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Futuro anterior

RESENHAS

Futuro anterior

Future perfect

Fernanda Costa-Moura

Psicanalista, membro do Tempo Freudiano Associação Psicanalítica; fcostamoura@infolink.com.br

Há um infantil da psicose? Jean Bergès e Gabriel Balbo. Porto Alegre: CMC, 2003. 161p.

A questão da psicose é muitas vezes um fantasma que ronda a clínica psicanalítica com crianças. Será que se pode conceber uma psicose infantil? Ou será que a rigor a psicose só eclode depois da infância? Que relações podemos afirmar existirem entre a psicose da criança — se é que ela existe — e do adulto?

O trabalho psicanalítico com crianças supõe uma intervenção que não apenas possa atestar um sujeito em sua singularidade mas atestá-lo na atualidade daquelas circunstâncias nas quais ele está em vias de se constituir. Trata-se, antes de mais nada, de uma aposta na possível realização do sujeito no campo da palavra. Efetivada entretanto num momento em que o estatuto simbólico da relação da criança com o Outro confunde-se e está submetido à relação que a criança estabelece com outros reais — que são seus pais ou responsáveis — e à incidência específica que este fato impõe ao sintoma, e de modo mais amplo, às patologias. Assim, se por um lado a clínica com crianças exige cautela para evitar a precipitação num positivismo comportamentalista — que deixaria escapar o próprio do caráter dos sintomas mais freqüentes na criança, considerando-os como sinal de uma estrutura, ao passo que eles talvez não sejam, senão, uma experimentação da sintomatologia possível para o adulto — por outro lado, o recuo que reside na dificuldade de usar a palavra psicose neste contexto expõe o problema complexo da psicose infantil (e do infantil da psicose) ao risco de permanecer praticamente intocado.

Em torno desta discussão, Jean Bergès e Gabriel Balbo, psicanalistas da Association Lacanienne Internationale e da École de Psychanalyse de L'enfant de Paris, conduzem seu seminário de 1998-99 sobre a etiologia do autismo e da psicose que serviu . de base para a elaboração do livro Psicose, autismo e falha cognitiva na criança, editado na França em 2001. Publicado entre nós pela CMC Editora com numerosas notas de apoio, o texto parte do exame da querela que opôs franceses e alemães desde os anos 1930 em torno do tema da existência ou não da psicose na criança — uma vez que a loucura na criança confunde-se facilmente com "problemas de caráter", "idiotia" ou "retardamento". Os autores demonstram que tal debate deu lugar, seja à caracterização, importada do campo psiquiátrico, de uma "pré-psicose" tomada como entidade clínica composta de um conjunto de fenômenos ("transtornos instrumentais" — motores ou de inteligência — ou do "estado afetivo" — "transtornos de caráter", "de humor", etc.), seja a descrições fornecidas pelos psicólogos em termos de harmonia/desarmonia do desenvolvimento.

A partir deste exame, portanto, e concluindo que a questão a respeito da psicose na infância já representa por si mesma uma tomada de posição — ideológica, dizem —, Bergès e Balbo propõem sua reversão para a questão que dá titulo ao trabalho: há um infantil da psicose?

A cada encontro o seminário trata de manter a questão proposta em aberto. Uma questão que conserva por um lado a referência a uma psicose que eclodiria somente após a infância e por outro alude a algo que antecederia os transtornos psicóticos no adulto, aí incluída a questão sobre a psicose como um processo transgeracional.

Visto sob este prisma, o problema sobre o infantil da psicose introduz uma fórmula singular do discurso na qual a infância não é simplesmente "o passado definido pelo que era uma vez que não é mais" e nem "o pretérito perfeito daquilo que foi, dentro do que eu sou". É antes o terei sido (p.29), que evoca a infância como "futuro anterior" implicado neste só-depois que é o sujeito.

Por articular o impasse da psicose a um tempo simbólico — o futuro anterior, o terá sido de que nos fala Lacan — o enunciado da pergunta "há um infantil da psicose?", forma singular de colocar o problema, realiza por si só um giro surpreendente que desarticula o discurso corrente sobre a psicose e a criança, possibilitando conferir aos nossos mitos sobre o assunto uma estrutura nova. Trata-se de uma operação discursiva que nos conduz a tomar toda historicidade (aí incluído o infantil da psicose) como matéria para a recolocação da questão e investigação, a cada vez, de qual é o futuro anterior em jogo.

O que importa, portanto, com a colocação da questão nestes termos, não é encontrar e estabelecer vestígios arcaicos, do ponto de vista desenvolvimentista, e sim buscar na infância e mais precisamente na primeira infância, como foi a direção de Lacan com Aimée na tese de medicina, o que pôde determinar a eclosão do que foi em tempo a sua paranóia. Ou ainda, como o mesmo Lacan indicaria mais tarde no seminário Les non-dupes errent, o que há que se produzir na infância para possibilitar a nodulação eficaz dos três registros da experiência (real, imaginário e simbólico).

Assim, através da retomada implicada no enunciado desta "pergunta-mestra" os autores conseguem ampliar e aprofundar a abordagem de pontos fundamentais desenvolvidos no seminário anterior, sobre A atualidade das teorias sexuais infantis (também publicado pela CMC), mantendo sempre a contundente vivacidade das perguntas espinhosas que atravessam a clínica. Com este objetivo, diversos e importantes temas são debatidos e solicitados a trabalhar uns aos outros — a noção de transitivismo, a discussão sobre a demanda e o desejo e a produção de um lugar terceiro entre a criança e a mãe, a distinção pai/genitor (que serve também de mote para uma interrogação do social mais amplo e das incidências subjetivas da marcha da ciência), a distinção autismo/psicose cuidadosamente elaborada através da noção de auto-engendramento, as lições sobre o Nome-do-pai, função paterna e sobre o corpo, primorosas, a leitura original do tema do narcisismo que aparece na clínica e no mito, as questões sobre o Outro como perseguidor, etc.

Porém, o mais importante, seja nos recortes dos casos clássicos da clínica (psiquiátrica e psicanalítica) como de crianças que os próprios autores têm em análise, seja no tom informal, na maneira coloquial — preservados tanto na transcrição quanto na tradução — com que os autores interpelam-se e discutem entre si é o que este seminário pode efetivar de mudança na nossa posição a respeito do problema. Uma mudança que nada tem a ver com o encerramento da questão pela afirmação de um tipo ideal (a "psicose infantil") que seria finalmente apreendida, mas sim com uma modificação da própria estrutura de nosso discurso. Mudança topológica, que só aparece depois da forçação operada pela formulação da questão nos termos que possibilitam o aparecimento deste corte — o qual tomando no mesmo eixo o ainda não [há psicose] e o já aí [desde sempre], ligados por um terá sido, pode eventualmente nos afetar até o ponto do reencontro com o já aí do sujeito como futuro anterior.

Recebido em 22/9/2003.

Aprovado em 7/10/2003.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Dez 2005
  • Data do Fascículo
    Dez 2003
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