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O sagrado na modernidade, na esquerda e na prática lacaniana

RESENHAS

O sagrado na modernidade, na esquerda e na prática lacaniana

Tania Coelho dos Santos

Professora do Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica; pós-doutorada no Département de Psychanalyse Paris VIII; membro Escola Brasileira de Psicanálise e da Associação Mundial de Psicanálise; membro da Associação Universitária em Psicopatologia Fundamental. taniacs@openlink.com.br

Le Neveu de Lacan. Jacques-Alain Miller. Paris: Verdier, 2003, 376p.

Este livro ordena algumas teses sobre o sagrado na modernidade, suas relações com a religião e com as revisões e autocríticas da esquerda. Sua ambição é precisar o lugar do sagrado na prática lacaniana.

O livro contém um outro livro: Notice sur la vie et les travaux de Lindenberg Daniel: fameux pamphlétaire français – por Clément Delassol-Lunaquet. Parece-me que Clément é um pseudônimo que faz referência ao papa Clemente IV, responsável pelo expurgo dos jesuítas. Lunaquet, talvez seja um anagrama de canuler. O canular é um exercício espiritual, um exercício de Witz,em que é de bom tom mostrar uma cultura mirabolante para fins de repouso (délassement como sugere o termo Delassol) e diversão. É a diversão do sábio e do erudito. Isso se pratica, desde a alta antiguidade, sob outros nomes (sotie – farsa satírica e alegórica, desempenhada por atores em trajes de palhaço – ou facétie, diversão burlesca, deboche). Esse canular foi escrito durante um momento de profunda indignação com um livreto chamado Rappel à l'ordre [Coleção: La République des idées], de um certo Daniel Lindenberg, que, conforme o estilo caro às esquerdas radicais, denuncia os novos reacionários. Entre eles, o referido autor elenca o sobrinho de Lacan, JAM, antigo colega dos tempos de militância estudantil. A condição de ex-aluno da segunda turma de normalistas de Althusser, cuja participação nos acontecimentos de maio de 1968, reduziu-se à publicação dos famosos Cahiers pour l'analyse, já justificaria a inclusão de JAM nesse rol. É verdade, que esses mesmos normalistas criaram a UJI (União das juventudes comunistas, maxistas, leninistas).

Em resposta a essas denúncias, apresenta, na linguagem do canular, uma espécie de sociedade secreta integrada por conhecidos filósofos e cientistas políticos franceses da melhor estirpe, que se reúnem na assim chamada Academia de Ciências Imorais e Políticas. A existência dessa Academia imaginária, com seu brunch des non dupes todo dia 7 de janeiro, se deve a todos os antigos freqüentadores do Seminário de Kojève na École des Hautes Études.

Em que se inspirou a criação dessa Academia imaginária?

O grupo de ideólogos de 1795 (herdeiros das Luzes: Cabanis, Destutt de Tracy, Garat, Volney) está na origem da Academia de Ciências Morais e Políticas. São autores de uma literatura sentimental destinada às classes populares para convencê-las da boa vontade das elites. Pregavam a união inevitável da felicidade com a moralidade, a recompensa dos justos. Contra essas ilusões pacifistas, contra a crença no desarmamento moral, foi criada a Academia imaginária de Kojève, por meio de decreto assinado por Henri Queille. A este grande iniciado deve-se o princípio maior que orienta esse grupo: "não há problema que uma falta de solução não possa resolver".

Jacques-Marie-Émile Lacan também fez, discretamente como convém, parte desta Companhia. Os efeitos do ensino de Kojève explicam a tese lacaniana de que "o inconsciente é a política", cujo sentido, na seqüência dos eventos de maio de 1968, produziu a conclusão que de segue: "A revolução mostrou reduzir-se àquilo que ela foi para Bonaparte e Chateaubriand, o retorno do mestre, daquele que tem a arte de tornar as revoluções úteis."

A tese de JAM é a seguinte: Kojève era um sábio stalinista. No lugar da denúncia, apostou no equilíbrio das potências. Essa sabedoria é inimiga da idéia de progresso que inspira o denuncismo, próprio dos católicos marxistas, inspirada na posição ativista dos jesuítas. Durante todo o século XIX, os jesuítas combateram a modernidade, a liberdade de pensamento, os direitos do homem, a democracia. Da França, eles foram banidos quatro vezes, mas terminaram compreendendo a lição: a força da modernidade é irresistível, razão pela qual, dado seu espírito decidido, saltaram para o lado dela... ad majorem Dei gloriam. Dispersados pelo mundo, são os maiores combatentes pelos direitos do homem, pela democracia, pela sociedade miscigenada, pelo pensamento híbrido, lutando com fervor ao lado do povo contra os governantes que os oprimem.

Essa Academia imaginária é um recurso literário para criticar a ingenuidade presunçosa, inseparável do ardor religioso, que inspira as constantes revisões e autocríticas praticadas pela esquerda. Esforço de depuração do significante do que ele possa ter de crença. Tentação iluminista, que aspira uma liberdade em gozar livre do infundado do significante-mestre. O seguinte aforismo de Balzac condensa uma crítica da ilusão do progresso própria à hipocrisia jesuíta: "O jesuíta, o mais jesuíta dos jesuítas é mil vezes menos jesuíta que a mulher menos jesuíta; julgai como as mulheres são jesuítas!"

A modernidade conspira contra a poesia, contra a personalidade excepcional do escritor, contra a imoralidade do significante, isto é, contra o infundado do seu poder oracular. É a lei da segurança contra a aventura. Os psicanalistas lacanianos apostam nos efeitos criadores da repetição. A psicanálise se estabeleceu sob o fundamento da enunciação carismática de Freud. Ela conspira, faz barreira ao funcionamento social, sintoma como real. Ao contrário, "A democracia não transmite nada, nenhuma tradição, nenhuma transcendência, nenhum enraizamento." Falar da democracia como lugar vazio é uma ficção reguladora que tenta ordenar essa história. É designar o sujeito da democracia moderna como sujeito barrado, vazio, sem qualidade, pura variável lógica. Isto supõe um arrancamento aos dados de fato, às determinações e às particularidades. Cada um é um. Cada homem, uma voz.

O democratismo prolonga o cristianismo. Dizer que o sujeito é barrado, é deixar de lado o objeto a, a particularidade do gozo. A democracia é um deserto de gozo. Quanto mais o significante é desafetado, mais ele avança sob a forma pura do direito, da democracia igualitária, da mundialização do mercado, em que cada um conta como um. Aumentam a paixão, a raiva, os integrismos, a destruição, os massacres e as catástrofes inéditas.

A memória, com efeito, não é mais o que ela era, pois não tem mais autoridade, não confere mais legitimidade e concorre muito pouco para a formação das identidades. O passado foi esvaziado da mais-valia, a palavra mestra é o futuro. Os Ideais cessaram de ser causa de desejo. O eleitor de esquerda virou um consumidor. O homem excepcional, o homem de esquerda já não é mais uma reserva do sagrado na modernidade.

As novas identidades, Nippes, estruturam-se segundo a lógica do pas-tout. Os híbridos crescerão, anuncia, e se multiplicarão em: homossexuais autoritários, feministas católicas, judeus belicistas, muçulmanos voltairianos, racistas libertários... A esquerda precisará aprender a manejar com delicadeza os paradoxos da inconsistência lógica. JAM conclui que chegou a hora de dar uma sepultura decente ao homem de esquerda!

Considerado um livro erudito foi recebido como uma pequena jóia da língua francesa, pela crítica.

Recebido em 1/8/2004.

Aprovado em 20/8/2004.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Set 2005
  • Data do Fascículo
    Dez 2004
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