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DO PRECONCEITO À INTOLERÂNCIA: QUANDO SE ROUBA A HUMANIDADE DO OUTRO

RESUMO:

Freud, apoiado em sua clínica, afirma o quanto é penoso para o homem viver em sociedade e como o uso da violência acaba sendo um modo de resolver este impasse. Propomos pensar esta questão a partir da passagem do narcisismo das pequenas diferenças que gera o preconceito desembocando na intolerância e segregação presentes no mundo contemporâneo. Para tanto, nos afastamos tanto da ideia de que traços e características inerentes ao psiquismo seriam responsáveis por determinadas ações, quanto da pretensão de situar no social a culpa por este estado de coisas.

Palavras-chave:
Psicanálise; preconceito; intolerância; humanidade; narcisismo.

ABSTRACT:

Freud, based on his clinical work, affirms how arduous it is for mankind to live in society and how the use of violence ends up to be a way of solving this impasse. We propose to think this issue by starting from the narcissism of minor differences that generates the prejudice leading to intolerance and segregation present in the contemporary world. To do so, we move away from both the idea that traces and characteristics inherent in the psyche would be responsible for certain actions, as well as the claim to place the blame for this state of affairs in the social.

Keywords:
Psychoanalysis; prejudice; intolerance; humanity; narcissism

A questão da violência tem sido um tema de discussão de vários campos do saber. Segundo nosso entender, esta questão se expressa no preconceito que aparece nos mais diversos grupos sociais, dando legitimidade à intolerância que, por sua vez, vai ganhando cada vez mais espaço na atualidade. Nestes termos consideramos que estas duas figuras preconceito e intolerância estabelecem uma relação de proximidade sem querer dizer com isso que estabeleçam uma relação de causa e efeito. Na mesma medida, conceber a falta de solidariedade entre os indivíduos como responsável por este estado de coisas também não nos parece uma justificativa para dar conta desta questão. É preciso um outro olhar sobre o assunto. Um olhar que não seja estigmatizante, moralista ou de caráter pedagógico, mas que possa abrir nossos horizontes em direção a um outro modo de lidar com a nossa humanidade.

Do ponto de vista da psicanálise, a despeito da figura da violência não pertencer à sua trama conceitual, é possível constatar sua presença no pensamento psicanalítico, aparecendo articulada a conceitos metapsicológicos e, também, no âmbito da clínica, como se toda a trama conceitual psicanalítica fosse uma tela que encobrisse a ideia de que a violência é algo intrínseco à condição humana. Já com respeito às ideias de preconceito e intolerância, podemos encontrar em seu edifício teórico aproximações mais efetivas.

No entanto, defender esta configuração pode acarretar um problema: o de atribuir à psicanálise a tarefa de explicar e justificar o porquê ou o como a violência tem lugar. Em artigo publicado há alguns anos (HERZOG, 2009HERZOG, R. Violência: um desafio para a pesquisa em psicanálise. Tempo Psicanalítico, v. 41(1), 2009. Rio de Janeiro.), buscamos mostrar em que medida a questão da violência se configura como um desafio para a psicanálise. Nele, vimos que, não obstante as várias leituras sobre a violência que impera nos tempos atuais e que não pode ser considerada uma prerrogativa de nossa época, parece haver um consenso acerca dos motivos psíquicos que poderiam explicar estes atos. Em outras palavras, seria possível justificar estes atos patologizando aquele que o comete, ou responsabilizar determinadas injunções da sociedade como a causa de nosso profundo mal-estar. Hoje, o que nos importa nesta apresentação é examinar qual contribuição a psicanálise pode oferecer diante do quadro atual de incremento do ódio e da impossibilidade de ouvir e até mesmo de suportar o outro. Trata-se então de partir de um registro bem diverso daquele que justifica a violência, seja como algo inerente à essência do ser humano, seja como uma reação a algo que lhe é externo. Pois o que se constata, com isto, é que em ambas alternativas, em última instância, estamos diante de uma naturalização da violência.

Antecipando nossa hipótese, consideramos que este quadro decorre do fato de se subtrair do indivíduo sua singularidade, situação que, mesmo não sendo uma prerrogativa de nossa época, certamente nos dias de hoje se mostra com muito vigor, conforme ressalta Mbembe (2014MBEMBE, A. Crítica da razão negra. Portugal, Antígona, 2014, 312 p.) através de sua discussão sobre o racismo. Segundo o autor, o racismo designa aquele indivíduo que deve ser eliminado por não se constituir como alguém que valha a pena ou, em outros termos, alguém que não é ninguém. Para defender nosso ponto de vista, elegemos trazer para a discussão duas figuras - preconceito e intolerância - concebendo-as como o solo, a base do que designaríamos como “o imperialismo da violência”, expressão bastante corrente para descrever o que se passa na atualidade no seio da nossa sociedade.

Feitas estas ressalvas, cabe enfatizar, conforme já apontado, o que está em jogo na atualidade para que as situações de violência tenham lugar: trata-se de subtrair do indivíduo sua humanidade. Somando-se a isso o fato de “se considerar” e “se decidir” que algumas vidas não têm qualquer valor (MBEMBE, 2014MBEMBE, A. Crítica da razão negra. Portugal, Antígona, 2014, 312 p.) Assim, estamos sendo roubados do ar que respiramos e nos mantém vivos.

Segundo a perspectiva psicanalítica, esta visão tem sentido se apoiada em uma consideração de Freud sobre o quanto é difícil para o homem viver em sociedade; consideração esta que atravessa toda sua obra, extraída de sua experiência clínica. Nestes termos, Freud insiste em apontar como é difícil conviver com o outro, acrescentando ainda o quanto é penoso se reconhecer a diferença, apesar do outro ser imprescindível para que o próprio sujeito venha a se constituir como tal. Veremos adiante como isto se dá.

No esteio desta concepção, Freud vai afirmar ser um princípio geral o fato de os conflitos de interesses entre os homens serem quase sempre resolvidos pelo uso da violência. Em um texto intitulado Por que a guerra? (Freud, 1932FREUD, S. A questão de uma Weltanschaaung (1933[1932]). ConferênciaXXXV. Rio de Janeiro: Imago, 1966. (Obras completas de Sigmund Freud, 22)), título da indagação que Einstein lhe fez na época, Freud diz estar certo de que o instinto agressivo, peculiar ao homem, opera em todas as instâncias - em tempos precedentes, nas guerras civis devido à intolerância religiosa e, em sua época (início século XX), devido a fatores sociais, por exemplo, nas perseguições a minorias raciais, dentre tantos outros. Porém, apesar disso, não se serve desta peculiaridade para situar ou justificar o motivo da violência neste instinto. Ou seja, não é da essência do homem ser violento.

O que ele reconhece aí, de saída, é que estamos diante de um problema social, o que, segundo nosso entender, é uma das mais relevantes inovações da psicanálise. Inovação que lhe dá, inclusive, a legitimidade necessária com relação às suas considerações a propósito da violência. Uma inovação que insere Freud como um pensador da cultura, na medida em que a psicanálise não desvincula o sofrimento psíquico vivido pelo indivíduo do contexto em que ele tem lugar. Isto fica claro no próprio título de um artigo de 1908FREUD, S. La morale sexuelle “civilisée” et la maladie nerveuse des temps modernes (1908). Paris: Presses Universitaire de France, 1969., A moral sexual ‘civilizada’ e a doença nervosa moderna: há uma relação direta entre ambas. Concebendo que o psiquismo só se constitui na relação com o outro e que o sujeito não é uma mônada fechada, não havia como Freud se restringir a tecer considerações sobre problemas individuais. Para ele, o sujeito é, antes de tudo, um sujeito social. E, neste registro, faz todo o sentido quando diz, em outro momento de sua obra, que não há uma divisão rígida entre a psicologia individual e a psicologia social: “Na vida psíquica do indivíduo considerado isoladamente o outro intervém regularmente como modelo, objeto, suporte ou adversário, por este fato a psicologia individual é ao mesmo tempo e simultaneamente uma psicologia social” (FREUD, 1921/1997FREUD, S. Psicología de las masas y análisis del yo (1921). Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1976. (Obras completas, 18), p. 124). O outro é um personagem importante e imprescindível nesta dinâmica.

Em outro trabalho, (HERZOG, 2009HERZOG, R. Violência: um desafio para a pesquisa em psicanálise. Tempo Psicanalítico, v. 41(1), 2009. Rio de Janeiro.), intitulado Violência: um desafio para a pesquisa em psicanálise, analisamos como, no processo de subjetivação, está implicada a questão da violência. Feitas estas considerações preliminares, propomos mostrar como atos violentos têm lugar a partir de um processo que vai do preconceito à intolerância, começando pela noção de preconceito. Entre os vários sentidos possíveis para este termo, dois nos parecem esclarecedores: (1) qualquer opinião ou sentimento concebido sem exame crítico; e (2) sentimento hostil, assumido em consequência da generalização apressada de uma experiência pessoal ou imposta pelo meio. Em qualquer desses dois sentidos, a definição se refere a um determinado modo do sujeito se comportar. O perigo implicado nesta atitude é o de, ao tentar compreender/explicar ou justificar as motivações e as raízes que levam a este comportamento, acabar-se por incorrer em um duplo engano. O primeiro é o de se considerar que traços e características inerentes ao psiquismo humano são os responsáveis para não dizer os “culpados” por determinadas ações; o que, em muitas leituras, vai ser designado como traços de caráter. O segundo é o de situar no social a culpa por atitudes preconceituosas, seja porque a sociedade seria por demais repressora, seja por seu oposto por demais libertária ou colocando a culpa nos avanços da tecnologia que tomaram conta do mundo, impedindo encontros, criando desencontros, e assim por diante...

Qualquer dessas alternativas se mostra problemática, e isto porque parecem ter como objetivo principal apontar um culpado. E, quando de um lado se tem um culpado, de outro se termina tendo, necessariamente, uma vítima. Nos dias de hoje, esta relação algoz/vítima tem tomado as páginas dos jornais; somos levados, muitas vezes de forma ingênua, não só a nos posicionar como também a defender com unhas e dentes o que acatamos ser “o lado da verdade”, sem grandes considerações a respeito. Nesta dinâmica, a vitimização funciona como justificativa para quase todo tipo de ação - seja ela de ordem pacífica ou violenta. Nasce, aí, o preconceito. Em outras palavras, nasce um sentimento ou uma opinião fruto da luta entre duas forças opostas sociedade x indivíduo, ou, utilizando o repertório psicanalítico, da oposição entre pulsões de auto-conservação e pulsões sexuais. Em suma, o preconceito nasce de um conflito entre forças antagônicas.

Na trama conceitual da psicanálise, o conflito que se estabelece entre as pulsões (FREUD, 1905/1972FREUD, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905). Rio de Janeiro: Imago, 1972. (Obras completas de Sigmund Freud, 7)) vai receber, em 1914, uma inflexão decorrente da discussão acerca de pacientes designados como “parafrênicos”. Pacientes que se mostraram refratários, “inacessíveis à influência da psicanálise e [que] não podem ser curados por nossos esforços” (FREUD, 1914/1974FREUD, S. Sobre o narcisismo: uma introdução (1914). Rio de Janeiro: Imago, 1974. (Obras completas de Sigmund Freud, 14), p. 90).

A fim de manter sua concepção acerca de uma energia psíquica sexual (libido), bem como da ideia de conflito psíquico, Freud diz que, na histeria e na neurose obsessiva, o indivíduo, em função de seu sofrimento, mesmo que desista de “sua relação com a realidade” (idem) não abre mão das suas relações eróticas, mantendo-as na fantasia, ensejando o conflito entre o desejo e o proibido. Já ao se tratar dos casos de demência ou esquizofrenia, o paciente “ao retirar a libido de pessoas e coisas do mundo externo”, volta a libido para o próprio eu, “dando margem a uma atitude que pode ser denominada de narcisismo” (ibidem, p. 91) Discorrendo sobre esta distinção, Freud acaba por defender a ideia de que “há uma catexia original do ego, parte da qual é posteriormente transmitida a objetos,...” (ibidem, p. 92). E, com isso, além de propor uma oposição entre a libido do ego e a libido objetal mantendo assim o conflito psíquico que considerava imprescindível para sustentar sua trama , eleva o termo narcisismo à condição de conceito, argumentando ser necessário “que algo seja adicionado ao auto-erotismo - uma nova ação psíquica - a fim de provocar o narcisismo” (ibidem, p. 93).

Com esta inflexão, as forças que entram em conflito ganham uma outra configuração, permitindo que possamos redesenhar um outro modo de conceber o preconceito. Retomemos então, a afirmação freudiana de que viver em sociedade acarreta um grande mal-estar, acabando por estabelecer, precipitadamente e de forma maniqueísta, uma oposição entre individuo e sociedade; e colocando, em um ou em outro, a responsabilidade por este mal-estar que geraria o preconceito. De acordo com o pensamento freudiano, o indivíduo tem de si próprio uma imagem unificada que lhe confere uma identidade, que vai ser designado como narcisismo. A partir deste narcisismo, o que difere de mim é vivido como uma ameaça à minha integridade. E isto se dá em decorrência de ser precisamente a partir do outro que posso construir a meu respeito uma imagem unificada. Daí busco, após esta construção, expulsar de mim tudo o que poderia manchar essa imagem unificada. Apoiados na noção cunhada por Freud em 1918 (O tabu da virgindade), de “narcisismo das pequenas diferenças”, podemos dizer que nasce, assim, o preconceito. Em outras palavras, é justamente nas pequenas diferenças entre os indivíduos, a despeito da semelhança em todo o resto, que se fundamentam os sentimentos de estranheza e hostilidade entre eles.

Resumindo, trata-se, aí, da relação do indivíduo com o seu “semelhante”. E o narcisismo das pequenas diferenças, neste contexto, vai ter como função garantir/preservar a unidade do Eu (REINO; ENDO, 2011REINO, L. M. G.; ENDO, P. C. (2011) Três versões do narcisismo das pequenas diferenças em Freud. Trivium, v. 3, n. 2, jul./dez. 2011, Rio de Janeiro.).

Em 1921, no texto Psicologia das massas e análise do Eu, Freud vai se servir de uma parábola de Schopenhauer (1851SCHOPENHAUER, A. O dilema do porco-espinho (1851). In: SCHOPENHAUER, A. Parerga und Paralipomena. Zurique: Haffmans, 1988./1988) sobre a sociedade de porcos-espinhos para explicitar o narcisismo das pequenas diferenças. Vale a pena relembrar o dilema dos porcos-espinhos tal como descrito pelo filósofo: em um dia gelado de inverno os membros desta sociedade se juntaram com o objetivo de se aquecer para não morrer de frio. Porém, depois de um curto espaço de tempo, começaram a sentir os espinhos uns dos outros; para não se ferirem, foi preciso que se distanciassem, tornando então a sentir frio. Quando a necessidade de se aquecer os fez voltarem a se juntar, a mesma situação teve lugar. Assim, após esta dupla desgraça se repetir, eles acabam por encontrar uma solução: estabelecer um distanciamento moderado que lhes permitisse passar o melhor possível (ou o menos pior possível) entre as duas situações. Nem tanto frio, nem tantas espetadelas.

Freud pretendeu, com essa parábola, apontar o modo como os seres humanos se comportam afetivamente entre si. Se, por um lado, o ser humano precisa do outro para se constituir (para se aquecer), em contrapartida, este outro pode feri-lo por compartilhar de características tão semelhantes às que o próprio sujeito reprova e busca expulsar de si; lembrando que o inverso também pode ocorrer, isto é, da mesma forma, ele próprio pode ferir o outro, acarretando com isso ficar sem ninguém para “aquecê-lo”. Freud depreende desta parábola que, em quase toda relação sentimental íntima e prolongada entre duas pessoas (matrimônio, amizade, vínculo entre pais e filhos), vamos encontrar, além de sentimentos positivos, um precipitado de afetos de aversão e hostilidade; precipitado que foi vivido em algum momento da nossa formação, e que volta a se repetir. Tais afetos só não são percebidos porque são recalcados. Ou seja, este precipitado é efeito de um processo que visa manter no inconsciente ideias e representações que foram rechaçadas da consciência por causar desprazer ou, acompanhando a parábola, porque, se não forem rechaçadas, não terei como me aproximar dos outros e me esquentar. Mas como tudo que é recalcado volta a pressionar para vir à tona, insiste em emergir e, de fato, o faz de forma dissimulada, através das formações do inconsciente (sonhos, sintomas, atos falhos, chistes e as lembranças encobridoras), a hostilidade vai se apegar justamente na pequena diferença do outro para vir à tona. Porém, qual é esta pequena diferença? Afinal, somos todos porcos espinhos... Em uma instância, são o que queremos, de nós, rechaçar.

No desenvolvimento de suas considerações, Freud vai radicalizar mais ainda a situação do narcisismo das pequenas diferenças. Vai observar que, diante de certas situações, os espinhos interpessoais parecem sumir. Ou seja, esta aversão mútua, esta hostilidade, é suspensa. Isto ocorre na formação das massas - nela, os indivíduos se conduzem como se fossem homogêneos, suportam a especificidade/a diferença do outro, igualam-se a ele e não sentem repulsa por ele (são irmãos indiferenciados). Onde está, então, o narcisismo das pequenas diferenças? Como manter o amor de si quando esses espinhos interpessoais parecem sumir? Estaríamos falando de um sentimento de amor entre todos? Freud discorda. De fato, estes espinhos acabam por “retornar” nas relações intergrupais. Vários exemplos deixam isso transparecer: etnias aparentadas que se repelem; famílias que se unem por casamento, em que uma sempre se acha melhor que a outra; o inglês que fala mal do escocês; e por aí vai (FREUD, 1921/2011).

Mas também se verifica que, em outras condições, como quando ocorrem as grandes catástrofes, a hostilidade é suspensa: a fome, por exemplo, pode agrupar sujeitos por mais diferentes que sejam entre si (FREUD, 1912/2006FREUD, S. Sobre la más generalizada degradación de la vida amorosa (1912). Buenos Aires: Amorrortu, 2006. (Obras completas, 11)), o que mostra como a solidariedade humana só aparece na base da pressão e da necessidade. Aos que creem que o homem, em sua essência, é bom por natureza, Freud retrucaria com uma interrogação: será mesmo?

Em O mal-estar na cultura (FREUD, 1930/1976FREUD, S. Psicología de las masas y análisis del yo (1921). Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1976. (Obras completas, 18)), ao refletir se bondade ou maldade seriam inerentes ao humano, Freud aborda novamente o narcisismo das pequenas diferenças. Neste momento, ele afirma que o ser humano possui dois impulsos básicos: os impulsos sexuais e os impulsos destrutivos, e defende a ideia de que o homem precisa se submeter a uma dupla renúncia: à realização imediata das pulsões sexuais e às pulsões destrutivas (pulsão de morte). Com relação a estas últimas, considera que existem algumas situações nas quais a tendência à agressão pode ser “descarregada”; e, dentre as situações que enumera, refere-se à questão do narcisismo das pequenas diferenças.

Distintamente do que vinha falando com relação ao narcisismo das pequenas diferenças, Freud, aqui (FREUD, 1930FREUD, S. El malestar en la cultura (1930). Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1976. (Obras completas, 21)), não está se referindo à unificação do eu ou de um grupo, como nos textos anteriores (FREUD, 1918; 1921FREUD, S. Psicología de las masas y análisis del yo (1921). Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1976. (Obras completas, 18)). Não é da unidade do eu ou do grupo que se trata. O que passa a ser colocado em relevo é a exclusão, a rejeição do outro..., chegando a considerar de um grupo poder se unir pelo amor, desde que restem outros indivíduos para que se exteriorize a agressividade. Ou seja, o que une não é mais a necessidade de se aquecer.

Assim, em 1921, o grupo se une em torno de um objeto que é colocado como um ideal, fazendo com que uns se identifiquem com os outros (como irmãos indiferenciados). Ou seja, o conjunto de indivíduos possui um líder religioso, político etc. - líder esse que passa a ser idealizado. Já em 1930, a união dos indivíduos entre si vai funcionar como um pretexto para o exercício da destrutividade. A união vai permitir a hostilização dos que não pertencem ao grupo, em função de uma tendência destrutiva.

Antes de passarmos para a questão da intolerância como efeito gerado pelo preconceito, é importante apontar quais são os marcadores da diferença que se expressam neste narcisismo das pequenas diferenças. Dentre os que mais vemos operando, podemos apontar a sexualidade, o gênero, a classe, a raça, a religião. Marcadores que vão funcionar, na perspectiva da psicanálise, com o objetivo maior de preservar as identidades, não permitindo que se sintam ameaçadas.

Um outro aspecto marcante: ao falarmos da dificuldade de o homem se relacionar com o diferente, cabe lembrar sempre se tratar de pequenas diferenças, e não de diferenças radicais; traços da diferença que, no fundo, vão remeter a algo do próprio sujeito. Freud vai chamar de “estranho familiar”, um secretamente familiar que foi recalcado e retorna distorcido (FREUD, 1919/1996FREUD, S. O Estranho (1919). Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Obras completas de Sigmund Freud, 17)). Ilustrando o que quer dizer com a sensação de estranhamento que nos acomete, Freud conta sua própria experiência: ao se ver inadvertidamente refletido em um espelho, pensa tratar-se de outra pessoa e, pior ainda, imediatamente antipatiza com a figura que vê.

A partir destas considerações, constatamos que o narcisismo das pequenas diferenças cria impasses com relação à aceitação do outro a dita diferença que, via de regra, é bem mais semelhante e familiar a nós do que nos é dado supor.

Mas o que pode decorrer daí? O que a coesão de características e traços comuns causa ou pode causar quando o que importa é juntar-se a seus pares? Tomemos a formação de um grupo em torno de uma bandeira comum ou de características semelhantes como, por exemplo, o caso de um grupo de mulheres lutando contra o patriarcado. Este grupo vai escolher aferrar-se a uma luta específica, secundarizando outros aspectos como alvo de sua luta. Questões que muitas vezes poderiam vir a contribuir para o sucesso de sua própria luta, tais como o colonialismo, o racismo ou o capitalismo. E frequentemente sem perceber o quanto essas questões estão claramente conectadas à sua bandeira. Outro exemplo: o de um sindicato que pretende lutar contra o capitalismo deixando de lado o racismo, o patriarcado, e outros aspectos que têm relevo neste tipo de luta.

Diante disso, fica a indagação: estes grupos não acabariam por gerar um individualismo exacerbado, provocando, com isso, um narcisismo das pequenas diferenças? Todavia, é importante marcar: não é que a luta das mulheres contra o patriarcado seja ilegítima, mas é imprescindível levar em conta outras lutas com as quais esta luta tem afinidades. A este respeito, Judith Butler (2006BUTLER, J. Vida precária: el poder del duelo y la violência. Buenos Aires. Paidos, 2006, 192 p.) considera que a luta das mulheres só tem sentido se também se articular com a luta dos negros, dos homossexuais etc., o que ela designa como devendo ter uma perspectiva interseccional - na qual se sugere que diferentes categorias interagem em níveis múltiplos e simultâneos.

Optar por uma luta específica nos parece ser da ordem de um essencialismo da diferença; ou seja, ao se levar em conta um marcador específico da diferença, acaba-se criando um grupo identitário, grupo este que pode se sentir vitimizado, devotando ao outro um ódio, um ressentimento muito próximo daquele que seus próprios membros sofreram.

Ora, conforme salienta Mbembe (2014MBEMBE, A. Crítica da razão negra. Portugal, Antígona, 2014, 312 p.), o desejo de diferença, ao levar à criação de um grupo, emerge de uma experiência de discriminação, de exclusão; sua formação se deve justamente por seus membros não terem sido incluídos, reconhecidos como tendo direitos. O estabelecimento deste grupo não significa necessariamente um “querer ter poder”, “querer acabar com o outro”, gerando um individualismo exacerbado; seu propósito pode ter a ver com querer ser protegido, querer se preservar de um perigo. Neste sentido, para Mbembe, é válido proclamar a diferença, desde que esta proclamação se configure como um projeto no qual a humanidade de cada um não é roubada. É justamente aí que pode residir a passagem do preconceito para a intolerância - quando se rouba a humanidade do outro, pois se passa a desconsiderar o outro; a vida do outro passa a não ter valor; entretanto, ainda assim, ela continua sendo vista como uma ameaça à minha vida na medida em que ela reivindica um lugar, um direito, e isto é impossível de se tolerar.

Assim, quando se radicaliza o narcisismo das pequenas diferenças nestas práticas de exclusão, estigmatização, inferiorização e/ou discriminação, desembocamos na intolerância, intolerância em relação à alteridade. Apesar de a intolerância se fundir na impossibilidade de convívio do sujeito e do grupo social com a diferença do outro, não é lícito dizer que tudo se resolve na simples aceitação da diferença do outro. O clichê “Viva a diferença!” é tão perigoso quanto o seu oposto, “Somos todos iguais!”. O que realmente está em jogo é algo de outra ordem: a do paradoxo existente entre o que sou e o que o outro é; o outro é um estranho familiar, o outro é um eu. Daí podermos dizer que a diferença que ameaça, que incomoda, é justamente a diferença que cada um carrega dentro de si próprio. O diferente é o estrangeiro no interior de cada um de nós.

Nesta perspectiva, podemos registrar que, na atualidade, o movimento nascido da necessidade de tolerância a todas as diferenças, o famoso “politicamente correto”, contrário ao racismo e ao fascismo, está a ponto de se tornar uma nova modalidade de fundamentalismo.

De tudo o que dissemos até aqui, parece ficar patente que preconceito e intolerância são ideias bastante controversas: preconceito não é algo inato nem determinado pelos ditames da sociedade; ser tolerante pode ser tão perigoso quanto ser intolerante. Os preconceitos que, de um lado, parecem existir em nome da preservação da identidade, podem, quando exacerbados, se tornar bastante ameaçadores à própria preservação; por sua vez, a tolerância exacerbada pode acabar se transformando em uma intolerância ímpar.

Resta abordar o aspecto clínico que caracteriza a contribuição psicanalítica a esta questão. Como lidar com situações nas quais impera a intolerância, fruto de um preconceito agravado? Ou com circunstâncias nas quais um excesso de tolerância desemboca em uma submissão total, anulando o sujeito? Todas situações que podem redundar em violência. Quais antídotos utilizar? De antemão, sabemos que a psicanálise não possui um remédio para isso. Mas, quando se diz que a psicanálise tem como objeto de investigação os fenômenos inconscientes, e que o processo analítico nos leva a reconhecer em nós mesmos essa zona de desconhecimento remetida aos desejos inconscientes, acreditamos que um grande passo está dado.

O preconceito nasce da dificuldade de vislumbrar e aceitar que não somos senhores em nossa própria casa. Sendo acossados por este não-saber, ficamos sem alcançar tanto do que seremos capazes, quanto do que o outro é capaz. Neste sentido, é imprevisível o que pode vir de nós ou do outro, podendo ser deveras estranho e destrutivo.

Este é outro modo de dizer o quanto somos vulneráveis. O outro me causar dano, gerando em mim medo e dor, é uma realidade, mas não significa necessariamente que a reação a isto deva ser a intolerância em relação a este outro e, consequentemente, praticar um ato de violência como represália é o mais pertinente ou natural. Significa, sim, que minha vida depende do outro; de outros que podem me ferir, assim como posso feri-los, e não há nada que se possa fazer para evitar este risco. Justamente aí, consiste minha humanidade e a humanidade do outro.

A luta a ser travada deve ser a luta pelo reconhecimento de que a existência do sujeito (tanto a minha quanto a do outro) é uma existência vulnerável. Reconhecimento que diz respeito a ser visto, ouvido, considerado, respeitado. Ser reconhecido na sua condição de sujeito, na sua humanidade. Isso é bem diverso, mais difícil e mais complexo do que reconhecer a identidade do outro. Na contramão desta perspectiva, este é o trabalho que as políticas identitárias contemporâneas têm feito: reconhecer as identidades sexuais, étnicas, culturais, e terminando por atribuir a condição de vítima a estas identidades. Mas é possível abordar essas questões com uma outra visada: quando se promove as cotas raciais e sociais, por exemplo, seja nas universidades ou no mercado de trabalho, não se trata de reconhecer a identidade racial ou social de alguém; o que é pertinente e deve estar aí implicado é a necessidade de uma restituição e reparação da humanidade daqueles indivíduos. O que foi negado, nestes casos, foram as mesmas oportunidades. Esta é a raiz da intolerância: confere-se menos oportunidades em consequência de conceber o outro como menos que humano (quase um não-humano, um bárbaro, um primitivo).

Para Judith Butler (2006BUTLER, J. Vida precária: el poder del duelo y la violência. Buenos Aires. Paidos, 2006, 192 p.), o processo de reconhecimento da alteridade do outro se dá a partir do reconhecimento de uma alteridade de si, de sua própria vulnerabilidade. Por isso, não basta ver o outro como diferente, pois este diferente pode ser interpretado como estrangeiro, tornando-se odiado, execrado, ameaçador. Trata-se de ver o diferente em mim mesmo. Todas as vezes que sou intolerante com o outro estou negando tanto a minha vulnerabilidade quanto a do outro. Nestes termos, pensar o laço social laço entre os porcos-espinhos que somos como um laço pela vulnerabilidade pode se constituir como um antídoto. Esta é a condição para se pensar uma via possível de convivência.

Pautados por esta perspectiva, nossa condição de psicanalistas não nos conduz, na clínica, a varrer do campo transferencial nossos desejos e nossos afetos, quaisquer que sejam eles. Reconhecer o preconceito no humano é dar existência a nossa humanidade. Cabe aqui uma ressalva importante: reconhecer não significa, de modo algum, aceitar o que temos diante de nós. Concluo com as palavras de Butler: “Demandar reconhecimento ou oferecê-lo não significa pedir que se reconheça o que cada um já é. Significa invocar um devir, instigar uma transformação, exigir um futuro” (BUTLER, 2006BUTLER, J. Vida precária: el poder del duelo y la violência. Buenos Aires. Paidos, 2006, 192 p., p. 72).

Referências

  • BUTLER, J. Vida precária: el poder del duelo y la violência. Buenos Aires. Paidos, 2006, 192 p.
  • FREUD, S. A questão de uma Weltanschaaung (1933[1932]). ConferênciaXXXV. Rio de Janeiro: Imago, 1966. (Obras completas de Sigmund Freud, 22)
  • FREUD, S. El malestar en la cultura (1930). Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1976. (Obras completas, 21)
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  • FREUD, S. O Estranho (1919). Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Obras completas de Sigmund Freud, 17)
  • FREUD, S. O tabu da virginidade (1917). Rio de Janeiro: Imago, 1974. (Obras completas de Sigmund Freud, 11)
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Set 2019
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    28 Maio 2019
  • Aceito
    10 Set 2019
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