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Resistirmos, a que será que se destina? A psicanálise pode ou não voltar-se sobre si mesma, face ao enigma de outros campos?

We resist, what is the use of it? Can psychoanalysis turn back to itself in the face of the enigma of other fields?

Resumos

Toma-se o conceito de resistência - em suas diferentes modalidades na obra de Freud e em sua reconsideração, por Derrida - como um operador das condições de aproximação da psicanálise à experiência da arte. Três depoimentos de artistas e críticos permitem analisar alguns pontos em que a interpretação analítica se mostrou insuficiente para a recepção da arte, especialmente da arte contemporânea. Conclui-se, entretanto, com a retomada de importantes perspectivas conceituais da própria psicanálise, que levariam seu saber a uma convergência com o que o campo das artes afirma, através da voz de seus críticos e artistas, e das obras produzidas.

Arte contemporânea; resistência; saber do artista; criação de realidade


We resist, what end does it serve? Can psychoanalysis turn back to itself in face of the enigma of other fields? The article addresses the concept of resistance - in its different modalities found in Freud's work and in its reconsideration by Derrida - as an mediator for the approximation between psychoanalysis and the experience of art. Three testimonies by artists and critics expose some points where the analytical interpretation may be an insufficient receptor for the achievements of art, specially in its contemporaneous version. However, the author concludes with the renewal of important conceptual perspectives of psychoanalysis itself, that would take its knowledge to a convergence with the art's statement, according to artists and critics, and the resulting works.

Contemporaneous art; resistance; wisdom of artist; creation of reality


ARTIGOS

Resistirmos, a que será que se destina? a psicanálise pode ou não voltar-se sobre si mesma, face ao enigma de outros campos?

We resist, what is the use of it? can psychoanalysis turn back to itself in the face of the enigma of other fields?

Maria Clara Queiroz Corrêa

Psicanalista; doutora em teoria psicanalítica pelo Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ; professora do mestrado em psicologia, no Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora (CES/JF); mc.correa@uol.com.br

RESUMO

Toma-se o conceito de resistência — em suas diferentes modalidades na obra de Freud e em sua reconsideração, por Derrida — como um operador das condições de aproximação da psicanálise à experiência da arte. Três depoimentos de artistas e críticos permitem analisar alguns pontos em que a interpretação analítica se mostrou insuficiente para a recepção da arte, especialmente da arte contemporânea. Conclui-se, entretanto, com a retomada de importantes perspectivas conceituais da própria psicanálise, que levariam seu saber a uma convergência com o que o campo das artes afirma, através da voz de seus críticos e artistas, e das obras produzidas.

Palavras-chave: Arte contemporânea, resistência, saber do artista, criação de realidade.

ABSTRACT

We resist, what end does it serve? Can psychoanalysis turn back to itself in face of the enigma of other fields? The article addresses the concept of resistance — in its different modalities found in Freud's work and in its reconsideration by Derrida — as an mediator for the approximation between psychoanalysis and the experience of art. Three testimonies by artists and critics expose some points where the analytical interpretation may be an insufficient receptor for the achievements of art, specially in its contemporaneous version. However, the author concludes with the renewal of important conceptual perspectives of psychoanalysis itself, that would take its knowledge to a convergence with the art's statement, according to artists and critics, and the resulting works.

Keywords: Contemporaneous art, resistance, wisdom of artist, creation of reality.

Existirmos, a que será que se destina?

CAETANO VELOSO, Cajuína

Nosso propósito é observar a confluência das linhas da psicanálise com as linhas da experiência da arte. Tentamos, através do estudo de três encontros entre os campos, observar a repercussão da intervenção psicanalítica, suspendendo qualquer juízo que possa marcar a precedência ou a superioridade de um campo face a outro. E por considerar tal isenção imprescindível, tomaremos o conceito de resistência como nosso operador fundamental e, ao mesmo tempo, como aquele cujo alcance desejamos examinar mais de perto. O artigo se inicia, então, por uma breve apreciação deste conceito em Freud, passando ao estudo dos casos e concluindo com a discussão do que consideramos os pontos sensíveis da questão psicanálise/arte.

Freud amplia a investigação da resistência em psicanálise freqüentemente tematizando a resistência à psicanálise. No artigo "Uma dificuldade no caminho da psicanálise", faz notar que não é um impedimento intelectual mas sim afetivo o que dificulta a aceitação de suas descobertas — "alguma coisa que aliena os sentimentos daqueles que entram em contato com a psicanálise, de tal forma que os deixa menos inclinados a acreditar nela ou a interessar-se por ela"(FREUD, 1917/1969, p.171) As duas dificuldades de fato se encontram, pois a intensidade dos sentimentos acaba por impedir a compreensão intelectual.

No artigo "As resistências à psicanálise", Freud considera um outro fundamento para a questão: a resistência vem da exigência feita à mente por algo novo; provém, portanto, do dispêndio psíquico. Aqui se ligam as vicissitudes da análise às da psicanálise no mundo e as fortes reações afetivas que acompanham os argumentos de repúdio confirmam o desprazer de um intenso trabalho mental: "A sugestão de que a arte, a religião e a ordem social em parte se originavam de uma contribuição das pulsões sexuais foi representada pelos oponentes da análise como uma degradação dos mais elevados valores culturais" (FREUD, 1925/1969 p.271).

Freud sublinha ainda a possibilidade de as dificuldades externas fortalecerem a resistência à psicanálise — "Não é fácil obter um juízo independente sobre questões envolvidas com a análise sem a termos experimentado ou praticado em outrem"(FREUD, 1925/1969, p.274). O que Freud surpreendentemente considera, aqui, uma "dificuldade externa" constitui a indispensável experiência do inconsciente na transferência, por ele mesmo postulada.

Uma das mais promissoras observações sobre o tema da resistência é feita no artigo "Psicologia de grupo e análise do eu": a elaboração parte de uma experiência pessoal, que declara com veemência o afeto que a coloriu. Neste texto, afirma-se a legitimidade da resistência — ela é um direito de afirmação da mais íntima verdade:

"Estaremos assim preparados para a assertiva de que a sugestão (ou, mais corretamente, a sugestionabilidade) é na realidade um fenômeno irredutível e primitivo, um fato fundamental na vida mental do homem. Essa também era a opinião de Bernheim, de cuja espantosa arte fui testemunha em 1889. Posso, porém, lembrar-me de que mesmo então sentia uma hostilidade surda contra essa tirania da sugestão. Quando um paciente que não se mostrava dócil, enfrentava o grito: "Mas o que está fazendo? Vous vous contre-suggestionnez!", eu dizia a mim mesmo que isso era uma injustiça evidente e um ato de violência, porque o homem certamente tinha direito a contra-sugestões, se estavam tentando dominá-lo com sugestões. Mais tarde, minha resistência tomou o sentido de protestar contra a opinião de que a própria sugestão, que explicava tudo, era isenta de explicação."(FREUD, 1921/1969, p.114, grifos nossos)

Há uma promessa nas palavras acima transcritas — a relativização de uma concepção que se desenhava sempre na mesma direção: quem resiste é aquele que se opõe ao saber de um campo; a um campo em que um saber teórico e instrumental está configurado. Entretanto, podemos esperar mais ainda do conceito.

Recentemente, em julho de 2000, a questão da resistência encontra um lugar central na conferência pronunciada por Jacques Derrida, por ocasião dos Estados Gerais da Psicanálise. Ali, ela é trabalhada em conexão a duas outras palavras enigmáticas — a crueldade e a soberania. Aparentemente conhecidas, as três pedem trabalho.

A resistência é apresentada pelo filósofo sob uma perspectiva que não poderíamos chamar de inédita. Entretanto, a questão ressurge renovada porque, a par de empurrar o conceito até seu limite, Derrida deriva daí um programa que propõe à reflexão dos analistas que o ouvem.

A perspectiva sobre a qual se debruça é a do não-reconhecimento da psicanálise pela psicanálise, nomeada "auto-imunidade da psicanálise à psicanálise" — a severa reação que ela produz a alguns de seus pressupostos de sustentação, como se estes a ela fossem estranhos. A psicanálise dispara mecanismos de defesa que a atingem em seu próprio cerne, que a fazem encalhar, que a inibem e a colocam muito aquém de sua potência de constatação, de performance, desvalida frente ao desafio de uma afirmação primordial — a do im-possível positivo. "Há um mal, em todo caso uma função auto-imunitária na psicanálise como em tudo o mais, uma rejeição de si, uma resistência a si, ao seu próprio princípio de proteção"(DERRIDA, 2001, p.18, grifo nosso). Eis, sinteticamente, a argumentação deste filósofo bem ouvido pelo campo, autorizado a se dirigir aos analistas no encontro em questão (DERRIDA, 2001, p.44).1 1 Eis a pergunta singela do filósofo: "por que fui eu autorizado? Por que e por quem, afinal?" Por seu amor à psicanálise, é claro, manifesto no trabalho exaustivo de uma constante 'desconstrução'. Severidade daquele que ama.

A auto-imunidade da psicanálise é visível face ao mundo, na face com o mundo — " [resistência] da psicanálise a ela mesma bem como ao mundo, da psicanálise à psicanálise como ser-no-mundo"(DERRIDA, 2001, p.55). O retorno que a frase perfaz gera mais uma ultrapassagem: elaborar hoje o conceito de resistência obriga a uma pergunta sobre as fronteiras psicanálise/mundo. É possível continuar a traçar fronteiras? O pensamento contemporâneo suporta ainda uma concepção dentro/fora para o que quer que se conceba?

"Mesmo em sua multiplicidade enigmática (eu contei 5 + ou -1 conceitos ou lugares de "resistência", segundo Freud), será que esse conceito de resistência não implica ainda linhas de fronteira, de traçados de front ou de teatros de guerra cujo modelo é justamente o que caduca hoje em dia?"(DERRIDA, 2001, p.21)

Eis então a superação que esperamos — a suspensão de uma clivagem entre externo e interno, que aliás pode se enraizar muito bem no campo da psicanálise desde que Lacan iniciou a exploração das figuras moebianas, a partir de seu Seminário 9.

O conceito de resistência espera por uma revolução, afirma Derrida. Uma revolução, hoje, da própria razão psicanalítica que o filósofo ordena em três instâncias — a constatativa, a performativa e o im-possível mesmo. "O que vou nomear, rapidamente, é o que eclode o horizonte de uma tarefa, isto é, excede a antecipação do que deve vir como possível. ...O que vou declinar desafia a economia do possível e do poder, do 'eu posso'" (DERRIDA, 2001, p.82).

"Essa afirmação originária do além do para além se dá a partir de inúmeras figuras do incondicional impossível. Estudei algumas alhures: a hospitalidade, o dom, o perdão — e, de início, a imprevisibilidade, o "pode ser", o "e se" do evento, a vinda e a vinda do outro em geral, sua chegança. Sua possibilidade se anuncia sempre como a experiência de um im-possível não negativo."(DERRIDA, 2001, p.85, grifo nosso)

Para o estudo que aqui empreendemos — os modos de aproximação à arte ou de sua recepção pela psicanálise — a primeira das instâncias propostas por Derrida nos toca muito especialmente. Ele a chama "constatativo". Reconhecimento do que é, do que se constitui, inapelavelmente. Dever de sua consideração.

"Acredito reconhecer, aqui, para essa revolução da razão psicanalítica, a ordem heterogênea de três instâncias — não ouso dizer três ordens ou três estados. (...) Três instâncias, portanto, ou três estados.

1. Na ordem do constatativo, isto é, do saber teórico e descritivo, a psicanálise poderia no futuro levar seriamente em consideração, para ter nisso uma conta rigorosa, como Freud prescrevia, ele próprio, a totalidade do saber, em particular saberes científicos que se mantêm à borda do psíquico supostamente puro (o orgânico, o biológico, o genético com seus poderes teóricos e terapêuticos — porque, não nos esqueçamos, nosso tema terá sido o sofrimento, o tormento, a tortura), mas também as mutações tecnocientíficas que lhes são inseparáveis, mas também o que na ordem da prescrição performativa dá lugar a um saber (por exemplo, a história do direito, da moral, da política; como história do que acontece, por exemplo nestes tempos)."(DERRIDA, 2001, p.86/87, grifo nosso)

Levar em consideração, para ter nisso uma conta rigorosa, a totalidade do saber, em especial de saberes que encostam na psicanálise. E o que encosta na psicanálise é, antes de mais nada, aquilo a que ela tradicionalmente julgou necessário se aplicar ("psicanálise aplicada"); e mais, de modo tambémmente importante, os campos que originariamente seu fundador considerou como imprescindíveis à formação de um analista. Podemos concluir que as duas alternativas acima pedem uma inscrição moebiana.

Nunca é demais lembrar o que Freud sonhou para uma então impensável "faculdade de psicanálise". O programa de formação, por ele postulado em 1926, em seu artigo "A questão da análise leiga", deixa patente a abertura de linhas de investigação que o exercício da psicanálise exige:

"Se — o que parece fantástico hoje em dia — alguém tivesse de fundar uma faculdade de psicanálise, nesta teria de ser ensinado muito do que já é lecionado pela escola de medicina: juntamente com a psicologia profunda, que continua sempre como a principal disciplina, haveria uma introdução à biologia, o máximo possível de ciência da vida sexual e familiarização com a sintomatologia da psiquiatria. Por outro lado, a instrução psicanalítica abrangeria ramos de conhecimento distantes da medicina e que o médico não encontra em sua clínica: a história da civilização, a mitologia, a psicologia da religião e a ciência da literatura. A menos que esteja bem familiarizado nessas matérias, um analista nada pode fazer de uma grande parte de seu material."(FREUD, 1926/1969, p.278)

A atualização que o texto mereceria não atinge seu cerne, constituindo um mero detalhamento dos campos de interesse — do que hoje é presente e que para Freud era ainda futuro imprevisível. E que o nosso filósofo resolve com o uso da expressão "totalidade do saber".

Assim recordados dos poderes do conceito de resistência, entremos na questão que nos toca e que escolhemos apresentar primeiro ao modo de um relato de casos. Recordaremos um silêncio e daremos lugar a duas falas. Aquele que se cala e aqueles que enunciam, numa espécie de reclamação, estão ligados ao campo da arte. Passaram, portanto, por uma imprescindível experiência — como aquela que Freud exigia, conforme citamos, para a aceitação da psicanálise. Quanto à psicanálise, eles ou querem se manter à distância, ou rejeitam sua metodologia de aproximação ou recusam o que ela afirma quanto a seu campo de trabalho. Se nos trechos que escolhemos aparecem dizendo "não é isso", podemos daí concluir, sem qualquer hesitação, que denegam a causação inconsciente de seus trabalhos? Podemos supor em suas enunciações uma postura de resistência à psicanálise? Ainda é possível repetir isto?

1º CASO: JENSEN E A GRADIVA

A conhecida análise que Freud fez da Gradiva (1907), de Wilhelm Jensen, nos leva, em seu curso, de uma tendência a outra do trato da arte pela psicanálise. De início, Freud presta a Jensen todas as homenagens pela descoberta do campo em comum. Não é pouco o saber que Freud atribui a Jensen: uma feliz intuição da matriz lógica dos sonhos, das alucinações e dos delírios, da direção do tratamento pela via amorosa, além de uma hábil descrição das negações da sexualidade e de sua ligação com as experiências da infância. A narrativa é interpretada conforme o saber da psicanálise até então constituído e o autor é homenageado como alguém que trabalha em convergência com o analista.

Na biografia de Freud Uma vida para o nosso tempo, Peter Gay resume o que consideramos a primeira maneira de a psicanálise abordar a obra de arte — reconhecer o autor como alguém que partilha ou antecipa o que a psicanálise descobre. Gay recorda a recusa de diálogo de Jensen, polida e incontornável, e conclui:

"Freud solucionou o enigma que colocara a si próprio, concluindo que 'nós' — o escritor e o analista — 'provavelmente bebemos na mesma fonte, trabalhamos no mesmo objeto, cada qual com um método diferente'. O analista observa o inconsciente de seus pacientes, ao passo que o escritor observa seu próprio inconsciente e molda suas descobertas numa manifestação expressiva. Assim, o romancista e o poeta são psicanalistas amadores, na melhor das hipóteses tão penetrantes quanto qualquer profissional. O elogio de Freud dificilmente poderia ter sido mais sincero, mas era o elogio do artista enquanto analista." (GAY, 1989, p.296, grifo nosso)

Das observações de Peter Gay e da leitura do texto freudiano, podemos perceber que um dos personagens desta história — não a da Gradiva, mas a que envolve as pessoas reais — supõe não precisar dizer mais nada. Há uma reserva — Wilhelm Jensen se mantém silencioso. Nas palavras de Freud, o autor se recusa a colaborar. Qual a colaboração esperada?

No pós-escrito de 1912, Freud diz o que esperava do autor da Gradiva:

"Nos cinco anos que decorreram desde o término deste estudo, a investigação psicanalítica encorajou-se a examinar as criações dos escritores criativos tendo em vista outro propósito. Não mais procura nelas somente uma confirmação das descobertas feitas em seres humanos neuróticos e banais; também quer conhecer o material das lembranças e impressões no qual o autor baseou a obra, e os métodos e processos pelos quais converteu este material em obra de arte." (FREUD, 1907/1969, p.97)

Como entender estas palavras? Uma das possibilidades de interpretação seria ligá-las à vontade de Freud em alcançar o que considerava fora do escopo da psicanálise: o esclarecimento do dom de criar. Logo na abertura do texto de 1907 ele afirmara que, se a investigação nada ensinasse sobre a natureza dos sonhos, poderia talvez permitir algum insight sobre a natureza da criação literária.

A continuação do pós-escrito conduz preferencialmente a uma outra leitura: o estudo das repetições imagéticas e temáticas do autor permite intuir questões que dizem respeito a sua própria subjetividade. Eis recortada a segunda tendência de aproximação da psicanálise à obra de arte por ocasião da segunda edição do artigo "Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen". Divide-se Freud entre um desejo de saber sobre a criação e um outro de conhecer pela obra o psiquismo do criador? A contínua aplicação de Freud ao tema da arte produziu outros trabalhos que mais confirmam a segunda perspectiva.

Em sua História do movimento psicanalítico Freud inclui as reações dos campos cobertos pela psicanálise aplicada como uma das formas de resistência à psicanálise:

"Ainda numa fase inicial descobriu-se que os sonhos inventados por escritores muitas vezes prestam-se à análise da mesma forma que os sonhos verdadeiros (Cf. Gradiva [1907a].) A concepção da atividade mental inconsciente possibilitou fazer-se uma idéia preliminar da natureza da atividade criadora na literatura de imaginação, e a compreensão, adquirida no estudo dos neuróticos, do papel desempenhado pelos impulsos instintivos nos permitiu descobrir as fontes da produção artística e nos colocou face a dois problemas: como o artista reage a essa instigação e quais os meios que ele emprega para disfarçar suas reações. A maioria dos analistas que têm interesses gerais já contribuíram com algo para a solução desses problemas, que são os mais fascinantes das aplicações possíveis da psicanálise. Naturalmente, aqui também não faltou a hostilidade da parte de pessoas que nada sabiam de psicanálise, apresentando as mesmas manifestações que ocorreram no campo original da pesquisa psicanalítica — as mesmas concepções errôneas e rejeições veementes. Era de se esperar desde o início que, quaisquer que fossem as regiões em que a psicanálise penetrasse, ela teria inevitavelmente que enfrentar as mesmas lutas com os donos dos campos." (FREUD, 1914/1969, p.48, grifos nossos)

Do texto ao pós-escrito, uma mudança, fundando as duas possibilidades por que a psicanálise se avizinha das obras de arte. No corpo do texto, a tese da convergência do saber do poeta e do psicanalista e da antecipação do primeiro face ao segundo — na Gradiva se reconhecem os conceitos por que a teoria psicanalítica norteia a eficácia de sua prática. No pós-escrito, a modificação do método de aproximação: é o artista que se revela sintomaticamente no conjunto de suas obras, dentre as quais a Gradiva se inscreve.

O que a obra possa trazer de singular, fora das categorias de interpretação da psicanálise, não chega a constituir um enigma que afete ao analista. Talvez porque desde muito cedo Freud tenha afirmado e reafirmado a intervalos regulares que o talento do escritor é inanalisável. E isto depois mesmo de ter passado, em 1905, pela exaustiva e brilhante experiência de convocação de seu saber de linguagem para a decifração dos chistes, em que abundamente tratou de singularidades.

2º CASO. MARGUERITE DURAS E LE RAVISSEMENT DE LOL V. STEIN

"L'homme de T. Beach n'a plus qu'une tâche à accomplir, toujours la même dans l'univers de Lol: Michael Richardson, chaque après-midi, commence à dévêtir une autre femme que Lol et lorsque d'autres seins apparaissent, blancs, sous le fourreau noir, il en reste là; ébloui, un Dieu lassé par cette mise à nu, sa tâche unique, et Lol attend vainement qu'il la reprenne, de son corps infirme de l'autre elle crie, elle attend en vain, elle crie en vain. (Puis un jour ce corps infirme remue dans le ventre de Dieu." Marguerite Duras)

O alumbramento de uma mulher é o que move esta obra esgarçada e perfeita — Le ravissement de Lol V. Stein. Uma história em que toda onisciência do narrador se esvai — quem toma a palavra, Jacques Hold, depende de um outro para poder levar à frente o relato — de sua amante, Tatiana Karl. Ela entretanto só pode conjeturar, supor, deixando se perder o sentido que fecharia o episódio testemunhado na juventude — Lol, deixada por seu noivo, na noite do grande baile.

Quando foi que Jacques Hold começou a ouvir Tatiana falar de Lol? De onde lhe vem o desejo por Lol V. Stein? Como foi que se viu, tal como um deus cansado, na tarefa única de repetir o gesto de despir sua mulher, de fazer aparecer seu corpo branco sob a cabeleira negra diante da janela, de frente para o campo de centeio onde Lol se deita e olha?

Requisição de um deus que não é o Deus (como o chamava Clarice Lispector), no ventre do Qual um dia Lol volta a se mexer. E a despertar para a revivência de seu alumbramento. Jacques Hold, o narrador, é, ao mesmo tempo, um homem tomado pela paixão de Tatiana Karl e pelo alumbramento de Lol. V. Stein. Capturado pela luz — deslumbrado — ele aceita reapresentar o que se passou antes da aurora, num outro tempo que não presenciou; e, ao final da obra, se votará ainda para a mesma tarefa de despir sua mulher, de revelar seu corpo branco sob o vestido negro, para Lol que adormece no campo de centeio, escurecido, voltado para a luz do quarto onde os amantes se amam a nu.

Fazer o elogio do artista como antecipador do psicanalista — eis um retorno que marca a psicanálise. Tal insistência passa agora por novos personagens: no lugar de Freud está Lacan, no de Jensen, Marguerite Duras. O que nos diz Lacan de Marguerite Duras em seu escrito "Hommage fait à Marguerite Duras, du Ravissement de Lol V. Stein"? O que diz Marguerite Duras da homenagem a ela prestada por Lacan?

Le ravissement é publicado em 1964, no mesmo ano em que Lacan pronunciava o Seminário XI — Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. A homenagem a Duras data de 1965. Voltado para a elaboração do conceito de objeto a, seu lugar na pulsão, na fantasia, na causa do desejo, Lacan faz o recenseamento das pulsões freudianas a elas acrescentando a pulsão invocante. Mas, dentre todas as pulsões, é a escópica que ocupa o melhor de seu tempo. Fascinado pelo olhar, a imagem e a mancha, Lacan interpreta a narrativa de Marguerite Duras segundo o que o toma nessa época.

É inegável que o livro é propício a isso: a luz, o alumbramento, o deslumbramento, o quadro iluminado da janela do hotel, a sala iluminada, a aurora no fim da noite em que Lol perde Michael Richardson, o noivo, para Anne-Marie Stretter, que acabara de fazer sua aparição.

Lacan parte de um jogo de palavras que só se sustenta em sua língua: dérober/robe. O verbo originário do antigo francês e o substantivo de origem alemã permitem, por sua coincidência sonora, explorar uma convergência de sentido entre 'roubar' e 'roupa'. O vestido (la robe), diz Lacan, suporta a fantasia a que Lol se prende. No tempo do roubo ela não pudera encontrar uma palavra que a fizesse mais próxima do tempo/espaço em que o noivo estaria retirando o vestido negro da outra mulher e desvelando seu corpo branco. Sem a palavra, guarda consigo a cena suposta. E se agarra a ela.

Mas não devemos nos enganar quanto ao lugar de Lol nesta fantasia, adverte Lacan. Ela não é o voyeur, mas o objeto-olhar, real-izado. O corpo branco das mulheres despidas, Anne Marie Stretter, Tatiana, é este objeto real, desvestido da cobertura que o amor põe sobre os corpos: "esta imagem, imagem de si com que o outro nos reveste e nos veste, e que nos deixa, quando a ela subtraídos, com o que, por baixo?(LACAN, 1965, p.193, tradução nossa). Lá, neste corpo desvestido, está Lol.

O vestido negro de Anne-Marie, a longa cabeleira negra de Tatiana , o corpo branco das duas mulheres — parcelas de um quadro, no tempo originário e no tempo do retorno. Na nudez sem nome a fantasia se rompe.

"'Nua, nua, sob seus cabelos negros' estas palavras da boca de Lol engendram a passagem da beleza e Tatiana à função de mancha intolerável que pertence a este objeto [o a da pulsão escópica]. Tal função é incompatível com a manutenção da imagem narcísica em que os amantes se esforçam por conter sua enamoração..."(LACAN, 1965, p.195)

Lacan critica as interpretações-clichê com que se abordam os textos: quanto a este, dizer que Lol repete o acontecimento impediria olhar mais de perto o nó que se refaz, no qual Lol V. Stein é tomada como objeto. Analogia entre a obra e um outro nó a três — o encontro de Lacan, Marguerite e Le ravissement. Cabe a Lacan afirmar aí, subjetivamente, como diz, seu ravissement (LACAN, 1965, p.192).

Durante a homenagem, Lacan avalia o que já indicamos como os dois métodos por que a psicanálise se aproxima da arte. Poderíamos dizer, recordando o trabalho de Freud na Gradiva, que ele rejeitaria a abordagem do pós-escrito para aderir à perspectiva do corpo do texto — a de que o artista antecipa o psicanalista. Mas, de fato, a complexidade paradoxal da aproximação de Lacan à arte só será revelada quase no fim de sua vida, no seminário Le sinthome (CORRÊA, 1998).2 2 Indicamos aqui nossa tese de doutoramento, na qual tratamos do desenvolvimento agônico deste seminário.

Desejando com sua homenagem firmar um método de abordagem da arte, Lacan adverte contra uma certa psicanálise que deslizaria do pedantismo à grosseria de atribuir a técnica de um autor a alguma neurose, querendo demonstrar que a técnica em questão explicitaria os mecanismos do inconsciente. Lacan faz referência à Gradiva, sem estabelecer qualquer conexão entre a proposta do pós-escrito e a metologia criticada — buscar o sintoma do artista na obra: "...a única vantagem que um analista tem o direito de tomar por sua posição, já reconhecida como tal, é de se lembrar com Freud que, em sua matéria, o artista o precede sempre e que ele não tem então que fazer-se de psicólogo aí onde o artista lhe abre o caminho"(LACAN, 1965, p.192).

Em seu comentário quanto ao texto de Lacan, anos depois, Marguerite Duras evocará estas palavras de homenagem: "É isto precisamente que reconheço no alumbramento de Lol V. Stein, onde Marguerite Duras demonstra saber sem mim o que ensino... Que a prática da letra converge com o uso do inconsciente, é o que testemunho, prestando-lhe homenagem"(LACAN, 1965, p.193, grifo nosso).

Mas não será esta a maior das homenagens, e sim a que aparecerá ao fim do texto, na recordação de Antígona, figura da ética da psicanálise. Para Lacan, no arcabouço do Ravissement pode-se tocar o fio do entre-duas-mortes:

"Pois o limite onde o olhar se transforma em beleza, já o descrevi, é o umbral do entre-duas-mortes, lugar que defini e que não é simplesmente o que crêem aqueles que dali estão longe: lugar da infelicidade. É em torno a este lugar que gravitam, parece-me pelo que conheço de vossa obra, Marguerite Duras, os personagens..." (LACAN, 1965, p.197)

O artigo se fecha poeticamente, resposta à altura do psicanalista enquanto artista: "Você celebra as núpcias taciturnas da vida vazia com o objeto indescritível"(LACAN, 1965, p.197).

Em sua História da psicanálise na França, Roudinesco nos conta como Lacan veio a saber da obra de Duras através da intervenção que Michele Montrelay havia feito em seu seminário, em junho de 1965. Abordando a questão feminina, ela comenta Le ravissement de Lol V. Stein. Tal relato não poderia deixar de interessar a Lacan.

"Sem ser a história de um caso clínico, como a Nadja de Breton, ele restitui, pelo lado do nada, do horror ou da 'página em branco', essa dimensão da loucura feminina que está em ação na história de Aimée. Entretanto, diversamente dos surrealistas, Marguerite Duras não vai beber em nenhuma fonte freudiana ou psiquiátrica. Desconhece radicalmente os discursos 'clínicos' sobre a loucura, e é por essa razão, talvez, que os psicanalistas dos anos sessenta ficam 'extasiados' com esse relato e com a estranha proximidade de um dizer que fala da loucura feita mulher sem a menor alusão a qualquer nosologia."(ROUDINESCO, 1988, v.2, p.563, grifo nosso)

Eis a convergência de Jensen e Duras, para além do tempo: a fonte da criação não foi o estudo da teoria.

Lido o livro, Lacan quer se encontrar com Duras. E o faz, falando sobre Lol, vibrantemente, procurando saber mais sobre o personagem. Não ganhará nada com isso. Marguerite Duras lhe responde que não sabe de onde lhe vem Lol. "Ele deveria ter previsto isso, ele que soubera observar magistralmente que as mulheres nada sabem dizer de seu gozo", afirma Roudinesco (idem, p.564).

Mas deveria também ter se lembrado do silêncio que Jensen devolve a Freud.

Quatro meses depois é publicada a "Homenagem a Marguerite Duras pelo 'Ravissement de Lol V. Stein'". Anos depois, Marguerite Duras volta a falar de seu livro, retomando o encontro com Lacan e a homenagem: "Lol V. Stein", diz ela em 1979, "é alguém que pede que se fale infinitamente por ela, já que é desprovida de voz. Foi dela que mais falei, e é a ela que menos conheço. Quando Lol V. Stein gritou, percebi que era eu quem gritava. Não posso mostrar Lol V. Stein senão escondida, como um cão morto na praia" (idem, p.562).

Embora ainda se recordasse vivamente do encontro com Lacan, à meia-noite, num café de Paris, 16 anos depois Duras responde duramente à homenagem:

"'Não me interessa', diz ela a Suzanne Lamy, quando Lacan diz: 'Ela sabe, essa mulher sabe... Não sei qual é sua frase... É uma palavra de homem, de mestre... É até mesmo uma palavra de homem de poder, é evidente. A referência é ele. 'O que eu ensino', ela, essa mulherzinha, sabe. É uma homenagem enorme, mas é uma homenagem que repercute nele. Ele poderia dizer: o que é ensinado em geral, ela o sabe de imediato, mas é o que eu ensino que importa'."(idem, p.564, grifo nosso)

Roudinesco chama a resposta de Duras de "feminista". Podemos entendê-la assim, como uma fala preferencialmente ideológica; ou permitir que ultrapasse este enquadre conjuntural e deixe entrever uma advertência quanto à especificidade da experiência da arte que a psicanálise não chegou a apreender.

ROSALIND KRAUSS E MARCEL DUCHAMP

No campo das artes plásticas o nome de Rosalind Krauss dispensa apresentações. Crítica e historiadora de arte, ela se tornou uma das mais influentes pensadoras da contemporaneidade artística. Em seu livro Caminhos da escultura contemporânea, Krauss dedica um capítulo ao estudos dos ready-mades, apresentando a revolução trazida pelas obras de Duchamp e de Brancusi. Aqui, trabalharemos exclusivamente com o que nos diz sobre Duchamp.

Em 1917, o artista envia para a exposição dos artistas independentes de Nova York um objeto industrial: um mictório, que nomeia Fontaine, girado em 90graus relativos à sua posição de uso prático, de modo que o lado que em geral estaria conectado à parede passa a ser agora a parte inferior ou a base da escultura. Em sua nova posição e assinado por R. Mutt/1917, a Fontaine é apresentada à exposição e mantida escondida até o seu final. Rosalind Krauss presume os motivos da recusa: primeiro, o fato, menos sério, de a obra violar os limites do bom gosto; e, segundo, sobretudo, a consideração de que a escultura não passava de um objeto comum.

A partir de 1911, aproximadamente, Duchamp vai se afastando do cubismo: em lugar da figuração temática do movimento, inicia em sua pintura uma afirmação caracteristicamente mecanicista. Em seus ready-mades passará da representação pictórica à automação posta em objeto.

Em 1912, seu primeiro ready-made, um porta-garrafas, é transplantado do mundo dos objetos ordinários para o domínio da arte pela simples aposição da assinatura do artista. "Um objeto sobre cuja feitura ele não tivera o menor controle. Por conseguinte, não poderia ser tomado como marca de um ato criativo, ou seja, o objeto não surgia como algo novo proveniente do manancial de idéias e emoções pessoais do artista" (KRAUSS, 2001, p.90). Eis-nos de volta à questão da automação do processo artístico. De que modo pode ser compreendida no que concerne à criação dos ready-mades?

Duchamp provocara uma ruptura entre o espaço da imagem visível e o espaço psicológico invisível de seu autor; abalara a crença de que uma imagem é uma expressão dos sentimentos e dos pensamentos do artista. Seu gesto afeta duplamente a produção da significação. Em primeiro lugar, a fonte convencional deste significado é abandonada:

"Pois o significado da maior parte dos objetos de arte está alojado em um emaranhado de idéias e sentimentos nutridos pelo criador do trabalho, passando à obra pelo ato de autoria e daí transmitido para um observador ou leitor. A obra tradicional, portanto, assemelha-se a uma vidraça transparente, através da qual os espaços psicológicos do observador e do criador se revelam mutuamente."(KRAUSS, 2001, p.93)

Em segundo lugar, suspensa a questão tradicional do significado, toda a curiosidade do autor e do observador vai se concentrar em questões estéticas das quais a obra é ao mesmo tempo o enunciado geral e o exemplo específico.

"Evidentemente, uma das respostas sugeridas pelos ready-mades é a de que um trabalho de arte pode não ser um objeto físico, mas sim uma questão, e que seria possível reconsiderar a criação artística, portanto, como assumindo uma forma perfeitamente legítima no ato especulativo de formular questões." (KRAUSS, 2001, p.91)

Deste modo, é o próprio ato da transformação que deve ser considerado pelo espectador, e não o trabalho do artista.. Os ready-mades frustam assim o empreendimento de análise; qualquer tentativa de decodificação formal é vedada ao espectador no plano do artista.

Voltemos ao trabalho rejeitado — a Fontaine. Com a inversão promovida no objeto industrial, apresentado portanto com uma outra forma visual, Krauss conjectura sobre o sentido que pode ser produzido a partir deste reposicionamento. Uma primeira possibilidade de recepção da obra consiste em recebê-la como "um trocadilho visual": a sugestão uterina do interior e as curvas do corpo feminino da superfície.

"Caberia, neste ponto, a objeção de que, ao sugerirmos essa relação entre o torso nu feminino e a forma do mictório invertido, estaríamos respondendo à questão formulada por Duchamp — a saber, o que 'faz' uma obra de arte — em favor da metáfora. Ou seja, estamos identificando o gesto de transformação do artista, neste caso de um objeto industrial em uma imagem humana, como aquilo que constitui o trabalho de criação." (KRAUSS, 2001, p.97)

Mas, adverte-nos ela, a Fontaine não permite que uma interpretação metafórica, uma antropomorfização esgote as interrogações deste observador especializado que é o historiador da arte, o crítico; e também do fruidor sensível:

"No caso da Fontaine, porém, o ato criativo do artista é tão obviamente mínimo e a transformação mesma tão absolutamente insignificante (ao deixar o mictório exatamente igual a todos os demais exemplares do gênero), que, em lugar da impressão de termos encontrado uma resposta, devemos nos confrontar com toda uma nova série de questões estéticas." (KRAUSS, 2001, p.97)

A distância entre a intenção do artista e a recepção da obra leva a perguntar por quem é forjada a metáfora da Fontaine. Krauss formula então um conjunto de questões que irão justamente fazê-la passar ao campo das relações entre a obra de arte e a psicanálise:

"... qual é a expectativa de significado que projetamos nas obras de arte? Por que as concebemos como declarações que devem transmitir ou materializar algum conteúdo? Além disso, se tal conteúdo é gerado por nós mesmos — por nossa necessidade de encontrar um significado —, será justificado acreditarmos num vínculo causal desse conteúdo com o criador do objeto." (KRAUSS, 2001, p.97, grifo nosso)

É possível que a recepção atribua à obra uma interpretação que aliene o plano da obra segundo seu autor. Também é possível que o autor produza uma clivagem entre o que afirma e o que realiza, como sublinha um outro crítico Georges Didi-Huberman.3 3 Estamos nos referindo ao livro O que vemos, o que nos olha. Nesta obra, Georges Didi-Huberman faz uma severa crítica da arte minimalista e de seus objetos, cuja característica de totalidade não analisável encontraria sua matriz nos ready-mades de Marcel Duchamp. O autor, em vários momentos da obra citada, encontra caminhos diferentes aos de Rosalind Krauss. Nosso pensamento, sobre a questão que nos ocupa neste artigo é o mesmo da crítica norte-americana. Não é este o caso de Duchamp, segundo Krauss.

O nome que designa o alter ego de Marcel Duchamp, Rrose Sélavy — 'eros c'est la vie' homofonicamente pronunciado — , é uma afirmação do significado erótico da vida. "E é esse significado que não apenas subjaz à pronúncia das frases dos discos, como também parece acompanhar a presença escultural de vários ready-mades" (KRAUSS, 2001, p.97). E é esta marca erótica, entre outras questões, que atrairá o interesse do campo da psicanálise para a obra de Marcel Duchamp. E Rosalind Krauss revela em seu texto o que pensa dos recursos de interpretação da psicanálise no caso de uma obra cujo projeto é a automação da criação de arte. Que agora podemos nomear de uma erótica da criação automática.

A base comum a muitos destes trabalhos é a hipótese de Freud na Psicopatologia da vida cotidiana — "o comportamento que parece inadvertido e, portanto, desprovido de significado é, pelo contrário, um indicador de intenções profundas do indivíduo que o manifesta"(KRAUSS, 2001, p.99).

"Tendo reunido as insistentes referências de Duchamp ao auto-erotismo, seu uso repetido da espiral como um emblema da volta sobre si-mesmo (nos roto-relevos e nos discos óticos do filme Anemic-Cinéma, por exemplo), ou sua fixação na androginia em suas aparições como Rrose Sélavy, os estudiosos montaram uma 'história' de Duchamp por meio da qual podem projetar um significado em um trabalho como a Fontaine. Com essa história, dotam o objeto exatamente do tipo de manancial narrativo que o próprio trabalho destrói com tamanha habilidade e brilho. Pois no caso da Fontaine, bem como no dos outros ready-mades, e tudo o mais que produziu, Duchamp pretendia claramente negar um sentido tradicional de narrativa." (KRAUSS, 2001, p.99, grifo nosso)

Eis a discordância da crítica, atenta ao projeto do autor, e supondo que seu projeto seja o que se alcança com sua obra — isto é, supondo que a concepção seja a realização, que entre as duas não se separe o plano da obra e a realização da obra, que não haja uma clivagem entre a questão do artista em precedência à obra e as questões que a obra propõe em sua fatura.

"Conforme disse, os estudiosos têm-se empenhado por recolocar parte do 'fundo' que o próprio artista havia eliminado. Buscam ressuprir seus trabalhos do substrato de uma estrutura psicológica que permita 'ler' esses objetos. Fazê-lo, evidentemente, é violar a importância estratégica da obra de Duchamp; contudo a tentação é irresistível, como se buscasse uma chave que o próprio artista tivesse ocultado." (KRAUSS, 2001, p.102)

Sugestiva convergência com as palavras de Peter Gay, avaliando a questão da psicanálise aplicada:

"Mas os críticos da estética de Freud logo objetaram que a crítica psicanalítica normalmente sofre do defeito exatamente oposto: uma tendência a negligenciar a habilidade, a forma, o estilo, em favor do conteúdo. A busca deliberada, por parte do psicanalista, de significados ocultos num poema, romance ou quadro provavelmente leva-o a prestar excessiva atenção ao enredo, à narrativa, à metáfora, ao personagem, e a passar por cima do fato de que os produtos culturais brotam de mãos talentosas e experimentadas e de uma tradição que o artista obedece, modifica ou desafiadoramente deixa de lado."(GAY, 1989, p.297, grifo nosso)

Antes de passarmos a nossas conclusões, queremos precisar ainda uma vez o foco de nosso artigo: nosso desconhecimento dos estudiosos citados e criticados por Rosalind Krauss não nos impede de avaliar a lógica da argumentação da crítica e historiadora (KRAUSS, 2001, p.350). É esta lógica que está em consideração neste nosso trabalho. Não estamos voltados para a consistência desses estudos, daquilo que favoreceria avançarmos no conhecimento de Duchamp, mas para a discordância, as ressalvas que Rosalind faz quanto a um método interpretativo. Em sua visão, tal método impõe uma significação que nega o plano da obra e a revolução constituída pelo lançamento de sua questão — o que faz a arte? Feitas estas considerações passamos então às necessárias conclusões do que nossos casos nos trouxeram.

Escolhemos dois elementos para a ordenação de nosso artigo: o conceito de resistência e o testemunho dos que fazem a experiência da arte e rejeitam uma interpretação a eles atribuída pelo campo da psicanálise. O que aqui queremos apontar repete o caráter unilátero, moebiano, que mostramos ao afirmar que os campos a que a psicanálise quer se aplicar são os mesmos que ela considera como fundamentais à formação de seus clínicos. A insistência da psicanálise em alguns operadores da experiência artística está em continuidade com o esquecimento de outros operadores que ela mesma produziu. Em que se insiste? O que se esquece?

As palavras de Rosalind Krauss abrem o caminho. Acompanhando por dever de ofício e por escolha sensível o que se produz mundialmente no campo da arte, a autora indica a tendência com clareza: repor o que o artista ultrapassou em seu empreendimento é procurar voltar a uma concepção de arte que cancelaria justo o caminho da invenção. E esta ultrapassagem que faz retorno num movimento conservador pode ser dita metafórica ou narrativa. A orientação metafórica abriga a vertente analógica, antropromórfica, de constituição do significado; a orientação narrativa constitui o significado pela ordenação dos eventos no tempo.

Não é possível 'repor este fundo' que a ascese de Duchamp ultrapassou, se quisermos, nós da psicanálise, responder com ele à pergunta o que a arte faz. O que importa aqui sublinhar é que o fundo metafórico-narrativo não foi recalcado pelo artista, mas superado no momento em que abriu mão de uma direção e escolheu outra. No caso de Duchamp, a mudança de inclinação se deu depois de um encontro decisivo com a produção de um autor francês — Raymond Roussel — cuja obra já analisamos em outro lugar.4 4 Em nossa tese de doutoramento (CORRÊA, 1998), no subcapítulo "Experiências gramaticais inaceitáveis", analisamos a obra de Raymond Roussel. Podemos dizer que o que constitui a "arte como automação" na obra deste escritor é a exploração das regras de linguagem como uma combinatória livre. O encontro de Duchamp com Roussel se deu por ocasião da representação da peça teatral Impressions d'Afrique e marcou-o profundamente (KRAUSS, 2001, p.85). Era necessário ir além da pintura de tradição cubista para poder acolher o surgimento de uma questão mais fundamental para a prática da arte; e mais, numa continuidade que faz do conceito a própria prática, fazer do objeto a questão materialmente constituída.

Ajudados pela fala dos artistas, já recortamos as vertentes em que a psicanálise insiste, no caso da experiência da arte. Mas, o que foi que ela esqueceu, e que foi por ela mesma produzido? Parte da resposta se encontra em Freud, parte em Lacan.

Quanto a Freud, já sublinhamos em outro lugar uma noção por ele trazida no texto "A perda da realidade na neurose e na psicose": a criação de realidade, por ele definida como autoplástica ou aloplástica. Tal noção está intimamente ligada à modificação do mundo — perspectiva fundamental no desenvolvimento das idéias freudianas, quer diga respeito à finalidade de uma análise, quer se avizinhe do mal-estar da cultura. Mais ainda, o anseio de modificação do mundo é o que iguala as distintas inclinações que o psiquismo pode produzir. É por almejar a modificação do mundo que nos irmanamos todos.

"Chamamos um comportamento de 'normal' ou 'sadio' se ele combina certas características de ambas as reações — se repudia a realidade tão pouco quanto uma neurose, mas se depois se esforça, como faz uma psicose, por efetuar uma alteração dessa realidade. Naturalmente, esse comportamento conveniente e normal conduz à realidade do trabalho no mundo externo; ele não se detém, como na psicose, em efetuar mudanças internas. Ele não é mais autoplástico, mas aloplástico."(FREUD, 1924/1969, p.231, grifo nosso)

O trabalho do artista é de criação de realidade. Seu fundamento é a modificação do mundo. E ele o modifica — como todos nós de algum modo procuramos fazer — porque a vida é inelutável. É esta a rejeição impossível que contornamos pela modificação do mundo, pela criação de realidade. Eis um fundamento que a própria psicanálise concebeu e que não pode esquecer.

O segundo aspecto promissor em Freud foi a seriedade com que levou avante em toda a sua obra uma vontade de gramática, que se exemplifica de modo estonteante nos Chistes e sua relação com o inconsciente. O escândalo desta perspectiva está na antecipação de um conceito fundamental para a lingüística contemporânea (entre outros campos). Freud reiteradamente investe na constituição de gramaticalidades, das regras que trabalham materialidades específicas, 'pondo de pé' criações de realidade — modalidades de formações do inconsciente.

É então por uma gramática surgindo da materialidade que as formações se apresentam sensivelmente — que elas se tornam perceptíveis, portanto receptíveis. Fazemos notar que não estamos postulando uma separação gramática/materialidade. Estas também devem ser concebidas em moebiana continuidade.

Lacan não deixou passar a vontade de gramática em Freud. Seu Inconsciente estruturado como uma linguagem, ousamos dizer, é uma dívida muito mais freudiana do que saussuriana. É claro que Saussure oferece o constructo que nomeia, mas Freud oferece o que para Chomsky é fundamental, mais além do constructo — o saber, a intuição do falante nativo. Eis a origem freudiana do inconsciente estruturado como uma linguagem.

E é o esclarecimento quanto às gramáticas pela via do saber do artista que permite avaliar os limites atingidos pela Fontaine, retomados depois pelo minimalismo — que a obra constitua uma totalidade inanalisável, isto é, que sua objetalidade nos ponha para além de qualquer esmiuçamento e se mantenha 'coesa, como uma Coisa'.

Lacan também não deixou passar o incômodo do peso dos significados. Acaso não investiu ele nos matemas? E, quando se debruça sobre a prática dos nós o que almeja, nomeadamente, é o recorte de um modo de estar no mundo que tenha consistência mas evite as armadilhas imaginárias da significação. A produção de um efeito de sentido resulta da organização gramatical, assim como também resulta da manipulação dos nós. Mas é preciso entender sua qualidade de outro modo, uma espécie de presença não metafórica nem narrativa. Uma consistência.

A obra de arte exige o exercício de 'escuta' de uma gramaticalidade íntimamente e intrincadamente ligada à materialidade escolhida. 'Enquanto psicanalista', o fruidor recebe tanto as soluções gramaticais quanto o aparecimento da materialidade. Esta 'escuta', sinestesicamente considerada, se apresenta sob duas inclinações: a atenção flutuante ao que o artista diz quanto a seu empreendimento; a atenção flutuante à consistência da obra que nos dispomos a acolher.

Persistir nestas duas perspectivas é um exercício de desconstituir álibis. Em sua conferência aos Estados Gerais da Psicanálise, Derrida afirma que apenas a psicanálise tem como conceber a pulsão de morte sem álibi. De modo análogo, é isto que almejamos. Que a psicanálise possa lidar com a obra do artista e com sua fala sem álibi. Sem pré-referências que amorteçam o que ali temos que aprender.

Recebido em 13/8/2003. Aprovado em 22/9/2003.

  • CHEDIAK, A. (1994) Songbook II de Caetano Veloso Rio de Janeiro: Lumiar.
  • CORRÊA, M.C.Q. (1998). "A experiência do excesso por uma revisão da loucura dos artistas". Tese de Doutoramento defendida no Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica. UFRJ. Rio de Janeiro.
  • DIDI-HUBERMAN, G. (1998) O que vemos, o que nos olha São Paulo: Editora 34.
  • DERRIDA, J. (2001) Estados-da-alma da psicanálise: O impossível para além da soberana crueldade Riode Janeiro: Escuta.
  • DURAS, M. (1964) Le ravissement de Lol V. Stein Paris: Gallimard.
  • ______ (1986) O deslumbramento Rio de Janeiro: Nova Franteira.
  • FREUD, S. (1969) Edição standard das obras psicológicas completas Rio de Janeiro: Imago.
  • (1907) "Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen", v. IX.
  • (1914) "A história do movimento psicanalítico", v. XIV.
  • (1917) "Uma dificuldade no caminho da psicanálise", v. XVII.
  • (1921) "Psicologia de grupo e análise do eu", v. XVIII.
  • (1924) "A perda da realidade na neurose e na psicose", v. XIX.
  • (1925 [1924]) "As resistências à psicanálise", v. XIX.
  • (1926 [1925]) "A questão da análise leiga", v. XX.
  • GAY, P. (1989) Freud: uma vida para nosso tempo São Paulo: Companhia das Letras.
  • KRAUSS, R.(2001) Caminhos da escultura contemporânea. São Paulo: Martins Fontes.
  • LACAN, J. (2000) Autres écrits. Paris: Seuil.
  • ROUDINESCO, E. (1988) História da psicanálise na França A batalha dos cem anos Rio de Janeiro: Jorge Zahar, v.2.
  • 1
    Eis a pergunta singela do filósofo: "por que fui eu autorizado? Por que e por quem, afinal?" Por seu amor à psicanálise, é claro, manifesto no trabalho exaustivo de uma constante 'desconstrução'. Severidade daquele que ama.
  • 2
    Indicamos aqui nossa tese de doutoramento, na qual tratamos do desenvolvimento agônico deste seminário.
  • 3
    Estamos nos referindo ao livro
    O que vemos, o que nos olha. Nesta obra, Georges Didi-Huberman faz uma severa crítica da arte minimalista e de seus objetos, cuja característica de totalidade não analisável encontraria sua matriz nos
    ready-mades de Marcel Duchamp. O autor, em vários momentos da obra citada, encontra caminhos diferentes aos de Rosalind Krauss. Nosso pensamento, sobre a questão que nos ocupa neste artigo é o mesmo da crítica norte-americana.
  • 4
    Em nossa tese de doutoramento (CORRÊA, 1998), no subcapítulo "Experiências gramaticais inaceitáveis", analisamos a obra de Raymond Roussel. Podemos dizer que o que constitui a "arte como automação" na obra deste escritor é a exploração das regras de linguagem como uma combinatória livre. O encontro de Duchamp com Roussel se deu por ocasião da representação da peça teatral
    Impressions d'Afrique e marcou-o profundamente (KRAUSS, 2001, p.85).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      12 Dez 2005
    • Data do Fascículo
      Dez 2003

    Histórico

    • Aceito
      22 Set 2003
    • Recebido
      13 Ago 2003
    Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Instituto de Psicologia UFRJ, Campus Praia Vermelha, Av. Pasteur, 250 - Pavilhão Nilton Campos - Urca, 22290-240 Rio de Janeiro RJ - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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