem mulher consulta um médico, que fornece um diagnóstico e uma receita.
A crença de que qualquer lugar no mundo é instituído apenas pelo Outro se ancora na própria constituição da subjetividade. Mas se revigora e se atualiza na nomeação colocada pelo outro, autorizado, neste caso um médico, categorizando o sintoma pelo nome de “síndrome do pânico” e desencadeando as piores crises. Conforme suas palavras: “parecia que o coração queria sair pela boca”. O momento em que o sujeito utiliza os objetos tecnológicos, pequenas “máquinas de ver”, teve o propósito de buscar um saber sobre o seu sintoma com o objetivo fracassado de encontrar alívio nas informações. Entretanto, essa nomeação autorizada já deixa à mostra a sua inexorável fissura em uma decidida recusa à medicação como “receita” para o seu denominado “mal de pânico”, através da crença exagerada de que poderia vir a desenvolver uma doença orgânica e “morrer ou ficar pra sempre dependente” em virtude da ingestão da medicação. A receita pronta que serve a todos não abre espaço para que se estabeleça uma aposta no tratamento, não há tempo para uma construção narrativa. Por isso, não se estabelece uma relação médico-paciente e o famoso “você não tem nada”, “é psicológico” fazem eclodir a impaciência. São frases clichês que reforçam a unidade da imagem que se refrata no sujeito em efeitos dispares em várias representações. A racionalidade médica se impõe através da utilização dos meios de comunicação de massa ao âmago do pensamento popular, muito frequentemente deformada. Organizando uma nova maneira de julgamento das coisas, recobre, no caso com a categoria nosológica “mal de pânico”, a tristeza, o luto, a fadiga, a preguiça, o romance familiar, a decepção, o desamparo social, as péssimas condições de trabalho, mas, sobretudo, recobre a singularidade do sujeito.
Nas primeiras entrevistas, as imagens visualizadas nas redes sociais, que sabemos serem da ordem do excesso, no estilhaçamento das informações, a coerência aparece como um relatório descritivo do dia e em pares de opostos. Sublinhamos o pronome pessoal “você”, que se repete frequentemente no início das frases na fala do sujeito e também a ausência do eu. “Você chega atrasada e encontra uma fila enorme no elevador”. É como se o sujeito fosse ator e espectador da própria vida, é uma fala entretecida de traços cênicos. Imagens do sofrimento humano ou animal como portadoras de uma verdade, e as imagens da felicidade humana como portadoras de uma falsidade visível. As imagens do sofrimento que se fixam como verdadeiras são sempre aterrorizantes e a que mais se destaca dentre estas, são as imagens de uma África agonizante. A África que mais aparece. O relato se traduz em fragmentos que descrevem o seu cotidiano e fragmentos das mais variadas coisas que vê e participa no ciberespaço.
É sempre necessário ser paciente para encontrar o sujeito onde menos se espera. Foi difícil não ceder ao ímpeto de fazer uma intervenção do lugar de mestre e sugerir-lhe para usar as redes sociais de forma mais moderada.
Contudo, as imagens da “felicidade” sofrerão um processo de falsificação e de derrisão no processo de análise e aparecem destacadas no relato com a imagem de “uma mulher sustentada por um homem e alta do chão” em lugar paradisíaco, uma paragem do tempo. Todos os relatos são feitos em um tom de blá-blá-blá sem interesse e sem emoção. Conforme Mondzain (2016MONDZAIN, M. J. Sideração. Dansk bogfortegnelse: Zazie, 2016. Disponível em:Disponível em:https://static1.squarespace.com/static/565de1f1e4b00ddf86b0c66c/t/58499d20ff7c50d55a81e220/1481219365499/MARIE+JOSE+MONDZAIN_SIDERACAO_ZAZIE_2016.pdf . Acesso em: 19 ago. 2019.
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), um “zapping mental”.
Entre a imagem de uma África agonizante e a imagem da mulher sustentada por um homem, aparece a imagem da casa sem chão. Um não lugar. Não lugares é o termo que Augé (1994AUGÉ, MARC. Não lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas: Papirus, 1994.) empregou para designar um espaço de passagem incapaz de fornecer elementos de identificação para o sujeito e que proliferam na atualidade, a exemplo dos centros de consumo tais como shoppings, hipermercados, dentre outros. Em seguida, a casa foi vendida durante o processo de divórcio dos pais e aparece o relato sobre a necessidade de ter um trabalho remunerado. Não ser sustentada/ser sustentada, ter uma casa, um chão.
Uma imagem possui um estatuto ambíguo que a faz oscilar da multiplicidade de seus elementos à sua apreensão pregnante de totalidade. A interpretação: uma casa sem chão? E o corte pergunta pelo sujeito e ele responde. Entre duas imagens, foi preciso criar uma terceira, dessa vez precisa, onde o outro aparece como ausência, como falta.
O conceito freudiano de narcisismo, como forma de investimento pulsional em si mesmo e como objeto necessário à constituição do sujeito, ensina que a identificação primordial jamais se cristaliza em uma identidade unívoca e que a passagem de uma identificação para outra implica em ressignificações das passagens anteriores.
O Estádio do Espelho é estrutural, pois trata de uma lógica que atravessa toda a vida do sujeito, o “espelho de Narciso” e a “fotografia de si”. Representa aqui a relação libidinal essencial com a imagem corporal e ilustra o aspecto de conflito presente na relação dual (eu/outro). Dizer que é estrutural é precisar que faz parte do pathos fundamental, aquilo que funda o sujeito. O eu é sem consistência, a imagem de Narciso é Narciso lá onde ele não está. É lá que ele insiste, se confunde e se (des)encontra. O mal-estar no mundo, o não lugar do sujeito que, nos ataques de pânicos, se instalam na imagem do corpo próprio, através de imagens cenestésicas lascivas provocando as sensações de desarvoramento, sensações de que não há nada que esteja no comando, medo sem objeto. Contrariamente, as sensações calmantes, oceânicas, de ligação com o mundo.
Nesse sentido, Dunker comentou que a tradução do título do texto freudiano de 1932, O mal-estar na civilização, como “[...] impossibilidade de estar, a negação do estar, e não apenas a negação do bem-estar” (DUNKER, 2015DUNKER, C. Mal-estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros. São Paulo: Boitempo, 2015., p. 192). Neste sentido, a escuta analítica em transferência proporciona ao sujeito um lugar?
Lacan (1953-1954/1986LACAN, J. Os escritos técnicos de Freud (1953-1954). Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 1986. (Seminário, 1)) ofereceu alguma pista para responder a essa questão ao tratar do que é a transferência. Não a transferência da relação entre o médico e o paciente, mas a transferência simbólica.
Na sua essência, a transferência eficaz de que se trata é simplesmente o ato da palavra. Cada vez que um homem fala a outro de maneira autêntica e plena, há, no sentido próprio, transferência simbólica - alguma coisa se passa que muda a natureza dos dois seres em presença. (LACAN, 1953-1954/1986LACAN, J. Os escritos técnicos de Freud (1953-1954). Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 1986. (Seminário, 1), p. 130).
A transferência simbólica transforma o espaço analítico num lugar? E, ainda, o ciberespaço pode ser esse lugar? A transferência simbólica que difere da transferência imaginária inicial necessita dos “dois seres em presença” física, ou ela pode acontecer no ciberespaço?
O sujeito subversivo, revolucionário que opera na clandestinidade
O aparecimento e o desaparecimento em relação à imagem de si, ao eu como imagem, articulam-se com a questão do espaço, pois quem aparece, aparece em algum lugar e para alguém. A esse respeito, Freud (1923/1976) situou o ego como lugar representativo de uma unidade, entretanto descentrado, uma vez que se constitui a partir do investimento libidinal do outro. A perseguição constante da unidade ilusória gera uma tensão libidinal que faz desaparecer da cena o sujeito, todavia fazendo aparecer no espaço por um instante o eu ideal, onde se transita entre ator e espectador.
Uma vez que a imagem “da mulher sustentada” é também a imagem da “mulher sem chão” e, depois, a mulher sem teto, sem sustento algum, é no intervalo entre as duas que o sujeito do desejo pôde aparecer porque foi lhe dada à palavra constituindo-se, tecendo-se um lugar. A imagem da mulher sustentada por um homem é sua utopia romântica, como disse Virilio, trata-se de “um lugar ideal onde se tenta a aventura da unidade, da justiça, da unidade da beleza, da verdade, etc.” (VIRILIO, 2001VIRILIO, P. Entrevista concedida a MACHADO, J. da S. Revista FAMECOS. Porto Alegre, n. 16, dezembro 2001, quadrimestral. Disponível em:Disponível em:http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/revistafamecos/article/viewFile/3134/2405 . Acesso em: 19 ago. 2019.
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, p. 8). Um lugar ideal que encontra na imagem virtual sua visibilidade, sua sideração, seu amor ideal e incondicional. A imagem da África agonizante, da que aparece, é a visibilidade do desamparo.
Mas a imagem da ausência de chão abre uma margem de indeterminação - o espaço do sujeito - lugar de sua aparição. Mas, como ensinou Lacan, “[...] A tensão libidinal que entrava o sujeito na perseguição constante de sua unidade ilusória, que o afasta sempre de si mesmo, tem com certeza uma relação com esta angústia de abandono que é o destino trágico e particular do homem” (LACAN, 1951/1999LACAN, J. Algumas reflexões sobre o Ego (1951). Opção Lacaniana - Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 24, jun. 1999. São Paulo: Edições Eólia., p. 11).
Considerações finais
As novas tecnologias da informação e da comunicação, enquanto máquinas de instrumentalização computacional, têm proporcionado possibilidades de grande relevância ao campo das ciências. Sem elas, certamente, o enfrentamento de uma epidemia de magnitude planetária seria inimaginável, e as imagens sonoras da “Arquelogia do Movimento” de Niède Guidon, no interior do Piauí, seriam impossíveis.
Contudo, entendemos que as TICs, com sua aceleração constante, enquanto ferramenta mediadora das relações entre os indivíduos, não dão tempo à elaboração de uma experiência que garanta uma memória social, que contenha a experiência. Não há tempo para a memória que, segundo a hipótese freudiana, se constitui por traços deixados no psiquismo de palavras ouvidas, por imagens percebidas em uma escrita psíquica e ocorre a partir de uma comunicação afetiva.
O filósofo Walter Benjamin (1994BENJAMIN, W. A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica (1935-1936). São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 165-196. (Obras escolhidas, 1, Magia e técnica, arte e política)) lança sua luz com a noção de empobrecimento da narrativa como redução da comunicabilidade da experiência para dizer de uma marca subjetiva de uma época e suas novas tecnologias. O que encontramos no fragmento do caso clínico como dificuldade de produzir uma narrativa é o declínio da função das palavras como marca da subjetividade contemporânea em contraposição a uma ascensão vertiginosa das imagens. Mas, para além desses fenômenos sociais destacados da nossa pesquisa, o relato da jovem nos faz pensar que as imagens visualizadas no ciberespaço aparecem na forma descritiva, curta, como um twitter, um post no Instagram, uma informação rápida que passava imediatamente para a outra e bem difícil de escutar. Fez-se necessário visualizar estas imagens. A continuidade das sessões demonstrou que a dificuldade de fazer uso da palavra para contar e recontar suas histórias de alegria e de sofrimento, para contar-se como única, era apenas temporária. De que lado mora a dificuldade?
Vimos que Lacan se surpreende com as relações entre esse “homo psychologicus” e as máquinas que ele utiliza. Na atualidade, temos as máquinas que replicam processos em massa por meio de mecanismos de identificação horizontal dos indivíduos entre si, um mundo de signos que funciona em pares de oposição. A busca pelo idêntico, próprio do humano, exacerba-se em momentos de crise, no ciberespaço associado ao mecanismo de aprendizado de máquina, de busca e também à sugestão algorítmica que ampliam a inclusão e exclusão de ideias (imagens mentais).
A política do aparecimento e do desaparecimento das imagens na contemporaneidade tem consequências clínicas porque é da velocidade, da aceleração que se trata nas circunstâncias atuais. No caso aqui apresentado, o tempo das sessões foi quase sempre longo, tempo para que as imagens do ciberespaço fossem se reduzindo à imagem da “África agonizante” e à imagem de uma “mulher sustentada por um homem e alta do chão”, mas o tempo da experiência foi relativamente curto.
O que a prática clínica revela é que, de forma crescente, as pessoas procuram ajuda por se encontrarem submetidas constantemente a severas crises de angústia que não alcançam a formação de um sintoma como uma formação do inconsciente formada com a finalidade de evitar a angústia, na perspectiva freudiana (FREUD, 1921/1976FREUD, S. Psicologia de grupo e análise do ego (1921). Rio de Janeiro: Imago , 1976. (Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, 18)). No âmbito da medicina, a angústia também não é identificada como um sintoma, sinal objetivável de uma doença.
No bojo das transformações ocorridas na contemporaneidade, o panorama inclui o tsunami narcotizante de imagens, conhecimentos fragmentados, fluxo acelerado de informações, crises por todo lado e a vida em zapping, face às quais o eu não encontra identificação. Pois a primeira coisa que se pode dizer da angústia é que sua aparição é sinal do desaparecimento momentâneo de toda referência identificatória possível, restando uma identificação com o seu próprio organismo. A dificuldade em construir uma narrativa mostrou-se, no caso clínico, concomitante à dificuldade em escutar uma construção narrativa feita de recortes imbricados a traços cênicos, sobretudo, imagens visuais.
Atentas ao fenômeno contemporâneo e diante da angústia paralisante, faz-se necessário mudar o ritmo, impõe-se modificar a própria existência, impõe-se uma política da existência que cave um lugar para a singularidade, para que o sujeito do desejo inconsciente apareça. A experiência analítica caminha na direção oposta da aceleração, mas compreendemos que é preciso apreender quais as dificuldades impostas por essa nova temporalidade. O sujeito do desejo é subversivo, revolucionário e opera na clandestinidade do inconsciente, portanto, acreditamos que sua aparição é indestrutível.
REFERÊNCIAS
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
22 Out 2021 -
Data do Fascículo
May-Aug 2021
Histórico
-
Recebido
22 Dez 2019 -
Aceito
03 Set 2021