RESUMO:
Analisa-se o conceito de imagem do corpo e sua alteração na bulimia sustentado no aporte psicanalítico. A partir do estudo da constituição da imagem do corpo e sua perturbação na bulimia, identificou-se uma importante articulação entre ambas, que se dá em pontos fundamentais do psiquismo, destacando-se o narcisismo, as relações objetais e a identificação. Assim, os fatores que participam da construção da imagem do corpo e estão comprometidos quando há uma patologia da mesma coincidem com os que estão implicados na bulimia. Portanto, esses fatores psíquicos podem ser pensados como perspectivas relevantes na clínica da bulimia.
Palavras-chave:
Imagem corporal; bulimia; transtorno alimentar; psicanálise
ABSTRACT:
Body image and bulimia. This article analyzes the concept of body image and its change in bulimia and it is supported by the psychoanalytical approach. From the study of the constitution of body image and its disturbance on bulimia, an important articulation was identified between both, and it takes place in fundamental aspects of the psyche, with emphasis on narcissism, object relations and identification. Thus, those factors that are part of the construction of the body image and that are compromised when there is some kind of pathology, coincide with the factors implied in bulimia. Therefore, these psychic factors can be thought of as relevant perspectives in the clinic of bulimia.
Keywords:
Body image; bulimia; eating disorder; psychoanalysis
Examina-se aqui o conceito de imagem do corpo e seu transtorno na bulimia sob a perspectiva da abordagem psicanalítica. Inicialmente, a imagem do corpo é analisada por meio do conceito de corpo e sua transposição do corpo somático ao corpo erógeno em Freud. Posteriormente, são discutidos os diferentes conceitos de imagem do corpo propostos por distintos autores do campo psicanalítico: desde Schilder, Lacan e Dolto até Nasio e Zukerfeld. Por fim, são feitas considerações acerca da perturbação da imagem do corpo na bulimia.
A imagem do corpo e suas alterações na bulimia constituem um desafio à clínica psicanalítica contemporânea, evidenciando uma das formas de expressão do mal-estar do sujeito. No panorama psicopatológico atual, houve um incremento significativo de casos de bulimia nas décadas de 1970 e 1980 (FERNANDES, 2006FERNANDES, M. H. (2006) Transtornos alimentares: anorexia e bulimia. São Paulo: Casa do Psicólogo.), com uma prevalência mundial estimada de 1% a 4% da população (CORDÁS, 2005CORDAS, T. A. (2005) Transtornos alimentares. Laboratório de Neurociências do Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Disponível em:Disponível em:http://www.neurociencias.org.br/pt/554/transtornos-alimentares-2/
. Acesso em: 10/12/2008.
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). Assim, a bulimia vem ocupando um lugar destacado na clínica e provocando novas designações, passando a ser considerada como a nova histeria dos '80' (ZUKERFELD, 1996ZUKERFELD, R. (1996) Acto bulímico, cuerpo y tercera tópica. Argentina: Paidós.), "enfermidade especificamente feminina" (HERSCOVICI & BAY, 1997HERSCOVICI, C. R. & BAY, L. (1997) Anorexia nervosa e bulimia - ameaças à autonomia. Porto Alegre: Artes Médicas.), "enfermidade da modernidade" (NUNES et al., 1998NUNES, M. A. A., APPOLINÁRIO, J. C., ABUCHAIM, A. L. G., & COUTINHO, W. (1998) Transtornos alimentares e obesidade Porto Alegre: ArtMed.) e "patologia da adolescência feminina" (BRUSSET, 1999BRUSSET, B. (1999) "Bulimia: introdução geral", in URRIBARRI, R. (Org.) Anorexia e bulimia. São Paulo: Escuta.). Nesse cenário, a bulimia tem se transformado em um problema de grande extensão e preocupação.
Apesar de a bulimia ter etiologia multifatorial, a perturbação da imagem do corpo consiste num fator instigador para seu desencadeamento nas pessoas que apresentam vulnerabilidade psíquica. Desse modo, a alteração da imagem do corpo, que ocorre através de distorção e insatisfação acerca da forma e do peso do corpo, é considerada um aspecto extremamente relevante. Constitui, além de um critério diagnóstico (CID-10, 1993; CLAUDINO & BORGES, 2002CLAUDINO, A. M. BORGES, M. B. F. (2002) Critérios diagnósticos para os transtornos alimentares: conceitos em evolução. Revista Brasileira de Psiquiatria, v.24, n.3. São Paulo, p.7-12.; CORDÁS & SALZANO, 2004CORDAS, T. A. SALZANO, F. T.(2004). Saúde mental da mulher São Paulo: Atheneu; DSM-IV-TR, 2002; FREITAS et al., 2002FREITAS, S., GORENSTEIN, C. & APOLINÁRIO, J. (2002) Instrumentos para avaliação dos transtornos alimentares. Revista Brasileira de Psiquiatria, v.4, n.3, São Paulo, p.34-38.), um fator predisponente, precipitante e mantenedor da bulimia (MORGAN et al., 2002MORGAN, C. M., VECCHIATTI, L. R., & NEGRÃO, A. B. (2002) Etiologia dos transtornos alimentares: aspectos biológicos, psicológicos e socioculturais. Revista Brasileira de Psiquiatria, n.24 (Supl. III), p.18-23.; SAIKALI et al., 2004SAIKALI, C. J., SOUBHIA, C. S., SCALFARO, B. M., & CORDÁS, T. A. (2004) Imagem corporal nos transtornos alimentares. Revista de Psiquiatria Clínica, v.31, n.4, p.164-166.). Por essas razões, depreende-se que o conceito da imagem do corpo e sua alteração são essenciais para a compreensão e a terapêutica da bulimia.
IMAGEM DO CORPO
A imagem do corpo pode ser entendida como conceito e vivência que se constrói sobre o esquema corporal, trazendo consigo o mundo humano das significações. O esquema corporal é a estrutura de fundamento biológico, o lugar fonte das pulsões, as quais necessitam da imagem do corpo para ser expressas, via fantasia. Assim, o lugar da representação das pulsões é a imagem do corpo. Os processos pelos quais o esquema corporal e a imagem do corpo se relacionam compreendem, por um lado, as tensões de dor ou de prazer no corpo, e por outro, as palavras que dão um sentido e uma representação a estas percepções (DOLTO, 1954/1992DOLTO, F. (1954/1992) A imagem inconsciente do corpo São Paulo: Perspectiva.).
Sob a perspectiva da psicanálise, o conceito de imagem do corpo refere-se à representação psíquica do corpo, sendo fundamental para a compreensão de aspectos importantes da personalidade como a autoestima, e essencial para explicar certas patologias como a bulimia (ZUKERFELD, 1996ZUKERFELD, R. (1996) Acto bulímico, cuerpo y tercera tópica. Argentina: Paidós.).
Primeiros estudos sobre a imagem do corpo: do corpo somático ao corpo erógeno
O estudo da imagem do corpo, sob o prisma psicanalítico, focaliza a relação corpo-psique, partindo da ideia de que o corpo é um território de prazeres e de desgostos e de que é da atenção às necessidades do "corpo biológico" que nasce a organização libidinal e o "corpo erógeno". Este foi descrito por Freud (1893-95/1996FREUD, S. (1893-95/1996) "Estudios sobre la histeria", v.II, p.23-43.) como a organização libidinal (oral, anal, fálica e genital), que possui uma estrutura altamente específica para cada sujeito, contendo e expressando a própria história dos desejos.
Cedo na vida o corpo se apresenta como uma fonte singular de prazer, vivenciado ideia da experiência subjetiva do autoerotismo. Freud (1905/1996)FREUD, S. (1905/1996) "Tres ensayos de teoría sexual", v.VII, p.157-188. assegurou que o papel da mãe não se restringe ao cuidado autoconservativo, mas inclui instituir o acesso ao prazer por meio da promoção da sexualidade. Esta nasce a partir do funcionamento das atividades corporais e adiante se independiza delas. Torna-se autônoma e passa a funcionar de modo autoerótico, provocando um prazer que se distingue da satisfação da necessidade. A esta relação entre certas funções e necessidades corporais (pulsões de autoconservação) e as pulsões sexuais, Freud (1905/1996FREUD, S. (1905/1996) "Tres ensayos de teoría sexual", v.VII, p.157-188.) denominou de apoio. Desse modo, o componente real orgânico é alocado num sistema de representações, possibilitando a simbolização (GANTHERET, 1971GANTHERET, F. (1971) Remarques sur la place et le statut du corps en psychanalyse. Nouvelle Revue de Psychanalyse, n.3, Paris: Gallimard, p.135-146.).
O corpo, de início, é investido libidinalmente pela mãe e, mais tarde, pelo próprio sujeito. Esse é o percurso que leva à transposição do corpo da necessidade para o corpo de prazer. Porém, na falta do investimento libidinal, a experiência do corpo fica ligada à necessidade. O desempenho adequado da função materna é essencial para que os sinais pré-verbais emitidos pelo bebê sejam metaforizados, proporcionando as estruturas básicas para mais tarde tornar psicológico, integrado e simbolizável o corpo biológico, primário e irrepresentável (ANZIEU, 1961/1981ANZIEU, D. (1961/1981) Os métodos projetivos Rio de Janeiro: Campus.; DOLTO, 1954/1992DOLTO, F. (1954/1992) A imagem inconsciente do corpo São Paulo: Perspectiva.; PERES & SANTOS, 2007PERES, R. S. & SANTOS, M. A. (2007) "Imagem corporal: conceitualização e avaliação", in SCHELINI, P. W. (Org.) Alguns domínios da avaliação psicológica. São Paulo: Alínea.). Para que o outro maternal tenha condições de interpretar o corpo do bebê, ele necessita investir libidinalmente esse corpo, permitindo que o "corpo de sensações" se transforme em um "corpo representado" (FERNANDES, 2003FERNANDES, M. H. (2003) CorpoSão Paulo: Casa do Psicólogo.).
A partir do autoerotismo, em que as zonas erógenas estão num registro dispersivo e parcializado no corpo, a erogeneidade se estende para um corpo unificado pelo narcisismo, constituindo o "corpo narcísico". O corpo unificado faz referência ao próprio corpo (FREUD, 1914/1996FREUD, S. (1914/1996) "Introducción del narcisismo", v.XIV, p.71-98.), promovendo a condição de si e evidenciando a relação entre corpo e identidade. Além disso, essa totalidade narcísica se ordena em torno de uma imagem que é denominada "imagem do corpo" (LAZZARINI & VIANA, 2006LAZZARINI, E. R. & VIANA, T. C. (2006) O corpo em psicanálise. Revista Eletrônica Psicologia: Teoria e Pesquisa, v.22, n.2, p.241-249. Disponível em:Disponível em:http://www.scielo.br/pdf/ptp/v22n2/a14v22n2.pdf
. Acesso em: 22/3/2010.
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).
A ideia da unidade do corpo relacionada ao narcisismo também é abordada por Lacan (1966/1998)LACAN, J.(1966/1998) "O estádio do espelho como formador da função do eu", in Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.. Ele refere que o investimento narcísico no próprio corpo, através do reconhecimento da imagem especular vivenciado no estádio do espelho, proporciona à criança um sentimento de unidade do seu corpo, permitindo a gênese do eu por meio do registro do imaginário.
A passagem de um corpo autoerótico para um corpo unificado pelo narcisismo prepara o terreno para a posterior emergência do "ego corporal". Freud (1923/1996)FREUD, S. (1923/1996) "El Yo y el Ello", v.XIX, p.32-41. afirma que "o ego é primeiro e acima de tudo, um ego corporal; não é simplesmente uma entidade de superfície, mas é, ele próprio, a projeção de uma superfície" (p.40). O ego como "entidade de superfície" pode ser compreendido a partir de sua relação com a percepção e a realidade. O ego como "projeção de uma superfície" faz referência à projeção mental do corpo construída a partir das fantasias do sujeito.
A assunção do corpo como o "corpo próprio" possibilita acesso à primeira pessoa (eu) e está assentada na relação com o outro maternal. Este, por meio do investimento libidinal no corpo da criança, vai torná-lo erógeno, permitindo acesso à simbolização, ao mesmo tempo assinalando ao corpo sua qualidade de corpo próprio (FREUD, 1923/1996FREUD, S. (1923/1996) "El Yo y el Ello", v.XIX, p.32-41.).
Desse modo, na abordagem freudiana, o "corpo biológico", atravessado pela erogeneidade, passa do "corpo autoerótico" ao "corpo narcísico", para chegar à ideia de um "ego-corporal". Essa noção de ego corporal tornou possível a representação do corpo no ego e a expressão dos conflitos do ego no corpo. Além disso, a concepção do ego como a projeção psíquica da superfície do corpo permitiu a abertura para vários trabalhos posteriores sobre a relação corpo-psique, a qual foi denominada por alguns psicanalistas pela expressão "imagem do corpo".
CONTRIBUIÇÕES PÓS-FREUDIANAS
A expressão "imagem do corpo" nunca foi utilizada por Freud. Porém, a partir do pressuposto freudiano de corpo erógeno, Schilder (1935/1994) apresentou a primeira definição de imagem do corpo não associada a aspectos exclusivamente neurológicos. Apenas nas últimas décadas a expressão "imagem do corpo" ganhou o estatuto de conceito psicanalítico, tendo sido especialmente desenvolvido por Jacques Lacan (1966/1998)LACAN, J.(1966/1998) "O estádio do espelho como formador da função do eu", in Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar., como a "imagem especular" e por Françoise Dolto (1954/1992), como a "imagem inconsciente do corpo".
O conceito de imagem do corpo proposto por Schilder foi construído através de uma abordagem multidimensional, com três estruturas em constante intercâmbio: a fisiológica, a libidinal e a sociológica. Para ele, a imagem do corpo é a "... representação que nós formamos mentalmente de nosso próprio corpo, quer dizer, a forma em que este se nos apresenta" (SCHILDER, 1935/1994SCHILDER, P. (1935/1994) Imagem e aparência do corpo humano - estudos sobre as energias construtivas da psique. São Paulo: Martins Fontes. , p.15).
A "imagem corporal libidinal" de Schilder (1935/1994)SCHILDER, P. (1935/1994) Imagem e aparência do corpo humano - estudos sobre as energias construtivas da psique. São Paulo: Martins Fontes. apresenta grande consonância com a teoria da sexualidade e do narcisismo de Freud. Para o autor, os processos que constroem a imagem do corpo não se desenvolvem apenas no campo da percepção, mas têm um paralelo com o campo libidinal e emocional. Assim, as correntes eróticas que atravessam o corpo desempenham um papel particular no processo de construção da imagem do corpo. Além disso, Schilder afirma que o narcisismo "outorga significação a todas as partes do corpo" (p.118), sendo a imagem do corpo objeto da libido narcisista.
Assim como em Freud (1914/1996)FREUD, S. (1996) Obras completas de Sigmund Freud. Buenos Aires: Amorrortu. e em Schilder (1935/1994)SCHILDER, P. (1935/1994) Imagem e aparência do corpo humano - estudos sobre as energias construtivas da psique. São Paulo: Martins Fontes. , também na proposição deLacan (1966/1998)LACAN, J.(1966/1998) "O estádio do espelho como formador da função do eu", in Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. a libido e em particular o narcisismo ganham ênfase na constituição da imagem do corpo. Para Lacan (1966/1998)LACAN, J.(1966/1998) "O estádio do espelho como formador da função do eu", in Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar., a imagem do corpo se origina da experiência especular, pela qual a criança recupera a dispersão do corpo fragmentado numa totalidade unificada, que é a representação do próprio corpo. A visão total do corpo provoca um fascínio pela própria imagem, instalando um corpo imaginário e narcísico. Desse modo, a imagem do corpo passa a ser influenciada pelo ego ideal (ANZIEU, 1961/1981ANZIEU, D. (1961/1981) Os métodos projetivos Rio de Janeiro: Campus.; LACAN, 1954/1984LACAN, J. (1954/1984) El seminario libro 1, Los escritos técnicos de Freud. Barcelona: Paidós.; PERES & SANTOS, 2007PERES, R. S. & SANTOS, M. A. (2007) "Imagem corporal: conceitualização e avaliação", in SCHELINI, P. W. (Org.) Alguns domínios da avaliação psicológica. São Paulo: Alínea.). Adiante, a representação do corpo sofre alterações ganhando limites mais realistas para a identificação por ocasião da internalização da interdição paterna, a partir do declínio do complexo de Édipo.
A imagem do corpo, de acordo com a concepção de Lacan, tem um papel essencial na "gênese do eu" através do reconhecimento da criança de sua totalidade no espelho e é "estruturante para a identidade" na medida em que a conquista da imagem do próprio corpo possibilita uma experiência de identificação primordial. Portanto, a imagem do corpo tem um papel fundamental na "constituição do sujeito", já que é a imagem especular que permite à criança estabelecer a relação de seu "corpo" e de seu "eu" com a realidade que a cerca e, especialmente, possibilita o reconhecimento dessa imagem como de um sujeito (LACAN, 1966/1998).
O conceito de imagem do corpo é significativamente enriquecido com a proposição teórica de Dolto (1954/1992)DOLTO, F. (1954/1992) A imagem inconsciente do corpo São Paulo: Perspectiva., que a concebe como "imagem inconsciente do corpo", definindo-a como "a síntese viva de nossas experiências emocionais" (p.14). A autora compreende a imagem inconsciente do corpo como uma memória inconsciente das emoções precoces experimentadas na relação intersubjetiva com o outro cuidador. A característica inconsciente em relação à imagem do corpo proposta por Dolto (1954/1992)DOLTO, F. (1954/1992) A imagem inconsciente do corpo São Paulo: Perspectiva. também é referida por Anzieu (1961/1981)ANZIEU, D. (1961/1981) Os métodos projetivos Rio de Janeiro: Campus.. Para ele, a imagem do corpo é inconsciente, de base afetiva e pertence ao registro imaginário. Além disso, de acordo com o autor, a imagem corporal contém tanto a "representação idealizada de si mesmo", através da dissimulação dos aspectos frágeis e censuráveis da personalidade, como as "marcas de traumatismos psicológicos" vividos na história do sujeito (p.268).
Dolto (1954/1992)DOLTO, F. (1954/1992) A imagem inconsciente do corpo São Paulo: Perspectiva. propõe que a imagem inconsciente do corpo é constituída pela articulação dinâmica de três imagens: "imagem de base", "imagem funcional" e "imagem das zonas erógenas". A imagem de base permite à criança sentir-se em uma continuidade narcísica que origina o sentimento de existir. A "imagem funcional" é uma imagem da atividade, do funcionamento, e visa à realização do desejo do sujeito. Assim, permite que as pulsões de vida, após sua subjetivação no desejo, possam se objetivar na relação com o mundo e com o outro, em busca do prazer. A "imagem erógena" do corpo é onde se expressa a tensão das pulsões. Sua associação a determinada imagem funcional do corpo evidencia o prazer ou o desprazer na relação com o outro.
A composição das "imagens de base", "funcional" e "erógena", ligadas entre si pelas pulsões de vida, estabelece a "imagem dinâmica", à qual corresponde o "desejo de ser" (DOLTO, 1954/1992DOLTO, F. (1954/1992) A imagem inconsciente do corpo São Paulo: Perspectiva.). O conjunto dessas imagens constitui e assegura a imagem do corpo e o narcisismo do sujeito durante cada etapa de seu desenvolvimento.
Além do narcisismo, a interação com pessoas significativas e a identificação são destacadas como fundamentais para a constituição da imagem do corpo. De acordo com as proposições de Schilder (1935/1994)SCHILDER, P. (1935/1994) Imagem e aparência do corpo humano - estudos sobre as energias construtivas da psique. São Paulo: Martins Fontes. , a imagem do corpo é determinada pela história de vida do sujeito e sua relação com os demais. De modo similar, para Dolto (1954/1992)DOLTO, F. (1954/1992) A imagem inconsciente do corpo São Paulo: Perspectiva., a imagem do corpo se estrutura na relação intersubjetiva, em especial a do bebê com sua mãe, por meio da comunicação entre as imagens do corpo que no início da vida ocupam uma relação complementar. No caso de isso falhar, ficando a comunicação limitada ao "corpo a corpo", com vistas exclusivamente à manutenção das necessidades do bebê, a construção de vias psíquicas facilitadoras da simbolização fica prejudicada, interferindo na estruturação da imagem do corpo que poderá se constituir demarcada por referenciais predominantemente provindos das relações sensoriais.
A importância da interação também é destacada em relação à imagem especular, na medida em que a percepção da pessoa conhecida ao lado da criança permite avalizar a imagem escópica como sua, bem como dar sentido a ela (LACAN, 1966/1998DOLTO, F. & NASIO, J. D. (1991) A criança do espelho. Porto Alegre: Artes Médicas.; DOLTO, 1954/1992DOLTO, F. (1954/1992) A imagem inconsciente do corpo São Paulo: Perspectiva.). Entretanto, existem diferenças significativas em relação à imagem reenviada pelo espelho nas concepções de Lacan e Dolto. Enquanto para Lacan o estádio do espelho marca o início do narcisismo, de modo oposto, para Dolto representa o narcisismo primário que sucede o narcisismo primordial (DOLTO & NASIO, 1991DOLTO, F. & NASIO, J. D. (1991) A criança do espelho. Porto Alegre: Artes Médicas.). Para Dolto (1954/1992)DOLTO, F. (1954/1992) A imagem inconsciente do corpo São Paulo: Perspectiva., primeiro há o narcisismo primordial, no qual "o narcisismo da criança se informa sobre o inconsciente da mãe e se concilia com ele, se adequa à maneira pela qual ela a olha" (p.128). A este se acrescenta o narcisismo primário, a partir da identificação primária que é decorrente da experiência especular.
Outra diferença em relação à experiência do espelho se relaciona ao sentimento provocado pelo impacto da imagem no espelho. Para Lacan, causa júbilo devido à assunção pela criança de sua imagem; para Dolto, é a prova dolorosa da castração, pela constatação penosa que a criança faz da diferença que a separa da imagem (DOLTO & NASIO, 1991DOLTO, F. & NASIO, J. D. (1991) A criança do espelho. Porto Alegre: Artes Médicas.). Porém, quando a experiência do espelho é integrada, poderá ser simbolizante, modificando as representações do sujeito. Assim, de acordo com Dolto (1954/1992), a imagem inconsciente do corpo, da ordem do invisível, cede lugar à representação de imagens conscientemente valiosas e visíveis.
CONTRIBUIÇÕES PSICANALÍTICAS CONTEMPORÂNEAS
Entre as contribuições psicanalíticas recentes acerca da imagem do corpo destacam-se as de Nasio e Zukerfeld. Ambos, apoiados nos autores psicanalíticos que os antecederam, apresentam propostas teóricas que enriquecem o estudo da imagem do corpo.
Nasio (2009NASIO, J. D. (2009) Meu corpo e suas imagens. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.) declara que "a imagem inconsciente do corpo é um dos conceitos mais importantes da psicanálise contemporânea" (p.15). Apoiado nas teorizações de Lacan (1966/1998)LACAN, J.(1966/1998) "O estádio do espelho como formador da função do eu", in Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. e Dolto (1954/1992)DOLTO, F. (1954/1992) A imagem inconsciente do corpo São Paulo: Perspectiva., Nasio (2009)NASIO, J. D. (2009) Meu corpo e suas imagens. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. se refere a duas imagens do corpo complementares e interativas. A imagem que é vista, a partir do conceito de imagem especular de Lacan (a imagem do espelho e seu poder de fascinação) e a imagem sentida, apoiado no conceito de imagem inconsciente do corpo de Dolto (imagem mental das impressões sensoriais). Ele propõe que a síntese dessas duas imagens do corpo resulta na constituição do eu, enquanto sensação de si mesmo. Assim, o vivido subjetivo das imagens corporais resulta no sentimento de existir que o autor identifica como o eu, afirmando que a imagem do corpo é o conteúdo do eu.
A partir do conceito de imagem inconsciente do corpo de Dolto (1954/1992)DOLTO, F. (1954/1992) A imagem inconsciente do corpo São Paulo: Perspectiva., Nasio (2009NASIO, J. D. (2009) Meu corpo e suas imagens. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.) afirma que esta é a imagem das sensações pregnantes da infância. Estas deixam seu traço no inconsciente, fixando-se numa imagem inconsciente do corpo que corresponde às sensações sentidas antes da palavra e da descoberta da imagem no espelho. Posteriormente, a imagem do "corpo-visto" impera na consciência, enquanto que as imagens do "corpo-vivido" são recalcadas, e, portanto, tornam-se inconscientes.
A imagem da sensação corporal é referida a três parâmetros, segundo Nasio (2009NASIO, J. D. (2009) Meu corpo e suas imagens. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.): o "afeto" (dar sentido ao que sente), o "outro" (presença interiorizada do outro) e o "tempo" (repete-se na história). Portanto, na concepção do autor, o conjunto das imagens do corpo é constituído de representações afetivas, marcadas pela presença do outro e repetidas na história, dando a sensação da existência de um 'corpo vivo' e do 'eu'.
Em relação ao conceito de "imagem", Nasio (2009NASIO, J. D. (2009) Meu corpo e suas imagens. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.) esclarece que uma imagem é sempre o "duplo" de alguma coisa, sendo a imagem do corpo o duplo do corpo. Quanto ao lugar no qual se inscreve a imagem, ela pode existir como duplo na mente, enquanto representação mental consciente ou inconsciente, como o "duplo de uma sensação" ("imagem mental"). Pode existir, também, fora do sujeito, visível sobre uma superfície, como o "duplo da aparência do corpo" ("imagem especular") e posta em movimento num comportamento significativo, como o "duplo cinético de uma emoção inconsciente" ("imagem-ação").
Além de distinguir a imagem como o "duplo de uma sensação" ("imagem mental"), como "duplo da aparência do corpo" ("imagem visual"), como "duplo cinético de uma emoção inconsciente" ("imagem-ação"), Nasio (2009NASIO, J. D. (2009) Meu corpo e suas imagens. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.) faz referência à imagem enquanto "duplo nominativo", significando um nome que designa uma particularidade do corpo. A "imagem nominativa" é caracterizada como a imagem do "corpo simbólico".
Portanto, conforme Nasio (2009NASIO, J. D. (2009) Meu corpo e suas imagens. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.), o corpo para a psicanálise tem quatro imagens correspondendo a quatro formas de viver o corpo: sentindo-o ("imagem mental" das sensações corporais), vendo-o ("imagem especular" da silhueta no espelho), sendo superado por ele ("imagem-ação", desempenhada pelo corpo em movimento) e nomeando-o ("imagem nominativa", designando um detalhe do corpo). Entretanto, Nasio assinala que as duas imagens principais do corpo são a "imagem mental das sensações físicas" e a "imagem visível da silhueta no espelho". Associa a imagem do corpo à identidade, afirmando que as imagens mentais do corpo são a essência da identidade, são imagens subjetivas e deformadas que falseiam a percepção do eu mesmo.
Nasio (2009NASIO, J. D. (2009) Meu corpo e suas imagens. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.) também explica que uma imagem só pode existir a partir do investimento afetivo. E é em função da carga afetiva que a imagem é um "duplo deformado" (p.67). Assim, as imagens do corpo, sejam as sensações, sejam as aparências, "(...) são imagens alimentadas no amor e no ódio que temos por nós mesmos" (p.56) e fazem o corpo crescer ou adoecer.
A imagem do corpo é apresentada por Zukerfeld (1996ZUKERFELD, R. (1996) Acto bulímico, cuerpo y tercera tópica. Argentina: Paidós.) como "uma estrutura psíquica que inclui a representação consciente e inconsciente do corpo em três registros distintos: forma, conteúdo e significado" (p.176). De acordo com esse autor, cada um dos diferentes registros da imagem do corpo está relacionado a um sistema psíquico. O registro da "forma" (ou figura) compreende todas as representações conscientes do corpo, correspondendo à noção de esquema corporal. O registro do "conteúdo" (ou interioridade) corresponde às representações pré-conscientes relacionadas à percepção das sensações proprioceptivas e cinestésicas. Neste registro encontra-se a série fome-saciedade. Por fim, o registro do "significado" refere-se à noção de corpo erógeno incluindo as representações inconscientes que constituem a especificidade do desejo com expressão simbólica.
A existência de uma importante relação entre imagem do corpo, autoestima e identidade é salientada por Zukerfeld (1996ZUKERFELD, R. (1996) Acto bulímico, cuerpo y tercera tópica. Argentina: Paidós.). Em condições normais, a libido circula com facilidade entre os registros da forma, conteúdo e significado da imagem do corpo, dando sustentação à integridade do sujeito. Desse modo, fica conservada a autoestima em relação aos remanescentes do narcisismo primário, à satisfação nas relações objetais e ao cumprimento dos ideais. As vicissitudes destes três registros promovem a sensação de si mesmo e de identidade e, para isso, a representação do corpo enquanto forma, conteúdo e significado ocupa um lugar central.
Por outro lado, as falhas do narcisismo associadas à insatisfação nas relações objetais, presentes nos distúrbios alimentares, fazem com que o sujeito empregue a autoestima e o sentimento de identidade de forma absoluta para o cumprimento do ideal da magreza. Nessa situação, produz-se uma ligação enrijecida e intensa entre os registros da forma e do significado, de tal modo que o conteúdo fica excluído ou confuso em seu registro. Assim, a obsessão pela magreza (forma), transformada no ideal que dá sentido (significado), implica a eliminação da necessidade corporal (conteúdo) (ZUKERFELD, 1996ZUKERFELD, R. (1996) Acto bulímico, cuerpo y tercera tópica. Argentina: Paidós.).
Os distúrbios na imagem do corpo são classificados por Zukerfeld (1996ZUKERFELD, R. (1996) Acto bulímico, cuerpo y tercera tópica. Argentina: Paidós.) em perceptuais, cognitivos e sociais. O tipo perceptual refere-se à distorção na estima da superfície corporal e suas dimensões, o que corresponde ao registro da forma. O tipo cognitivo inclui o grau de satisfação com a própria imagem e o grau de registro da interioridade corporal. No distúrbio cognitivo o sentimento de angústia pode ser nominado por fome, a fome ser inominada e a excitação sexual ser raiva ou ansiedades inespecíficas (ZUKERFELD, 1996ZUKERFELD, R. (1996) Acto bulímico, cuerpo y tercera tópica. Argentina: Paidós.). Por fim, o tipo social se relaciona aos modos de subjetivação dos ideais do corpo ordenados pela cultura que, nos distúrbios alimentares, corresponde ao emagrecimento. Segundo Zukerfeld (1996)SCHILDER, P. (1935/1994) Imagem e aparência do corpo humano - estudos sobre as energias construtivas da psique. São Paulo: Martins Fontes. , a "fantasia de emagrecimento" pode fazer parte de um encadeamento semântico tipo "magro-belo-erótico-exitoso" ou "magro-puro-perfeito-esquelético-imortal" (p.182).
Os estudiosos da imagem do corpo apresentam proposições distintas acerca de sua concepção, apontando aspectos principalmente complementares que ampliam sua significação e sua compreensão. É consenso, entre os diferentes autores citados, a relevância da representação do corpo entre as diversas representações disponíveis no aparelho psíquico, na medida em que veicula de modo metafórico os registros da história do sujeito. Também se destacam como fatores relevantes e constantemente enfatizados nas teorizações sobre a imagem do corpo, o narcisismo, as relações objetais primárias e o processo de construção da identidade como integrantes essenciais de sua constituição.
ALTERAÇÕES DA IMAGEM DO CORPO E BULIMIA
A bulimia corresponde às manifestações psicopatológicas da subjetividade referidas no nível pré-genital oral. É característica da bulimia a presença de uma relação problemática com a alimentação, acompanhada de uma alteração da imagem do corpo.Bruch (1973BRUCH, H. (1973) Eating Disorders - Obesity, anorexia nervosa, and the person within. Nova York: Basic Books.) foi pioneira nos estudos sobre a distorção da imagem do corpo e as deficiências perceptivas enquanto elementos precursores à aparição dos distúrbios alimentares. Para a autora, o estudo da imagem do corpo deve incluir a avaliação da "consciência interoceptiva", compreendida como precariedade na identificação das sensações físicas relacionadas à fome e à saciedade e confusão no reconhecimento e resposta aos estados emocionais.
Bruch (1962BRUCH, H. (1962) Perceptual and conceptual disturbances in anorexia nervosa. Psychosomatic Medicine, v.24, n.2, p.187-194.) também demonstrou a importância das respostas confirmadoras, reforçadoras ou inibidoras dos componentes inatos, por parte dos pais, para o desenvolvimento da autopercepção e autoefetividade. Incluiu em sua contribuição a ideia do efeito negativo provocado por alterações precoces na relação mãe-bebê, devido à inadequação no atendimento às necessidades do bebê, falhando a função materna e provocando um estado de perplexidade e desamparo (BRUCH, 1994BRUCH, H.. (1994) Conversations with anorexics - A compassionate and hopeful journey through the therapeutic process. London: Jason Aronson Inc.). As pressões da adolescência associadas à falta de sustentação provinda da carência da autoridade paterna reeditam essa primeira vivência de desamparo, vindo o controle sobre a comida e a ingesta ocupar o lugar de uma tentativa de dar um sentido à identidade não construída.
A insatisfação com a imagem do corpo na bulimia não está relacionada ao peso ou à forma do corpo em si, mas a um descontentamento interno profundo, segundo Bruch (1973BRUCH, H. (1973) Eating Disorders - Obesity, anorexia nervosa, and the person within. Nova York: Basic Books.). Há uma tentativa de corresponder ao que os outros acreditam que deveria ser, havendo uma forte pressão para cumprir a imagem desejada, em geral, pela mãe, em relação às expectativas de sucesso social. No entendimento da autora, o esforço para se ajustar à imagem idealizada pelos pais faz com que seus corpos não sejam experimentados como verdadeiramente próprios, mas como estando sob a influência de outras pessoas. Daí derivam falhas no sentido de propriedade do corpo e da identidade que, por sua vez se relacionam à dificuldade de controle sobre o comer.
A relação do bebê com a mãe é destacada por Dolto (1954/1992)DOLTO, F. (1954/1992) A imagem inconsciente do corpo São Paulo: Perspectiva. como essencial na constituição da imagem do corpo e na compreensão da bulimia. Para a autora, as perturbações na simbiose mãe-bebê são apontadas como um dos aspectos que dariam origem aos distúrbios alimentares. A mãe, além de prestar os cuidados corporais essenciais como de alimentação e higiene, promove a mediação simbólica. Esta diz respeito à capacidade de discriminar o que acontece com seu bebê, estando atenta ao seu prazer e ao seu sofrer, mediando-os com suas palavras, suas carícias e seu afeto. Quando a relação da mãe não funciona de modo adequado como mediadora simbólica, prevalecendo como uma mãe-alimentadora, isso causa um traumatismo simbólico, podendo levar ao desenvolvimento de patologias, entre as quais a bulimia.
Frente à precariedade simbólica, na bulimia, o investimento libidinal fica preso ao corpo e ao alimento. O comportamento atuado substitui o trabalho psíquico da representação, na medida em que quanto maior é o domínio do atuar, mais se reduz a possibilidade de apoio nas representações que remetem a organizações estáveis e conflitos típicos (JEAMMET, 1999aJEAMMET, P. (1999a) "As condutas bulímicas como modalidades de acomodação das desregulações narcísicas e objetais", in URRIBARI, R. (Org.) Anorexia e bulimia. São Paulo: Escuta.). Além disso, o comer compulsivo, relacionado à compulsão à repetição, emerge como uma tentativa de conectar o que não pode ser conectado, o que não permitiu que a pulsão oral se constituísse como tal, separando-se da necessidade de alimento (ZUKERFELD, 1996ZUKERFELD, R. (1996) Acto bulímico, cuerpo y tercera tópica. Argentina: Paidós.).
A relação com o alimento, na bulimia, visa substituir a relação objetal, assim como a busca das sensações tem como meta a substituição das emoções intoleráveis (JEAMMET, 1999bJEAMMET, P. (1999b) "Abordagem psicanalítica dos transtornos das condutas alimentares", in URRIBARI, R. (Org.) Anorexia e bulimia. São Paulo: Escuta.). Desse modo, por meio da orgia alimentar, a bulímica entrega todo o seu ser e anula o seu desejo, enquanto que através da expulsão do vômito realiza um movimento de separação, buscando o vazio numa tentativa de salvar-se como sujeito do desejo (RECALCATI, 2004RECALCATI, M. (2004) La última cena: anorexia y bulimia. Buenos Aires: Mondadori.).
As alternâncias entre o vazio e o excesso que se estabelecem na relação com os alimentos e com o corpo, de acordo com Brusset (1999BRUSSET, B. (1999) "Bulimia: introdução geral", in URRIBARRI, R. (Org.) Anorexia e bulimia. São Paulo: Escuta.), expressam as alternâncias de vazio e excesso consigo mesmo e com os objetos. Assim, o antagonismo vazio-excesso reflete o antagonismo do narcisismo e dos movimentos em direção aos objetos de desejo, amor e ódio. Desse modo, o comportamento atuado vem substituir o trabalho de elaboração psíquica, como uma tentativa de preencher o vazio representacional. Entretanto, a repetição do ato aumenta o vazio que se esforça por preencher.
De modo adverso ao processo normal de identificação, em que a identificação com o objeto de desejo contribui para reforçar a autoestima, na bulimia apresenta-se uma incompatibilidade na medida em que a mãe, enquanto objeto de amor, ocupa, ao mesmo tempo, o lugar de objeto de desejo e de ameaça. Assim, na tentativa de garantir a estabilidade narcísica, a bulímica amplia excessivamente a dependência do olhar do outro, do externo, em detrimento do investimento interno, em especial do autoerotismo (JEAMMET, 1999aJEAMMET, P. (1999a) "As condutas bulímicas como modalidades de acomodação das desregulações narcísicas e objetais", in URRIBARI, R. (Org.) Anorexia e bulimia. São Paulo: Escuta.).
Na bulimia há uma intensificação do efeito da imagem especular, na medida em que algo do fragmentado no real se recompõe no nível da imagem, do ideal, do narcísico. Fundamentado no estádio do espelho de Lacan (1966/1998)LACAN, J.(1966/1998) "O estádio do espelho como formador da função do eu", in Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar., Recalcati (2004RECALCATI, M. (2004) La última cena: anorexia y bulimia. Buenos Aires: Mondadori.) afirma que a passagem de um "menos" (o corpo fragmentado) para um "mais" (a unidade realizada na imagem) tende a tornar-se essencial na bulimia. O "mais" da imagem assume uma espécie de valor absoluto para a bulímica. Através do cuidado da imagem ela cuida da própria castração mediante o domínio da imagem ideal.
As ideias da completude e da sensação de domínio ficam limitadas ao nível da imagem, incrementando o valor da imagem do corpo, segundo Recalcati (2004RECALCATI, M. (2004) La última cena: anorexia y bulimia. Buenos Aires: Mondadori.). Para o autor, isto ocorre devido às falhas na constituição da imagem narcísica do corpo, decorrentes do possível olhar crítico e superegoico da mãe frente à imagem especular do bebê, resultando na dificuldade de reconhecimento do bebê. Além disso, para Recalcati, não é por acaso que as mães de várias bulímicas vivam a própria imagem como narcisisticamente defeituosa e que determinem à filha a tarefa de completar com a imagem de seu corpo este defeito que lhes pertence. Assim, ao invés de permitir à criança o reconhecimento simbólico da imagem especular como própria, introduz-se uma ruptura da imagem.
Parece ser indissociável a relação entre imagem do corpo e bulimia. Para a compreensão das alterações da imagem do corpo e da bulimia, os autores da perspectiva psicanalítica destacam o estudo da relação precoce do bebê com os pais, e particularmente com a mãe. Além das experiências emocionais vivenciadas com pessoas significativas desde o início da vida, destacam as vivências libidinais decorrentes do desenvolvimento psicossexual, o narcisismo e a identificação.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O entrelaçamento do estudo da imagem do corpo e da bulimia mostra-se como uma possibilidade promissora para a compreensão desta situação clínica. Há uma importante articulação entre ambos, que se dá em pontos fundamentais do psiquismo, destacando-se o narcisismo, as relações objetais e a identificação.
A imagem do corpo, sob a perspectiva da psicanálise, é apresentada a princípio por Schilder como sendo a representação da história libidinal do sujeito. De modo complementar, Lacan contribui com a inclusão da imagem especular, afirmando que a imagem do corpo visto é representada na imagem especular enquanto corpo unificado. Dolto, por sua vez, desenvolve uma ampla e profunda proposição sobre a imagem do corpo, denominando de "imagem inconsciente do corpo" a representação das sensações vividas no corpo. Referente a esses pontos de vista, Nasio propõe que, além da representação da aparência e das sensações do corpo, referidas por Lacan e Dolto, respectivamente, a imagem do corpo representa as emoções inconscientes manifestadas através da expressão corporal pela via do comportamento do corpo. Outro acréscimo provém de Zukerfeld, que apresenta a imagem do corpo como uma estrutura psíquica que comporta os registros da forma, conteúdo e significado, sendo este último referido ao corpo erógeno.
Para o estudo da constituição da imagem do corpo, bem como de seu transtorno, é necessário compreender o desenvolvimento libidinal, o narcisismo, as relações objetais precoces e o processo de identificação. É da articulação desses fatores que resulta a constituição de uma imagem do corpo saudável ou uma alteração da mesma.
Na bulimia, estes mesmos fatores do funcionamento psíquico encontram-se envolvidos e afetados. Assim, os investimentos libidinais apresentam fixações importantes na oralidade, marcando a relação problemática com o alimento e sua significação. O narcisismo não foi bem constituído, por conta das falhas na relação primordial da mãe com seu bebê, culminando em baixa autoestima e em significativos problemas com a construção da identidade. Isto leva a bulímica a recorrer ao espelho e à imagem especular para se reencontrar, frente à sensação ameaçadora de se perder por completo, decorrente de expressivas falhas na identidade.
A relação do bebê com a mãe ocupa um lugar essencial na constituição da imagem do corpo, sendo de fundamental relevância na compreensão da dinâmica psíquica da bulimia. A mãe empática é capaz de desenvolver a função materna de modo adequado, acolhendo as angústias do seu bebê e promovendo a mediação simbólica. Assim, favorece ao bebê a construção da imagem do corpo tanto através das sensações vivenciadas no corpo como da aparência refletida na imagem especular.
Muitos autores, como Bruch, Dolto e Lacan concordam que dificuldades vivenciadas na relação precoce do bebê com sua mãe estão associadas à distorção da imagem do corpo e à bulimia. Significativas falhas da função materna conduzem o bebê a um estado de perturbação e desamparo, o que, por sua vez, não favorece o desenvolvimento da capacidade de representar as tensões e angústias. Com o advento da adolescência, a vivência de desamparo é reeditada e as angústias não elaboradas são desviadas para o corpo através da busca das sensações corporais. A compulsão alimentar e a purga funcionam como tentativas de dar um sentido à identidade não bem estabelecida. A ausência de controle alimentar se associa ao sentimento de falta de controle e de apropriação sobre o próprio corpo decorrente da percepção de uma necessidade de corresponder ou se ajustar à imagem idealizada pelos pais.
A relevância do investimento narcísico na constituição da imagem do corpo, bem como na relação do sujeito com a própria imagem é destacada por todos os autores discutidos antes - Schilder, Lacan, Dolto, Nasio e Zukerfeld. Da mesma forma, eles concordam que na bulimia a imagem do corpo e seu investimento narcísico têm seu valor superdimensionado por decorrência de falhas na constituição da imagem narcísica do corpo. A imagem do corpo, enquanto ideal narcísico, tem a função de tentar recompor o que é vivenciado como fragmentado no real. Desse modo, há uma primazia da exterioridade, por meio da excessiva importância do olhar e da imagem, evidenciando, por sua vez, a supressão da interioridade.
A busca da satisfação das tensões do corpo é imperiosa na bulimia e emerge frente às demasiadas dificuldades em lidar com os afetos. A preocupação com o corpo se direciona para a avaliação constante de sua imagem e para as sensações provocadas pela compulsão alimentar e pelo vômito. Há um superinvestimento no corpo, tanto enquanto imagem especular como através do ato bulímico. Ambos são investimentos externos ao psíquico que ocorrem por consequência de dificuldades na simbolização. A construção das vias psíquicas para o trâmite dos conteúdos psíquicos ficou prejudicada e desse tipo de falha na simbolização decorrem perturbações tanto relacionadas à imagem do corpo, como à bulimia.
Parece relevante salientar que os fatores que participam da construção da imagem do corpo e estão comprometidos quando há uma patologia da mesma coincidem com os que estão implicados na bulimia. Em ambas as perturbações encontram-se comprometidas a relação precoce do bebê com sua mãe, as vivências libidinais do desenvolvimento psicossexual, o narcisismo, a capacidade de simbolização e o processo de identificação. Desse modo, encontra-se uma estreita associação entre imagem do corpo e bulimia. Pode-se supor que esta coincidência de fatores psíquicos perturbados nas duas formas de distúrbios, da imagem do corpo e da relação com os alimentos, contribui para compreender a dificuldade comumente encontrada no tratamento da bulimia. Assim sendo, os fatores psíquicos destacados em ambas as perturbações podem ser pensados como perspectivas relevantes a serem consideradas na clínica da bulimia.
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Este artigo deriva da dissertação de mestrado da primeira autora intitulada "Imagem do corpo e bulimia: a imagem da jovem bulímica e a de sua mãe". Foi desenvolvida no Programa de Pós-Graduação de Psicologia Clínica da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), sob orientação da segunda autora.
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2
Rosita Esteves - resteves@ucs.br, Psicóloga, psicanalista, mestre em Psicologia Clínica pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Unisinos. Professora da Universidade de Caxias do Sul, UCS.
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3
Röhnelt Ramires - vramires@unisinos.br, Psicóloga, doutora em Psicologia Clínica, PUC-SP. Professora, pesquisadora e coordenadora do PPG em Psicologia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Unisinos.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Jul-Dec 2015
Histórico
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Recebido
19 Abr 2012 -
Aceito
21 Set 2012