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A PRÁTICA DAS ESCARIFICAÇÕES EM MOÇAS: UMA ABORDAGEM PSICANALÍTICA DAS QUESTÕES COM A FEMINILIDADE

The pratice of scarification performed by female teenagers: a psychoanalytical approach to the questions about feminity

RESUMO:

O trabalho articula, a partir da teoria psicanalítica, as possíveis questões implicadas na prática de escarificações realizada por três adolescentes do sexo feminino. Nesse sentido, dois aspectos serão norteadores: a relação mãe e filha, e questões relativas à sexualidade feminina. Além disso, serão feitas articulações da prática das escarificações com o conceito psicanalítico de “pulsão de morte”.

Palavras-chave:
sexualidade; feminilidade; escarificações; adolescência; pulsão

Abstract:

The present paper discusses the practice of scarification performed by three female teenagers. This experience, and its issues, will be articulated to a psychoanalytic background. Thus, two aspects will be guiding: the relationship "mother and daughter" and the matters linked to the feminine sexuality. Furthermore, articulations of the practice of scarification will be made with the psychoanalytic concept of "death drive".

Keywords:
sexuality; femininity; scarification; adolescence; drive

As escarificações realizadas durante o período da adolescência têm sido uma queixa recorrente nos serviços de saúde em geral. Alguns autores afirmam que essa é uma prática realizada majoritariamente por mulheres, como forma de lidar com suas angústias e conflitos (WITHLOCK et al., 2006WHITLOCK, J. L. et al. The virtual cutting edge: the internet adolescent self-injury. Developmental Psychology, n. 3, 2006. Disponível em:<Disponível em:http://www.selfinjury.bctr.cornell.edu/publications/2006_2.pdf >. Acesso em: 12 jul. 2016.
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; ADLER; ADLER, 2011ADLER, P. A; ADLER P. The tender cut: inside the hidden world of self-injury. New York: New York University Press, 2011.).

O conceito de escarificação pode ser definido como um “[...] ato através do qual o sujeito faz um corte intencional na pele, por meio de um instrumento cortante, no intuito de deixar uma cicatriz no corpo, sem existir, necessariamente, a inscrição de uma imagem ou de outro elemento” (JATOBA, 2010JATOBÁ, M. O ato de escarificar o corpo na adolescência: uma abordagem psicanalítica. Dissertação de Mestrado, Instituto de Psicologia, Universidade Federal da Bahia, 2010., p. 14).

Os estudos antropológicos demonstram que os cortes não estão referenciados a nenhuma prática de arte corporal, tal como body modifications ou tatuagens, que visam conferir certo caráter estético ao corpo. Segundo a opinião de Le Breton (2010)LE BRETON, D. Escarificações na adolescência: uma abordagem antropológica. Horizontes Antropológicos, ano XVI, n. 33, 2010. Disponível em: <Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ha/v16n33/03.pdf >. Acesso em: 14 jul. 2016.
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, os sujeitos que os realizam também não possuem a intenção de cometer suicídio, e, sim, de aplacar alguma angústia ou sofrimento.

As primeiras publicações sobre este fenômeno foram feitas por psiquiatras, há cerca de setenta anos, relatando a presença de escarificações em pacientes com diagnóstico de psicose. Conforme o ponto de vista psiquiátrico, as escarificações eram entendidas apenas como um sinal do transtorno e, portanto, indicadoras de uma determinada doença no campo da saúde mental. À medida que os anos se passaram, verificou-se que esse ato está, diferentemente do que foi apontado anteriormente, vinculado também à estrutura clínica da neurose (FERREIRA, 2014FERREIRA, J. Mensagens sobre escarificações na internet: um estudo psicanalítico. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Estadual de Maringá. 2014.).

As pesquisas mais recentes também apontam para o fato de que, em sua maioria, são adolescentes do sexo feminino que tendem a fazer uso dessa prática (ADLER; ADLER, 2011ADLER, P. A; ADLER P. The tender cut: inside the hidden world of self-injury. New York: New York University Press, 2011.; JATOBÁ, 2011JATOBÁ, M. O ato de escarificar o corpo na adolescência: uma abordagem psicanalítica. Dissertação de Mestrado, Instituto de Psicologia, Universidade Federal da Bahia, 2010.; WITHLOCK, 2006WHITLOCK, J. L. et al. The virtual cutting edge: the internet adolescent self-injury. Developmental Psychology, n. 3, 2006. Disponível em:<Disponível em:http://www.selfinjury.bctr.cornell.edu/publications/2006_2.pdf >. Acesso em: 12 jul. 2016.
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). Contudo, as poucas pesquisas existentes sobre o tema estão distribuídas em diferentes campos do saber, tais como a psicanálise, a sociologia, a antropologia e a psiquiatria, revelando, portanto, pontos de vista distintos.

A partir de alguns encontros realizados com três adolescentes do sexo feminino que promoviam cortes intencionais na própria pele, percebeu-se que, apesar de alguns temas se repetirem em suas falas, como a relação mãe e filha e as questões com a própria sexualidade, cada uma delas se posiciona de forma singular diante de tais temas.

Esse artigo busca delimitar as especificidades da sexualidade feminina de acordo com a psicanálise, relacionando-as com a prática das escarificações. Isso porque, nesses três casos, essas questões apareceram atreladas umas às outras. Vale ressaltar que a maneira como as adolescentes respondem às questões com a feminilidade é própria de cada uma delas, e as singularidades serão circunscritas na medida em que os casos forem abordados. Entretanto, a recorrência da prática das escarificações chama a atenção e é de fato o que nos move na presente pesquisa. Se considerarmos as escarificações no nível dos sintomas, a explanação feita por Freud na Conferência XVII lança luz sobre a questão. Diz ele:

(...) mal se pode pensar que haja qualquer distinção fundamental entre um tipo de sintoma e outro. Se os sintomas, isoladamente, são tão dependentes das experiências pessoais do paciente, resta a possibilidade de os sintomas psíquicos remontarem a uma experiência que é típica em si mesma - comum a todos os seres humanos. (FREUD, 1917FREUD, S. O sentido sexual dos sintomas (1917). Rio de Janeiro: Imago, 2006. (Ed. standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 16)/2006FREUD, S. Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental (1911). Rio de Janeiro: Imago, 2006. (Ed. standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 12), p. 279).

As escarificações remetem ao primitivismo da cultura humana, estando presentes em diversas formas de ritos de passagem. Ribeiro (2007RIBEIRO, M. R. Primitivos modernos: a modificação corporal e o retorno ao corpo animal. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 2007.) contribui para a contextualização dessa e de outras práticas de modificação corporal nos dias atuais, sob a luz da psicanálise:

Apesar de sua antiguidade, de estarem associadas a rituais de passagem e de terem pertencido, algumas delas, a determinados grupos ao longo da história, pensa-se que atualmente tais práticas encontram-se disseminadas por todos os grupos sociais, tendo perdido, em parte, seu caráter ritual. Elas indicam um desejo de eterno retorno mítico à natureza perdida em função da inscrição da linguagem no corpo e se colocam como esboço de um corpo em contínuo ajuste de sua imagem, sobretudo quando falta palavra (no seu sentido significante) que defenda contra uma intensa demanda do Outro. (...) mas fundamentalmente elas evidenciam nosso corpo próprio naquilo que sempre resta de um Real a nos indagar como enigma, além de apontar novas formas de subjetivação na atualidade. (RIBEIRO, 2007RIBEIRO, M. R. Primitivos modernos: a modificação corporal e o retorno ao corpo animal. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 2007., p. 7).

A densa e instigante citação acima leva a pensar, entre outras coisas, que a contemporaneidade mantém seu lastro com manifestações culturais de priscas eras. A psicanálise tem se debruçado sobre o aparecimento dos chamados novos sintomas, que seriam manifestações de novos sujeitos. As escarificações, tomadas como manifestações subjetivas, ganham lugar há cerca de 70 anos, conforme apurado nessa pesquisa, mas também remetem a práticas rituais primitivas. Uma via de abordagem da questão é encontrada nos escritos de Jean-Pierre Lebrun (2008LEBRUN, J. P. A perversão comum: viver juntos sem outro. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2008.), que procura investigar o estatuto dos “neo-sujeitos”:

O que acontece com nosso neo-sujeito na medida em que são precisamente as forças que até ontem obrigavam a medir o tamanho da alteridade que são hoje questionadas, até mesmo decretadas obsoletas? Na falta de poder contar com um apoio - o lugar de exceção - para efetuar a renúncia necessária para dar seu lugar ao outro (...). (LEBRUN, 2008LEBRUN, J. P. A perversão comum: viver juntos sem outro. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2008., p. 295).

A partir da ideia de que a função paterna esteja no banco dos réus na contemporaneidade, sendo negado tudo que a ela remeta, Lebrun indica como resultado a dificuldade dos sujeitos em lidar com a diferença real trazida pelo outro. O terceiro simbólico que permitiria suportar tais diferenças não estaria operando como outrora. Sem entrar nas várias nuances a que essa discussão conduz, é interessante notar que todos os fragmentos clínicos aqui abordados indicam que o corte real na pele cumpre a função de substituir a separação simbólica que não parece comparecer, marcando o obscurecimento da alteridade na relação feminina mãe/filha.

Em seu primeiro contato com o psicanalista, Ana (nome fictício) diz que se corta desde o início da adolescência. Ao falar sobre o seu sofrimento e o ato de se cortar, expõe algumas das dificuldades encontradas no “tornar-se mulher”, que também acabam por se manifestar na relação com a sua mãe. Relata que seu sofrimento tem a ver com o fato de ter tido que tornar-se mulher muito cedo, sem a ajuda de ninguém, segundo suas palavras. Suas queixas são de que sua mãe nunca lhe falou sobre os temas que perpassam a feminilidade.

Em algumas de suas falas, a mãe aparece como aquela que poderia ter lhe transmitido algo nesse sentido - “ela poderia ter conversado mais comigo” -, mas não o fez, possivelmente porque "não se interessava muito" - diz a adolescente. Outro ponto interessante é que a jovem começou a se cortar no início da adolescência, quando encontrou dificuldades para lidar com a sexualidade e as questões que ela impõe a todo sujeito como, por exemplo, a assunção de uma orientação sexual: “Quando eu descobri que eu era homossexual mesmo, eu não pude contar para ninguém, minha família não aceitava. Nem eu aceitava no começo, até tentei gostar de homem, mas não consegui. Nessa época que eu comecei a me cortar [grifo nosso]”.

Ana conta que a sua orientação sexual é também o principal motivo das brigas entre ela e a sua mãe. A adolescente diz que hoje em dia não tem nenhuma questão quanto ao fato ser homossexual, e é a mãe quem agora não aceita esse fato, passando a recriminá-la constantemente por isso.

Cabe ressaltar que neste, assim como nos demais casos, os encontros foram em número bastante reduzido devido à característica do trabalho. Ainda assim, algumas observações podem ser feitas a partir do exposto. Pode-se afirmar, por exemplo, que a mãe da adolescente, ao contrário do relato desta, manifesta, sim, interesse pelas questões relativas à sexualidade da filha, mas o faz pela via da reprovação e da recusa, o que se torna tema privilegiado dos conflitos entre elas. A demanda do Outro materno, a quem é suposto poder responder sobre o feminino, se faz aqui fonte de angústia para a moça, que responde com os cortes no corpo, talvez numa tentativa de separar-se desse Outro no Real do corpo, visto que a separação simbólica se encontra dificultada.

A relação da menina com a mãe é abordada por Freud nos estudos sobre o feminino, mas, para chegar a esse ponto crucial da pesquisa, é necessário atravessar ainda que brevemente o percurso da sexualidade infantil. No início das suas teorizações a respeito da sexualidade infantil, Freud acreditava que houvesse uma simetria inversa no que concerne ao desenvolvimento sexual de ambos os sexos. No caso do menino, o primeiro objeto de amor seria a mãe, e, para a menina, seria o pai quem ocuparia esse lugar específico. Sobre as escolhas objetais - influenciadas pelo primeiro vínculo erótico da infância - no período da puberdade, Freud diz:

[...] o primeiro enamoramento sério de um rapaz, como é tão freqüente, recai sobre uma mulher madura, e o da moça, sobre um homem mais velho e dotado de autoridade, já que essas figuras lhes podem revivescer as imagens da mãe e do pai. (FREUD, 1905FREUD, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905). Rio de Janeiro: Imago, 2006. (Ed. standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 7)/2006, p. 215).

No entanto, a descoberta de que, anterior ao vínculo erótico com o pai, a menina estabeleceria uma ligação ainda mais intensa com a mãe, rompe radicalmente com a perspectiva de simetria em relação ao desenvolvimento sexual. A pergunta que move Freud passa a ser: “Como ocorre, então, que as meninas o abandonem [a mãe, primeiro objeto de amor] e, ao invés, tomem o pai como objeto?” (FREUD, 1925FREUD, S. Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos (1925). Rio de Janeiro: Imago, 2006. (Ed. standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 19)/2006, p. 280).

Na conferência sobre A feminilidade, Freud aponta que essa separação entre mãe e filha não seria de forma alguma uma operação simples, e as dificuldades que surgem nesse momento poderiam ser os primeiros entraves para a menina “tornar-se” mulher. Permeada de agressividade, deixaria restos que poderiam atrapalhar seriamente a vida amorosa das mulheres: “(...) a vinculação à mãe termina em ódio. Um ódio dessa espécie pode tornar-se muito influente e durar toda a vida (...)” (FREUD, 1932FREUD, S. Feminilidade (1932-1933). Rio de Janeiro: Imago, 2006. (Ed. standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 22)-1933, 2006, p. 80). Freud, deixou claro que ainda existiam muitas dúvidas sobre a sexualidade feminina:

Se desejarem saber mais a respeito da feminilidade, indaguem da própria experiência de vida dos senhores, ou consultem os poetas, ou aguardem até que a ciência possa dar-lhes informações mais profundas e coerentes (ibidem, p. 165).

Posteriormente, Lacan (1972LACAN, J. Mais, ainda (1972-1973). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. (O seminário, 20)-73/1985), a partir das fórmulas da sexuação, avançou as teorizações a respeito da diferença sexual, trazendo importantes considerações a respeito da feminilidade. Feminino e masculino, dessa forma, não estão relacionados à presença anatômica dos sexos, e nem às categorias de atividade ou passividade em relação ao objeto - mas, sim, pela forma discursiva como cada sujeito se posicionaria frente à incidência da castração.

Sendo assim, os sujeitos que ocupassem o lado masculino da sexuação - sejam homens ou mulheres no plano biológico - teriam acesso apenas ao gozo sexual mediado pelo falo enquanto significante (LACAN, 1972LACAN, J. Mais, ainda (1972-1973). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. (O seminário, 20)-73/1985). Já os que ocupassem a posição feminina, além do gozo sexual, teriam também acesso a um gozo “suplementar”, gozo fora da linguagem e, por sua vez, do qual nada pode ser dito (ibidem, p. 99). Isso seria possível pelo fato de a posição feminina estar “não toda” referida à lógica fálica. Nas palavras de Lacan: “[...] quando um ser falante qualquer se alinha sob a bandeira das mulheres, isto se dá a partir de que ele se funda por ser não-todo a se situar na função fálica” (ibidem, p. 98).

Contudo, isso não quer dizer que o lado feminino não esteja marcado pela castração. Enquanto seres falantes, todos estão submetidos à lógica fálica. Sobre esse ponto, Lacan diz: “Não é porque ela é não-toda na função fálica que ela deixe de estar nela de todo. Ela não está lá não de todo. Ela está lá à toda. Mas há algo a mais” (ibidem, p. 100). Portanto, o que parece ficar claro a partir dessas teorizações, é que o desejo de vir a ter um falo e seus substitutos não pode abarcar tudo o que se refere ao campo da sexualidade feminina, uma vez que existe esse “algo a mais”, essencial para a compreensão dos sujeitos femininos.

Ao tratar dessas especificidades da sexualidade feminina, a psicanalista Zalcberg (2003ZALCBERG, M. A relação mãe e filha. Rio de Janeiro: Elsevier, 2003.) afirma que, como não há um significante que possa representar o sexo feminino no inconsciente, a busca de uma identificação feminina - de algo que possa dizer sobre “o que é ser mulher” - será recorrente na vida psíquica das mulheres. Analisando um dos últimos escritos de Lacan (1972LACAN, J. O aturdito (1972). In: LACAN, J . Outros escritos. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2003./2003, p. 465) sobre esse assunto, a autora diz que a via pela qual a menina buscará constituir uma identificação ao seu sexo será essencialmente na relação com sua mãe.

Essa busca de um lugar para a edificação de sua identificação feminina, a mulher, na sequência de seu Édipo, a fará tanto pelo lado do pai (e do homem) quanto da mãe (e da outra mulher). [...]. Só quase no final é que Lacan declarará que a filha espera mais ‘substância” da mãe do que do pai, ele vindo em segundo. (ZALCBERG, 2003ZALCBERG, M. A relação mãe e filha. Rio de Janeiro: Elsevier, 2003., p. 102).

Não obstante, ao demandar inconscientemente de sua mãe respostas para “o que vem a ser uma mulher”, a filha fatalmente irá se deparar com a impossibilidade de que a mãe lhe transmita algum saber totalizante sobre o “ser” da mulher. “Por mais que pergunte à mãe 'o que é [ser] feminina', a filha não conseguirá uma resposta [...]” (CRESPO, 2015CRESPO, N. De mãe a filha, o que se transmite? ESCOLA Letra Freudiana. N. 47 - Sexuação Sintoma Nominação. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2015., p. 5).

No melhor dos casos, o que pode ser transmitido nessa relação é “inspiração para que a menina invente sua própria suplência a esse buraco, seu próprio estilo de mascarada feminina [...]” (CRESPO, 2015CRESPO, N. De mãe a filha, o que se transmite? ESCOLA Letra Freudiana. N. 47 - Sexuação Sintoma Nominação. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2015., p. 5). Mas, para isso, é necessário que a mãe valide a posição de mulher de sua filha, o que nem sempre acontece.

Assim, pode-se pensar que, com as suas queixas e reivindicações, o que Ana parece manter em sua fantasia é o lugar da mãe como aquela que sabe o que é de fato “ser mulher”, mas que não lhe diz por alguma razão. A mãe, no caso, também aparenta ter seus próprios embaraços no âmbito da feminilidade, que acabam por intensificar essa proximidade mortífera entre mãe e filha. A jovem diz: “Quando minha mãe soube da minha preferência sexual, a gente passou a brigar muito, ela não aceitava, dizia que era melhor ter me abortado. Ela também fala que eu sou igual a ela [grifo nosso], que eu vou ter o mesmo destino trágico que o dela”.

O “destino trágico” que Ana menciona é o alcoolismo e a solidão, que compõem a vida de sua mãe. Segundo ela, sua mãe nunca conseguiu ter um parceiro fixo, e todos os homens “a abandonaram”, inclusive seu pai. A maneira que ela lê esses acontecimentos é a de que o álcool foi a única saída para sua mãe conseguir enfrentar a condição de estar sozinha, sem um companheiro. Ana também diz que, durante algum tempo, buscou nas drogas uma forma de aplacar a angústia que sentia, até que teve o seguinte pensamento: “Eu não vou por esse caminho porque é isso que minha mãe quer [grifo nosso]”. Durante o atendimento, quando lhe é feita a pergunta “O que a sua mãe quer?”, Ana chora, e diz que sempre teve de conviver com a sensação de que sua mãe queria que ela morresse. Ou seja, Ana interpretou o desejo do Outro como sendo um desejo de morte.

De qualquer forma, as brigas entre Ana e sua mãe são constantes, chegando até à agressão física. Segundo Crespo (2015CRESPO, N. De mãe a filha, o que se transmite? ESCOLA Letra Freudiana. N. 47 - Sexuação Sintoma Nominação. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2015., p. 5), a violência da relação mãe e filha parece vir onde faltam recursos simbólicos para delimitar as diferenças entre ambas.

A intolerância aos ‘erros’ da menina pode indicar que a mãe ama a filha... como a si mesma: hostilizando nela algo do próprio gozo ou da própria castração. Em casos extremos, uma filha pode ser rechaçada, ‘ignorada ferozmente’, se a mãe lhe atribui traços e modos de gozo que não suporta em si mesma - ou dos quais nada quer saber. (CRESPO, 2015CRESPO, N. De mãe a filha, o que se transmite? ESCOLA Letra Freudiana. N. 47 - Sexuação Sintoma Nominação. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2015., p. 5).

Marcela (nome fictício), outra adolescente atendida, conta que, quando se encontra em alguma situação angustiante, passa a se arranhar com certa intensidade, chegando a deixar visíveis marcas vermelhas nas regiões do corpo escolhidas para isso.

Quando fala sobre as suas angústias, menciona algumas situações que se repetem na escola, onde vivencia dificuldades no laço com outras garotas, justamente por conta de aspectos que tocam o "ser feminina": “As meninas da sala me chamam de mulher-macho, de moleque. Eu não gosto. Isso é só porque eu não sou patricinha que nem elas: não gosto de maquiagem. Se uso, fico parecendo uma palhaça. Meu negócio é fazer palhaçada, brincar, sou mais amiga dos meninos, gosto de coisas que os meninos gostam, me identifico mais com eles. Às vezes, eu gostaria de ser mais feminina [ grifo nosso ], mas não sei como”.

Os embaraços no campo da feminilidade, consequentemente, contribuem para que essas jovens encontrem dificuldades em constituir laços amorosos com os seus semelhantes: “Eu sou a única menina da escola que nunca beijou ninguém, todas as minhas amigas zoam de mim. Eu sinto muita vergonha de falar disso”, diz Marcela.

Quando é questionada sobre o motivo de nunca ter beijado ninguém, Marcela relata que, caso assim o fizesse, estaria quebrando um “pacto de confiança” entre ela e sua mãe. Quando um rapaz declarou sua vontade de beijá-la, Marcela disse que ficou paralisada e, quando se deu conta, estava desferindo um forte soco no rosto desse seu colega de escola. “A única coisa que eu consegui fazer foi isso, não sei o que aconteceu. Foi a primeira vez que um menino disse isso para mim. Fiquei sem reação, muito nervosa, eu suava, foi como se eu tivesse fora de mim”.

Durante o atendimento, Marcela associou sobre os possíveis motivos que a levaram a isso, e pensou que talvez tenha batido no garoto porque ficou com medo de que a mãe soubesse. “Não posso namorar com você”, disse ao garoto, alguns dias depois do ocorrido. Ainda acrescenta: “Por que você não namora com a minha amiga? Ela é mais bonita que eu”. Durante o atendimento, ao ser perguntada sobre o porquê de ter falado da amiga, Marcela diz que não sabe explicar direito, mas que é essa amiga dela que deveria ficar com esse colega, porque “ela sim é bonita, eu não”.

Curiosamente, esse episódio lembra a cena do lago descrita no caso Dora. A jovem histérica, ao receber uma investida amorosa do Sr. K e ouvir dele a seguinte frase “Sabe, não tenho nada com minha mulher” (FREUD, 1905FREUD, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905). Rio de Janeiro: Imago, 2006. (Ed. standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 7)/2006, p. 97), o esbofeteia. Sobre esse caso, Lacan dirá que a questão central de Dora passa pela dificuldade que toda mulher possui de “[..] se colocar como objeto de desejo do homem [...]”(LACAN, 1951/1998LACAN, J. Intervenção sobre a transferência. In: LACAN, J . Escritos. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998., p. 221), dificuldade que também se apresenta para Marcela, com toda sua particularidade.

Segundo Lacan (ibidem, p. 220), a frase que o Sr. K diz ganha importância uma vez que é na Sra. K que Dora localizava “o mistério da sua própria feminilidade”. Na medida em que o Sr. K diz que sua esposa não lhe interessa, este também não é mais interessante para Dora.

Depois do episódio com o rapaz, Marcela passou a semana inteira angustiada, arranhando-se por todo o corpo: “Imagina, se minha mãe descobre? Isso me deixou tão ansiosa que, olha só, me arranhei toda”. Marcela também descreve como excessiva a preocupação da sua mãe em relação à sua sexualidade, e queixa-se que a mãe a enxerga como um bebê. Porém, ao mesmo tempo, menciona que, “no fundo”, sente-se amada ao ser chamada pelo significante "meu bebê". O medo de perder o lugar no qual se vê amada pela mãe a impossibilita de, por exemplo, ficar com os meninos "às escondidas" - diferente de algumas de suas amigas, que parecem não se importar com qualquer reprovação de suas próprias mães.

As suas palavras são: “Se fosse pela minha mãe, eu virava freira. Ela vigia todas as roupas que eu uso, os amigos que eu tenho. Acho que não posso nem pensar em ter um namorado. Você acredita que até hoje minha mãe me chama de bebê, fala que eu sou o bebê dela, e eu falo para ela que quem é bebê é ela. Isso me incomoda bastante, mesmo que eu veja que isso é uma forma de amor”.

Do ponto de vista da psicanálise, situar-se diante do desejo do Outro materno faz parte da constituição do sujeito, sendo, portanto, estrutural. No caso do sujeito feminino, vimos que a relação com o desejo do Outro traz um plus de angústia, sendo também estrutural. Entretanto, a contingência do encontro com uma mãe mais ou menos invasiva na realidade do sujeito parece fazer diferença na amplitude do que Lacan nomeia de devastação. A relação entre mãe e filha toca em um gozo para além do falo, que pode ter efeitos devastadores no plano subjetivo, já que mantém ambas em uma proximidade perigosa.

Segundo Drummond, a ocorrência dessa “devastação”

[...] está ligada à troca fálica impossível, algo da mãe tendo escapado da lei simbólica que faria dela um objeto na estrutura de troca. Se o sujeito entra no registro simbólico da troca, ele pode metaforizar o desejo da mãe. Quando isso não ocorre, a mãe permanece numa posição de Outro real, interpretado como Outro do gozo que convoca o sujeito para uma fusão impossível ou para a perseguição. (DRUMMOND, 2012DRUMMOND, C. Devastação. Opção Lacaniana Online nova série, ano II, n. 6, 2011. Disponível em:<Disponível em:http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_6/Devastacao.pdf >. Acesso em:20 ago. 2016.
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, p. 6).

Juliana (nome fictício), a terceira adolescente atendida, conta que começou a se cortar quando as brigas com a sua mãe se tornaram frequentes. “Na época que eu comecei a me cortar foi a época que ela queria que eu pensasse igual a ela, que eu tivesse os amigos que ela queria, as roupas, era insuportável. [...]. Minha mãe achava que eu ia ser a criança dela para sempre”.

Sua fala aponta para a dificuldade de separar-se subjetivamente de sua mãe, que acaba por ser encenada nas diversas brigas e discussões. Os cortes parecem indicar que a jovem luta por deixar de ser a criança de sua mãe, mas que essa tentativa é penosa.

A relação mãe e filha é o “palco” onde surgem as dificuldades no campo do feminino. Dessa maneira, as questões com a feminilidade transparecem nesses conflitos, onde filha e mãe devem lidar com a ausência de um significante que possa representar o sexo feminino no inconsciente.

Durante o atendimento, Juliana diz: “Eu me cortava era para chamar a atenção da minha mãe. Eu queria que ela olhasse para mim [grifo nosso]. Depois eu fui percebendo que ela me aceitava da forma que eu era, e que eu não precisava mais me machucar para isso”. Sobre qual olhar era esse, diz que nunca havia pensado nisso, mas que achava que era um olhar de “aceitação” em relação à sua “forma de ser”.

Segundo Zalcberg, “a filha constitui sua feminilidade a partir da forma como sua mãe confrontou-se com o espelho inacabado referido à inexistência de uma imagem feminina visível” (ZALCBERG, 2003ZALCBERG, M. A relação mãe e filha. Rio de Janeiro: Elsevier, 2003., p. 186). Dessa forma, busca no olhar de sua mãe o reconhecimento enquanto mulher.

Acontece que, ao constatar o desejo sexual de sua filha na adolescência, a mãe é obrigada a se defrontar com as questões que se referem a sua própria sexualidade. Caso ela não tenha construído alguma saída singular para a reinvindicação fálica durante a sua vida - não fazendo outra coisa senão depreciar aquilo que se apresenta como “ausência” no real de seu corpo - a filha poderá permanecer na posição de lembrar-lhe de aspectos de sua própria sexualidade que ela rejeita (ZALCBERG, 2003ZALCBERG, M. A relação mãe e filha. Rio de Janeiro: Elsevier, 2003.).

Além disso, na puberdade, é bastante comum que a menina vivencie dificuldades em relação à feminilidade, uma vez que é nesse período que a adolescente começará a distanciar-se da autoridade parental e exercer sua sexualidade. “A filha carrega o medo de perder o amor da mãe e a mãe sofre com a ameaça da destituição de seu lugar, e da não realização de seus projetos narcísicos e ideais projetados na filha” (GUIMARÃES, 2013GUIMARÃES, I. A relação mãe e filha e os impasses no caminho da feminilidade. Dissertação de Mestrado, Departamento de Psicologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2013., p. 52).

Ferreira (2014FERREIRA, J. Mensagens sobre escarificações na internet: um estudo psicanalítico. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Estadual de Maringá. 2014.), em sua dissertação de mestrado, analisa uma grande variedade de mensagens postadas na internet por moças adolescentes que cortam a própria pele. Por meio da teoria psicanalítica, a autora tece considerações a respeito do conteúdo presente nos escritos das jovens, e acredita ser possível, por meio das postagens feitas na internet, identificar algumas das motivações inconscientes presentes no ato de escarificar-se.

É interessante perceber que os impasses relacionados à busca de uma identidade própria e as dificuldades com a própria sexualidade no período da adolescência são recorrentes nos depoimentos coletados por Ferreira. Além disso, algumas dessas garotas também relatam que as escarificações apareceram em suas vidas após uma série de vivências conflituosas com os familiares, principalmente com as mães.

Por meio das falas dessas adolescentes, podemos supor que elas se encontram psiquicamente na posição de objeto para as suas mães, dando-lhes proximidade a um gozo mortífero que transparece na forma de escarificações. Dessa forma, pode-se supor, como afirmado anteriormente, que os cortes na pele buscam uma separação no Real do corpo, uma vez que a separação simbólica se encontra dificultada.

Nesse sentido, é importante oferecer uma escuta que permita que cada uma dessas meninas possa dizer sobre o seu sofrimento e, quem sabe, as escarificações tornem-se uma pergunta sobre o que de fato está em jogo neste ato para cada uma delas.

As escarificações parecem trazer algum tipo de satisfação: o “alívio de uma dor”, como foi dito por uma das moças atendidas. Assim sendo, como pode ser pensado esse “alívio” que comparece no ato de se escarificar?

Para discorrer sobre essa questão, faz-se necessário abordar o conceito de pulsão1 1 Apesar de na edição da obra utilizada ainda constar o termo “instinto de morte”, preferiu-se utilizar o termo pulsão (Trieb), mais utilizado atualmente pela maioria dos psicanalistas, e que porta diferenças fundamentais em relação ao conceito de instinto (Instinkt). (Trieb), termo que Freud utiliza pela primeira vez no seu artigo Três ensaios sobre a sexualidade. Ao discutir algumas das peculiaridades da sexualidade humana, o autor diz que a pulsão é “[...] o representante psíquico de uma fonte endossomática de estimulação que flui continuamente [...]” (FREUD, 1905FREUD, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905). Rio de Janeiro: Imago, 2006. (Ed. standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 7)/2006, p. 159).

Dessa forma, diferente dos outros animais, que são regulados pelo instinto e buscam a satisfação dos estímulos internos através de um caminho já pré-definido pela natureza, a sexualidade humana se caracterizaria justamente por possuir objetos variáveis, procurando a satisfação até mesmo em partes do próprio corpo (FREUD, 1915FREUD, S. O instinto e suas vicissitudes (1915). Rio de Janeiro: Imago, 2006. (Ed. standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 14)/2006).

Freud, ao se questionar sobre o caráter repetitivo dos sonhos dos neuróticos de guerra e das brincadeiras infantis, definiu a dinâmica do aparelho psíquico por meio de um novo dualismo pulsional: pulsão de morte x pulsão de vida. Em seu polêmico artigo Além do princípio do prazer, Freud (1920FREUD, S. Além do princípio do prazer (1920). Rio de Janeiro: Imago, 2006. (Ed. standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 18)/2006) levantou a hipótese de que, em todo organismo vivo, talvez existisse uma tendência inata de retornar ao estado inorgânico, anterior à vida - uma busca pela própria morte, denominado de pulsão de morte. Contudo, esse movimento constante em direção à redução de todas as tensões vitais nunca se apresentaria isolado da força constante da pulsão de vida, representada pelas tendências gregárias que operam continuamente no organismo, e que visam conservá-lo.

Diante disso, Freud dirá que a pulsão de vida tem a função de promover uma espécie de “amansamento” da pulsão de morte. A primeira seria a responsável por direcionar uma parcela da pulsão de morte para fora, em direção aos objetos do exterior, dando origem ao sadismo. Porém, uma outra parcela da pulsão de morte

[...] não compartilha dessa transposição para fora; permanece dentro do organismo e, com o auxílio da excitação sexual acompanhante acima descrita, lá fica libidinalmente presa. É nessa porção que temos de identificar o masoquismo original, erógeno. (FREUD, 1924aFREUD, S. O problema econômico do masoquismo (1924a). Rio de Janeiro: Imago, 2006. (Ed. standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 19)/2006, p. 181).

Sendo assim, o masoquismo original, para Freud (1924aFREUD, S. O problema econômico do masoquismo (1924a). Rio de Janeiro: Imago, 2006. (Ed. standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 19)/2006), parece ser uma condição estrutural do psiquismo humano. Somando-se a isso, sob determinadas circunstâncias, as tendências destrutivas que haviam sido projetadas para fora do organismo poderão acabar retornando em direção ao ego, constituindo dessa maneira um masoquismo secundário.

Por meio dos conceitos apresentados, pode-se supor que o “alívio” encontrado no ato de se cortar porta uma dimensão que está para além do princípio do prazer. A satisfação encontrada neste ato sintomático, assim como em todo sintoma, parece estar relacionada com a satisfação da pulsão de morte que retorna para o eu, provocando uma parcela de destruição do mesmo. A questão do masoquismo é também elaborada por Freud em paralelo com a feminilidade, mas essa assertiva exige esclarecimentos.

Segundo a nota do editor inglês ao Problema econômico do masoquismo (FREUD, 1924aFREUD, S. O problema econômico do masoquismo (1924a). Rio de Janeiro: Imago, 2006. (Ed. standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 19)/2006, p. 175-176), é neste artigo que encontramos a descrição mais completa do fenômeno do masoquismo, não se tratando, entretanto, de sua primeira abordagem. Freud tratou do masoquismo em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905/2006), em O instinto e suas vicissitudes (1914FREUD, S. Sobre o narcisismo: uma introdução (1914). Rio de Janeiro: Imago, 2006. (Ed. standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 14)/2006) e, mais extensamente, em Uma criança é espancada. Nesses escritos, o masoquismo é definido como uma decorrência do sadismo que, após dirigido aos objetos, se volta para o eu, como já dito anteriormente. Com a teorização da pulsão de morte, em Além do princípio de prazer (1920FREUD, S. Além do princípio do prazer (1920). Rio de Janeiro: Imago, 2006. (Ed. standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 18)/2006), surge a possibilidade de um “masoquismo originário” e é dessa formulação que se desdobra a noção de “masoquismo feminino”. Diz Freud: “O masoquismo apresenta-se à nossa observação sob três formas: como condição imposta à excitação sexual, como expressão da natureza feminina e como norma de comportamento”. (FREUD, 1924FREUD, S. O problema econômico do masoquismo (1924a). Rio de Janeiro: Imago, 2006. (Ed. standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 19)/a/2006, p. 179).

O masoquismo feminino seria o mais facilmente observável e menos problemático. Entretanto, Freud indica, ao contrário do que esperaríamos, que o masoquismo feminino são fantasias encontradas nos homens. Tais fantasias “(...) colocam o indivíduo numa situação caracteristicamente feminina: elas significam, assim, ser castrado ou ser copulado, ou dar à luz um bebê” (FREUD, 1924aFREUD, S. O problema econômico do masoquismo (1924a). Rio de Janeiro: Imago, 2006. (Ed. standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 19)/2006, p. 180).

Segundo Ribeiro (2017RIBEIRO, C. N. A metapsicologia do masoquismo: o enigma do masoquismo feminino e sua relação com a fantasia masculina. Ágora(Rio de Janeiro), v. XX, n. 2, 2017. Disponível em:<Disponível em:http://www.scielo.br/pdf/agora/v20n2/1809-4414-agora-20-02-00477.pdf >. Acesso em: 23 jan. 2018.
http://www.scielo.br/pdf/agora/v20n2/180...
, p. 485):

Se ‘o masoquismo é verdadeiramente feminino’, podemos inferir que, provavelmente, foi a sexualidade feminina que permitiu a Freud o esclarecimento acerca da gênese do masoquismo. Ora, Freud não afirma que o feminino é masoquista, mas que o masoquismo é feminino. Pelos motivos expostos, o masoquismo não deve ser considerado uma característica feminina, mas um tipo de masoquismo encontrado em homens e em mulheres cujas fantasias giram em torno de um dano que culmine em um equivalente da castração. O enredo da fantasia masoquista conduz aquele que a produz a uma lesão que imaginariamente equivale à castração. É por devanear a mutilação de uma parte ou de uma função de seu corpo que o masoquista adquire um atributo correspondente à castração imaginária atribuída ao feminino. O feminino está relacionado à incompletude, visto que, na dinâmica da comparação imaginária dos corpos, o que se verifica é que falta às mulheres o membro intumescente relacionado à completude masculina. Assim sendo, a castração é assimilada, ainda que imaginariamente, como sendo um atributo feminino. Consideramos que Freud é extremamente claro ao apontar que não é necessário que o ato de amputação se efetive, pois se trata apenas de fantasia. (RIBEIRO, 2017RIBEIRO, C. N. A metapsicologia do masoquismo: o enigma do masoquismo feminino e sua relação com a fantasia masculina. Ágora(Rio de Janeiro), v. XX, n. 2, 2017. Disponível em:<Disponível em:http://www.scielo.br/pdf/agora/v20n2/1809-4414-agora-20-02-00477.pdf >. Acesso em: 23 jan. 2018.
http://www.scielo.br/pdf/agora/v20n2/180...
, p. 485).

Ao que tudo indica, as escarificações encontradas em nossa pesquisa podem, então, ser tratadas como sintomas e, assim sendo, possuem como marca uma satisfação que está além do princípio de prazer, pois se trata de satisfazer a pulsão de morte. O sujeito é compelido a repetir seu ato sintomático e, nessa repetição, o gozo que o faz apegar-se ao sintoma, tornando-o difícil de ser removido. O gozo é a parte muda do sintoma, aquela que não se lança como enigma a ser interpretado. Mas há também esse lado enigmático do sintoma que, na fala, se elabora. Nos casos analisados, escuta-se uma tentativa de separação em relação ao Outro. Entretanto, essa necessidade de separação decorre do fato de que as jovens colocam imaginariamente suas mães em posição de tudo saber sobre a feminilidade. O Outro, entretanto, não garante a resposta.

É o que Lacan nos indica com a formulação S(Ⱥ), significante da falta no Outro. Essa, segundo Lacan, é “(...) a resposta derradeira à garantia pedida ao Outro do sentido (...)” (LACAN, 1959LACAN, J. A ética da psicanálise (1959-1960). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986. (O seminário, 7)-60/1986, p. 235). Em seguida, Lacan ressalta os “engodos do semelhante”, pois é do semelhante que nascem os desconhecimentos que definem o eu. Trata-se de uma precisa indicação clínica, uma explicitação da ética da psicanálise. O eu como lugar do desconhecimento impede uma direção clínica na qual se o reforce sob pena de o sujeito ficar aprisionado e sem saída. Cabe, portanto, escutar para além das obviedades, permitindo que a causa do desejo se apresente.

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    Apesar de na edição da obra utilizada ainda constar o termo “instinto de morte”, preferiu-se utilizar o termo pulsão (Trieb), mais utilizado atualmente pela maioria dos psicanalistas, e que porta diferenças fundamentais em relação ao conceito de instinto (Instinkt).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2019

Histórico

  • Recebido
    10 Abr 2017
  • Aceito
    13 Maio 2018
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