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SUSTENTAR O RIGOR CONCEITUAL E O VIGOR CLÍNICO DA PSICANÁLISE: DIÁLOGOS COM A LITERATURA E A FILOSOFIA

Este número da revista Ágora representa um momento importante de sustentação da psicanálise na universidade e na pólis, em tempos de ataque à vida, à ciência e à produção bibliográfica e editorial das revistas científicas brasileiras. Considerando o agravamento da pandemia no Brasil, que se intensificou em função do negacionismo em relação às recomendações sanitárias e adiamento da vacinação para contenção da disseminação do coronavírus - provocando um morticínio análogo a tempos de guerra - vale destacar a função das revistas científicas de tornar públicos os resultados da pesquisa no país e sua indissociável relação com os avanços científicos, socioculturais e políticos. Com pouquíssimos recursos, sobretudo nos últimos dois anos, que levaram algumas das mais relevantes revistas na área à cobrança financeira dos próprios autores para publicação de artigos, resistimos a tal alternativa mesmo com o risco de impossibilidade de continuidade, sem nos afastar dos princípios que nos regem há 25 anos. Priorizando uma universidade pública, diversa e antissegregacionista, trazemos aos leitores uma edição de pensamento plural, que realiza, em sua Parte I, uma travessia consistente dos fundamentos conceituais da psicanálise; na segunda, a extração de fragmentos da clínica, com sua atualidade para avançar sobre questões contemporâneas e, na terceira parte, uma interlocução da psicanálise com outros saberes, principalmente no diálogo com a literatura e com a filosofia

Os artigos da primeira parte extraem consequências teóricas atuais do ensino de Jacques Lacan. Em A verdade formal da ciência moderna e sua relação com a angústia, Bernardo Sollar Godoi e Sidnei Vilmar Noé discutem duas relações, destacadas pelo psicanalista francês em uma coletiva de imprensa de 1974, entre a ciência moderna, o real e a angústia; com referências à manipulação laboratorial de bactéria e seus impactos dos gadgets. Os autores têm por objetivo demonstrar teoricamente como os avanços científicos implicam em consequências subjetivas. Helena Amstalden Imanish discrimina, no artigo Metáfora e significação: a construção de sentidos em análise, dois tipos de intervenção no contexto psicanalítico - as “metafóricas comparativas” e as “metafóricas criativas” -, trazendo contribuições para a técnica, por meio de uma leitura lacaniana da linguística e da retórica. O conceito de personalidade, central na tese de doutorado de Lacan (1932/1987), não recebe, segundo Dario de Negreiros, a devida clareza necessária à sua importância e complexidade, que, por ser nuclear na obra, deve ser analisado por meio de uma subdivisão em três partes, que se manifestam de formas diferentes e que são desenvolvidas ao longo do último artigo da Parte I.

Através da apresentação de um caso clínico, Daniel Schor e Nelson Ernesto Coelho Júnior apontam a importância da maleabilidade do enquadre transferencial para tratar de impasses relativos a experiências não simbolizadas, conforme desenvolvimento de Winnicott (1945/1992)WINNICOTT, D. W. Primitive emotional development (1945). In: WINNICOTT, D. W. Through Paediatrics to Psychoanalysis - Collected Papers. London: Karnac Books, 1992., demonstrando a função da situação analisante como condição da transformação de sofrimentos narcísico-identitários decorrentes de falhas primárias na comunicação com o ambiente. As indagações clínicas de Daniel Pinho Senos de Jesus e Silvia Maria Abu-Jamra Zornig, em Desdobramentos psicopatológicos da identificação projetiva na parte bebê do self, também partem, como no trabalho anterior, de um fragmento clínico para discutir falhas relativas à comunicação primária, mas através de experiências precoces do psiquismo, fundamentais aos processos de simbolização, que acarretam respostas radicais, tais como a fragmentação e a despersonalização. Em A origem e o sintoma: dos tempos de Freud aos dias de hoje, Bruna Musacchio Guaraná, Luisa Freire de Moraes e Marcus André Vieira abordam o clássico caso freudiano “O Homem dos Ratos” (Freud, 1909/1980FREUD, S. Notas sobre um caso de neurose obsessiva (1909) . Rio de Janeiro: Imago, 1980. (Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 10)) com vistas a apontar o caráter ficcional da neurose e ressaltar que, por mais que haja uma intensificação dos excessos e da falta de referências na contemporaneidade, a angústia e o sintoma já estavam presentes desde os tempos de Freud, já que a função paterna é falha por estrutura, dado o caráter paradoxal da castração.

Partindo da discussão freudiana sobre “sentimento oceânico” (Freud,1929/2019FREUD, S. O mal-estar na cultura (1929). Porto Alegre: L&PM, 2019.), Tania Rivera busca analisar uma modalidade de laço social distinta da formação da massa, que se explicitaria privilegiadamente no campo da arte, na qual se desestabilizam as fronteiras entre indivíduos em prol de uma espécie de transmissão de desejo. A autora discute a possibilidade de uma estratégia discursiva que poderia se constituir em uma força política contra o fascismo da massa. Seguindo a mesma direção - a de articular psicanálise e arte para uma leitura política -, Marta Regina de Leão D’Agord considera a cultura judaica do leste europeu e a perplexidade com o desmoronamento de um império, como fornecedoras do material para o humor kafkiano e para a teoria freudiana do humor (Freud, 1927FREUD, S. O humor (1927). Imago: Rio de Janeiro, 1987. (Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 21)). Com Kafka (1999KAFKA, F. Um médico rural: pequenas narrativas. São Paulo: Companhia das Letras , 1999.;2002) e Joyce (2006JOYCE, J. Um retrato do artista quando jovem. Trad. Bernardina da Silveira Pinheiro. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006.), a literatura inventa formas literárias de leveza que interessam à investigação psicanalítica. Através de um diálogo entre psicanálise e literatura, o artigo traça paralelos entre a interpretação freudiana do humor e o conceito de sinthoma em Lacan (1975-76/2007LACAN, J. O sinthoma (1975-1976). Rio de Janeiro: J. Zahar, 2007. (O seminário, 23)).. Suely Aires e Andressa Mayara Silva Souza também se servem da literatura através da obra de Marguerite Duras (1964DURAS, M. O deslumbramento. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1964.), Le Ravissement de Lol V. Stein, a fim de abordar o conceito de Real. Por meio de três eixos - o tempo, o corpo e a ausência -, as autoras sustentam a assertiva de Lacan de que a prática da letra na produção literária da autora converge com o uso do inconsciente.

Em diálogo com a filosofia concluímos nosso último número de 2021, considerando a atualidade e a importância da psicanálise para as discussões sociais e políticas mais atuais. Através do trabalho A insustentável mestria do gênero: a divisão do sujeito entre Butler e a psicanálise lacaniana, Vinícius Moreira Lima, Heloísa Moura Bedê e Guilherme Massara Rocha propõem um debate entre os trabalhos iniciais de Judith Butler (1990BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade (1990). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.; 1993BUTLER, J. Bodies that matter: on the discursive limits of “sex”. New York & London: Routledge, 1993.) na década de 1990 e o recente livro de Clotilde Leguil (2016LEGUIL, C. O ser e o gênero: homem/mulher depois de Lacan. Belo Horizonte: EBP Editora, 2016.) sobre as incidências do gênero na constituição do sujeito. Os autores tencionam a questão de gênero a partir do Lacan dos anos 1950/60, situando-a entre desejo e demanda e avançam com a teoria dos discursos nos anos 1970, apontando uma impossibilidade de sustentar o que consideram uma mestria por meio da unificação subjetiva veiculada pelos ideais do gênero. O artigo de Julieta Bareiro, que arremata esta edição da Ágora, serve-se da noção de “preocupação pelo outro” e “intencionalidade ética” em Paul Ricoeur (1996RICOEUR, P. Self as another (1996). México: Siglo XXI, 2005.;2004RICOEUR, P. The paths of recognition (2004). México: Siglo XXI , 2008.), - em conversa com o desenvolvimento da subjetividade -, e em Winnicott e sua relação com o meio ambiente. Com esta interseção, a autora considera que processos subjetivos de amadurecimento, bem como o lugar do analista, encontram fundamentação na teoria de Ricoeur, não apenas em seu aspecto metapsicológico, mas sobretudo ético.

REFERÊNCIAS

  • BUTLER, J. Bodies that matter: on the discursive limits of “sex”. New York & London: Routledge, 1993.
  • BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade (1990). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.
  • DURAS, M. O deslumbramento. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1964.
  • FREUD, S. O mal-estar na cultura (1929). Porto Alegre: L&PM, 2019.
  • FREUD, S. Notas sobre um caso de neurose obsessiva (1909) . Rio de Janeiro: Imago, 1980. (Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 10)
  • FREUD, S. O humor (1927). Imago: Rio de Janeiro, 1987. (Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 21)
  • JOYCE, J. Um retrato do artista quando jovem. Trad. Bernardina da Silveira Pinheiro. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006.
  • KAFKA, J. Narrativas do espólio (1914-1924). São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
  • KAFKA, F. Um médico rural: pequenas narrativas. São Paulo: Companhia das Letras , 1999.
  • LACAN, J. Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade (1932). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987.
  • LACAN, J. O sinthoma (1975-1976). Rio de Janeiro: J. Zahar, 2007. (O seminário, 23)
  • LEGUIL, C. O ser e o gênero: homem/mulher depois de Lacan. Belo Horizonte: EBP Editora, 2016.
  • RICOEUR, P. Self as another (1996). México: Siglo XXI, 2005.
  • RICOEUR, P. The paths of recognition (2004). México: Siglo XXI , 2008.
  • WINNICOTT, D. W. Primitive emotional development (1945). In: WINNICOTT, D. W. Through Paediatrics to Psychoanalysis - Collected Papers. London: Karnac Books, 1992.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jan 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2021
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