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Entrevista: Juan Gabriel Vásquez

ENTREVISTA

Entrevista: Juan Gabriel Vásquez

"O passado nos acompanha e nos modifica"

Diogo de Hollanda Cavalcanti

Doutorando em Literaturas Hispânicas pela UFRJ

Considerado um dos melhores narradores latino-americanos da atualidade - elogiado com a mesma ênfase por representantes da geração anterior, como Mario Vargas Llosa, e escritores surgidos nas últimas décadas, como o argentino Rodrigo Fresán -, o colombiano Juan Gabriel Vásquez acaba de chegar aos 40 anos com uma obra já extensa, que abrange cinco romances, um livro de contos, um volume de ensaios e uma pequena biografia sobre Joseph Conrad. Depois de iniciar sua trajetória com três livros ambientados predominantemente na Europa, onde viveu de 1996 a 2012, Vásquez obteve grande reconhecimento crítico ao inaugurar uma nova etapa de sua obra, marcada pela abordagem consecutiva de temas relacionados a seu país de origem. Esta fase é representada até o momento por três romances: Los informantes (2004), Historia secreta de Costaguana (2007) e El ruído de las cosas al caer (2011), vencedor do Prêmio Alfaguara de Romance. Embora tenham tramas independentes, os três podem ser lidos como uma trilogia, por compartilharem não apenas uma mesma proposta temática - de retorno ao passado colombiano - como diversos procedimentos narrativos, como o texto em primeira pessoa, o discurso metaficcional e a presença da figura paterna como mediadora das investigações históricas. Na entrevista a seguir, concedida durante a décima edição da Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP), em julho de 2012 (quando ainda morava em Barcelona), Vásquez fala sobre a influência que os 16 anos fora de seu país - 13 deles na capital catalã - tiveram em sua obra, reformulando lembranças, contaminando seu castelhano e permitindo que se defrontasse com questões que antes lhe pareciam impensáveis como material literário. Dizendo ter com a Colômbia uma relação de romancista estrangeiro, o escritor comenta alguns aspectos principais de seus três "romances colombianos", como o uso da primeira pessoa, a presença de personagens deslocados e a obsessão pelo passado. "O passado", diz, "longe de ser algo fixo e quieto, nos acompanha, nos incomoda, nos modifica".

Alea: Em seus três romances colombianos, os personagens deslocados, além de ter um papel muito importante na trama, são muitas vezes os narradores - se não de todo o livro, como em Historia secreta de Costaguana (2007), de muitos trechos importantes, como em Los informantes (2004), em que todas as testemunhas que tornam a história possível são ou imigrantes estrangeiros ou migrantes domésticos. A impressão que se tem é que o passado da Colômbia, com suas fraturas, sua violência, suas imposturas políticas, emerge em sua obra pela voz e pelo olhar dos deslocados. Por que essa escolha?

Vásquez: Essa é uma revelação bastante recente: nos últimos anos, eu me dei conta de que minha relação com a Colômbia é uma relação de pesquisador, no sentido de ser alguém que não está lá1 1 Pouco tempo depois, Vásquez retornou provisoriamente a Bogotá - com a intenção, segundo me disse, de permanecer cerca de três anos. e que se vê obcecado em entender esse lugar que lhe parece estranho. Tive com a Colômbia uma relação de romancista estrangeiro, ou seja, sempre disse que nos meus primeiros tempos como escritor tinha muita dificuldade de escrever sobre o país, porque sentia que não entendia esse lugar, sua história, sua política. E descobri que isso não era um impedimento, mas justamente a razão para escrever: o fato de não entender. Foi justamente aí que comecei a escrever meus romances colombianos.

Alea: Você já tinha esse sentimento de incompreensão na Colômbia ou passou a ter fora do país?

Vásquez: Quando vivia, sentia que não entendia, mas meus últimos anos na Colômbia foram de muita tensão, uma década de muita violência, em que eu vivia a realidade colombiana como algo abertamente hostil e estéril, ou seja, não me interessava como material literário. E saí da Colômbia em 1996 com uma ideia da literatura que reivindicava muito o cosmopolitismo de Borges, de Cortázar, [uma atitude] de dizer: eu tenho o direito de não escrever sobre o meu país, sou um escritor colombiano, mas não escrevo sobre a Colômbia. E meu primeiro livro de contos [Los amantes de todos los santos, 2001] responde a isso, a esse direito que eu me dava e que é exatamente o que Borges defende em "El escritor argentino en la tradición", um ensaio magnífico que para mim foi muito importante. Depois, com o tempo, essa relação de estranheza com a Colômbia foi se transformando; deixou de ser um impedimento e um problema para se tornar, precisamente, a justificativa para eu escrever sobre o país. Percebi que tratar a história colombiana como um território obscuro, incompreensível, problemático, era a maneira de me aproximar dele com os romances, porque notei que os romances que começaram a me interessar eram mecanismos de averiguação, obras de escritores que se comportavam como investigadores. É o que fazem Joseph Conrad e Philip Roth, autores cujos romances indagam, averiguam. Romances que partem da dúvida, da incerteza, da ignorância e tentam iluminar. Tudo isso para dizer que minha relação com a Colômbia, como material, sempre esteve filtrada por esse estranhamento, e por isso eu creio que sempre me interessaram os personagens que não são do país, o olhar do estrangeiro. Até porque, é claro, eles imitam minha biografia. Os personagens que não são colombianos, na Colômbia, reproduzem de alguma forma a situação de deslocamento em que vivi desde os 23 anos nos três países em que morei: França, Bélgica e Espanha. É uma situação em que me sinto muito à vontade. Gosto desse deslocamento.

Alea: Alguns escritores dizem que o deslocamento lhes deu uma visão mais lúcida do país que deixaram. Mario Vargas Llosa, por exemplo, disse que só entendeu a América Latina quando começou a viver em Paris. Outros afirmam que se tornaram mais críticos. Você também teve essa sensação?

Vásquez: Sim, acho que as duas coisas aconteceram. No meu caso tenho muito claro que somente essa distância - não apenas geográfica, mas também cronológica - me permitiu ver meu país como matéria literária.

Alea: Suas lembranças da Colômbia mudaram com o passar do tempo?

Vásquez: Sim. Primeiro, minhas lembranças se transformaram em material literário possível, coisa que não ocorria antes. A princípio, minha experiência na Colômbia era simplesmente um incômodo, um fardo. Era a lembrança da violência, dos atentados, dos assassinatos, a lembrança das pessoas que eu tinha visto morrer. A geração à qual pertenço em Bogotá tem esse traço curioso, de ter visto pessoas matando pessoas. Todos nós vimos um assassinato, vimos mortos nas ruas por alguma bomba, o que é muito marcante. Mas isso que no começo era simplesmente uma fonte de rejeição da minha própria geografia, com a distância e o tempo que passei no exterior se transformou em algo a ser explorado. E tenho certeza de que se tivesse ficado na Colômbia provavelmente nunca teria escrito sobre o país. Teria sido um escritor como esse Borges de quem estava falando, de espaços abstratos, ou que escreve sobre Paris ou, sei lá, sobre a Inglaterra do Renascimento. Então, foi graças ao fato de ter ido que pude começar a entender minha própria biografia, minhas próprias lembranças, como um lugar que poderia ser iluminado por meio da ficção. E a prova mais clara disso é El ruído de las cosas al caer, que é um romance que me surpreendeu muito, porque até o momento em que comecei a escrevê-lo, em 2008, nunca tinha pensado que minha experiência da violência terrorista em Bogotá ou o narcotráfico pudessem ser tema da minha literatura. Nunca me interessou a literatura de ficção sobre o narcotráfico colombiano, com a provável exceção de La virgen de los sicarios [de Fernando Vallejo; 1994], que é um romance um pouco particular. Mas, até 2008, o medo que senti em Bogotá, a experiência direta da morte nos anos de terrorismo, não faziam parte da minha ficção. Ou seja, precisei de 12 anos de vida no exterior para entender que poderia me defrontar com isso utilizando as ferramentas da ficção. De modo que sair da Colômbia foi absolutamente imprescindível.

Alea: E você acha que a decisão de se estabelecer na Espanha - ou seja, em um país que de alguma forma guarda uma relação de ancestralidade com a Colômbia, o influenciou a se voltar para o passado colombiano?

Vásquez: É uma boa pergunta. Não sei. É possível que, depois dos três anos que passei na França e na Bélgica, ao voltar para minha língua eu tenha adquirido um grau de aproximação especial em relação ao passado do meu país e ao meu passado dentro do meu país. Mas acho que isso se deveu, acima de tudo, ao fato de voltar à minha língua, a uma compreensão do meu mundo narrativo através da minha língua, em vez desse grau adicional de separação que implica viver em francês, viver em um nível que está um grau mais separado do seu. Mas não creio que tenha se devido à relação, digamos, colonial.

Alea: Seu espanhol mudou desde que você chegou à Espanha? Isso o preocupa? É uma questão que o interessa?

Vásquez: Sim, me interessa muito. Creio que mudou, que mudou sempre, entre outros motivos porque eu busco conscientemente a contaminação do meu castelhano. Não me interessam em nada as noções de pureza de um castelhano digamos arquetípico.

Alea: Dizem que o da Colômbia é o mais puro...

Vásquez: Dizem. Eu não acredito muito, mas dizem. Porém, o que sempre me interessou são as mil formas de contaminação que o castelhano pode adquirir por minha trajetória biográfica. Eu cresci com o inglês, uma língua que me acompanhou sempre...

Alea: Desde que idade você lê em inglês?

Vásquez: Desde que leio. Então o inglês é uma segunda pele muito natural para mim. Penso em inglês com muita frequência, é algo muito natural; e, como você sabe, os escritores de língua inglesa me marcaram tanto ou mais que os da minha própria língua. Depois, já adulto, veio uma terceira língua, o francês, que conheço suficientemente bem para traduzir - ou, podemos dizer, para levar uma vida em francês. E se, além disso, você considera que eu vivo um espanhol que não é o meu, o espanhol da península, de Barcelona, que é obviamente distinto do espanhol colombiano, isso cria muitas tensões, muitas contaminações que me interessam...

Alea: E por que o interessam?

Vásquez: Eu acho que elas enriquecem a língua de um escritor. A língua, para o escritor, é uma caixa de ferramentas. E quanto mais instrumentos essa caixa tenha, melhor ela vai ser. Creio que o contato com outras línguas, com outras tradições, quando é profundo, enriquece essa caixa, enche-a de ferramentas que ela não tinha antes, ensinam algo a você. O contato com a língua inglesa ensina uma certa forma de precisão, uma forma do detalhe. O contato com certa língua francesa ensina a ampliar a frase. É inevitável ler Proust e aprender como uma frase pode ser alongada, ampliada. Mas, além disso, eu sempre acreditei no que Fernando Vallejo diz em algum lugar: que a língua literária é uma criação completamente oposta à língua falada; é uma criação artificial, e essa criação vai sendo confeccionada pelo romancista com todos os instrumentos que ele possa encontrar na realidade, com seu ouvido, sua experiência da língua falada. Porém, não é uma reprodução da língua falada, é uma criação artificial baseada no que ele escuta. Portanto a língua para mim, a língua em que escrevo meus romances, é uma criação artificial feita da língua inglesa, da língua francesa, da língua espanhola da minha infância, da língua espanhola dos meus últimos dez anos. É como uma pasta de trabalho em que vou recolhendo coisas pelo caminho e depois tento armar com elas meus próprios romances.

Alea: Passando agora ao universo temático da sua obra, por que essa insistência na memória e no passado? Por que, como romancista, você se debruça sobre o passado colombiano?

Vásquez: Creio que, com o tempo, me enchi de justificativas racionais para isso e posso dizer que, para mim, uma das obrigações do romancista é manter viva a lembrança de certas coisas. Cito uma frase de Sebald que diz que a memória é a coluna moral da literatura. Recordar é um ato moral, é um ato com conteúdo moral, e o romancista no século XX se transformou naquele que lembra o que os demais querem que se esqueça. O romancista se confronta com o impulso natural dos seres humanos de esquecer o que é incômodo, difícil. Também se confronta com essa espécie de procedimento natural dos governos, do poder, que é a reescrita do nosso passado, de nossa história - e o romancista resiste, o romance resiste a esses procedimentos. Então, há uma série de razões quase éticas que fazem com que eu, como leitor e romancista, me interesse por essa espécie de papel que a literatura tem de guardiã da memória. Mas, no fundo, acho que é uma razão mais pessoal e instintiva: sempre me interessei mais pelos mortos do que pelos vivos. Sempre fui obcecado, de uma maneira muito pessoal, por essa ideia que Faulkner expressou em um romance, que diz: "O passado não está morto, nem sequer passou" ("The past is not dead, it's not even past"). Eu sinto isso de uma maneira muito viva, e escrevo sobre as coisas que sinto não de uma maneira racional, teórica, como expressava antes, mas de uma maneira visceral. Sempre senti que o passado do meu país, que o passado da minha família, estão comigo, me acompanham constantemente. Sinto esses fantasmas, por isso escrevo sobre eles, porque me interessam, porque nós, seres humanos, crescemos com muitas incertezas e muitas dúvidas sobre tudo, mas uma das poucas certezas que temos, que nos vendem, é: "o que passou, passou". Aquilo que faz parte do passado é definitivo, não se pode fazer mais nada, já ficou para trás... "O que passou, passou" é uma parte importante da filosofia do ser humano, e é falsa. O passado não está fixo, o passado, o nosso passado, está em constante movimento. É como diz um personagem de Los Informantes: temos uma certa ideia sobre nossa família, nosso parceiro, até que aparece uma foto, aparece uma carta, e o que imaginávamos de nosso passado, de nossa família, de nosso país, começa a mudar. O passado está em perpétuo movimento: sou obcecado por isso, e é por essa razão que escrevo. Creio que é essa preocupação, muito pessoal, muito visceral, que nada tem de teórica: o passado, longe de ser algo fixo e quieto, nos acompanha, nos incomoda, nos modifica.

Alea: No entanto, em Los informantes sobretudo, mas também em El ruido de las cosas al caer, você aponta as complexidades de evocar certos fatos históricos, porque evocá-los também traz dor para pessoas que estiveram envolvidas neles. Você acha que alguns fatos históricos merecem o esquecimento, a distância dos romancistas?

Vásquez: Esta é uma pergunta que me faço frequentemente nos últimos anos, porque recordar tem sido para mim uma obsessão desde que escrevi Los informantes. Em meu livro de contos, inclusive, já existe uma preocupação com o passado e por recordar as vidas íntimas dos personagens, e eu acredito que isso se deva também ao meu amadurecimento pessoal, à proximidade dos quarenta anos. Com tudo isso, veio certa preocupação pelo oposto, e me pergunto se, em muitos casos, não teremos um certo direito ao esquecimento, se não há coisas que é melhor não lembrar, se os indivíduos e as sociedades não têm o direito de esquecer, de deixar para trás certos fatos. Me pergunto, por exemplo, como as novas tecnologias se relacionam com isso. A internet é um lugar onde não existe o direito de esquecer: se você comete um erro, seja em um dos seus atos ou em um dos seus escritos, e ele sai na internet, aquilo fica lá e você nunca mais terá o controle, aquilo nunca poderá ser apagado de sua biografia, de sua vida. A internet é extremamente preocupante porque elimina nosso direito de deixar o passado para trás. O que fizemos fica ali e nunca não vai se apagar; isso me preocupa cada vez mais. Se, durante um tempo, me preocupava com o direito que temos de não esquecer, de lembrar, de que os poderes que escrevem a história não tenham sempre a razão, agora comecei a pensar que talvez, em muitas coisas, devemos também exigir nosso direito ao esquecimento, nosso direito a não lembrar, a virar a página.

Alea: Inclusive na esfera social e não só individual?

Vásquez: Me pergunto também, mas não estou certo, se parte do êxito alemão após a Segunda Guerra Mundial, tal como comenta Sebald, por exemplo, em um livro chamado História natural da destruição, consistiu em conseguir alguns anos de amnésia, alguns anos em que não se recordava do conflito. Graças a isso, o país teria conseguido avançar, sobreviver, e hoje em dia é um país que tem, digamos, a honrosa condição de ser o guardião da memória da Europa. Os alemães são aqueles que recordam com mais insistência a sua própria culpa, seu próprio passado difícil, mas conseguem fazer isso porque houve um momento de esquecimento. Durante alguns anos conseguiram virar a página, esquecer isso e ressurgir como país após o Holocausto. Então creio que o esquecimento de nossa história coletiva nunca é recomendável, mas é possível pensar em um direito individual a esquecer e deixar para trás. Mas é como disse: são perguntas que me faço, não tenho uma resposta clara.

Alea: O escritor argentino Rodrigo Fresán escreveu que você está se tornando o melhor escritor político latino-americano. O que você pensa desta classificação? O que seria, hoje em dia, um escritor político?

Vásquez: Há uma frase de Stendhal, em A cartuxa de Parma, que diz que a política em uma obra literária é como um tiro no meio de um concerto: algo muito grosseiro, mas impossível de ignorar. Eu creio que os registros, os discursos, a maneira de falar da política e da literatura de ficção se encontram em pontos opostos do espectro. A política funciona com a simplificação, com a ausência de matizes; o papel do político (e isso qualquer assessor de campanha, qualquer escritor de discurso pode dizer) é afirmar: as coisas não são tão complexas como você acha, são muito mais simples, preto no branco, explico em sete palavras e resolvo em sete pontos... O romancista faz exatamente o contrário; é alguém que se depara com uma situação muito clara e diz: não, as coisas não são assim tão claras, são mais complicadas, isso tem zonas cinzentas, tem um lado oculto. Eu e Javier Cercas [escritor espanhol, com quem participou de debate na Flip] comentamos no outro dia que o político é alguém que encontra um problema e entrega uma solução, mesmo que seja falsa. O romancista é alguém que encontra uma solução e a transforma num problema. Então, são modos completamente diferentes de se aproximar do mundo. Isso quer dizer que, quando a política entra num romance, ocorre uma tensão imediata. Se o romancista consegue incorporar perguntas políticas sem adotar a linguagem da política, aí eu posso falar de um romance político com o qual me sinto confortável - e são romances políticos Pastoral americana e A marca humana, de Philip Roth, e é, nesse nível, um romance político O coração das trevas, embora não seja, sob nenhum ponto de vista, apenas isso. Portanto, essa questão não me assusta muito, embora haja uma série de riscos que o romance corre quando se aproxima da política como tema, e o romancista precisa estar muito consciente deles. Como disse em algum ensaio, a chave é tentar escrever romances que sejam políticos sem fazer política e manter essa maneira particular de ver o mundo que têm os romances, que nunca dão resposta, mas se contentam em fazer as perguntas mais interessantes que podem encontrar, que é justamente o contrário da dicção política. A dicção política consiste em tentar resolver tudo e esclarecer tudo, em tranquilizar as pessoas. De modo que existe uma tensão que parece insolúvel, mas há grandes ficções do século XX que nos provaram que a política pode ser tema da grande literatura, sempre e quando a literatura não se entregar à visão do mundo da política e sim tomá-la e dominá-la.

Alea: E você considera seus três romances colombianos políticos?

Vásquez: Creio que Los informantes e Historia secreta de Costaguana são romances políticos nesse sentido. Creio que El ruido de las cosas al caer é ligeiramente distinto, porque existe ali uma investigação muito mais pessoal na minha memória privada, e isso muda as coisas de uma maneira um pouco difícil de explicar. Mas a escrita desse romance me exigiu uma investigação muito pessoal, muito íntima das minhas próprias lembranças, para recordar coisas incômodas. A história do tiro dado no protagonista aconteceu com um amigo meu, e os episódios do hospital estão baseados na minha lembrança do que foi visitar meu amigo quando ele parecia estar a ponto de morrer por causa daquele tiro. Então, nunca vivi a escrita desse romance com a consciência de estar me metendo em um terreno difícil do ponto de vista político. Escrevi o livro com a ideia de estar explorando uma parte da minha biografia, da minha memória e das minhas emoções, de uma maneira muito mais pessoal... Disse que esse romance é muito autobiográfico, mas não porque tenha sido construído com minhas experiências diretas e sim porque foi construído com meus medos. E, nesse sentido, é um romance muito mais pessoal do que essas investigações mais coletivas que são os outros dois livros. Provavelmente essa é a diferença.

Alea: Apesar disso, na minha visão, há uma parte política importante em El ruido de las cosas al caer que é apontar a presença dos Estados Unidos no nascimento do narcotráfico na Colômbia. E, nos seus dois romances anteriores, os Estados Unidos também estão por trás dos problemas que você narra: a construção do Canal do Panamá e as listas negras para imigrantes dos países do Eixo durante a Segunda Guerra Mundial... Você considera que se aprofundar no passado latino-americano implica denunciar os crimes cometidos pelos governos norte-americanos?

Vásquez: Não, nunca me interessei por isso. Aliás, o verbo denunciar me incomoda muito como romancista. Não creio que a denúncia seja parte do meu trabalho como romancista nem que seja um requisito dos romances que me interessam. Embora seja difícil de entender, e também difícil de acreditar, digo que é absolutamente casual essa maneira estranha em que, nos três romances, a presença dos Estados Unidos, da política externa norte-americana, marca o destino dos personagens. Acho que simplesmente é um testemunho do tanto que a política externa dos Estados Unidos esteve presente na vida dos países latino-americanos. Nunca me interessei em denunciar, em reivindicar nada. Não sou, nem nunca fui, antiamericanista. Pelo contrario: sou um amante da literatura dos Estados Unidos, da sua cultura, da sua música, e inclusive da sua tradição democrática. Tudo o que vem desde Jefferson, e Adams, e Thomas Paine é a cultura democrática que eu gostaria de ver nos países latino-americanos. O que ocorre é que, no século XX, os governos norte-americanos perverteram seus ideais de democracia: desde Theodore Roosevelt - que foi o poder que esteve presente durante a Revolução do Panamá - até os fatídicos anos de George Bush, os governos dos Estados Unidos não estiveram à altura de sua tradição filosófica, que vem de 1776 e da Revolução Norte-Americana.

Alea: Um traço muito forte do "boom da literatura latino-americana", nos anos 1960 e 1970, foi a existência de um ideal político, a crença na emancipação da América Latina. Hoje, pelo contrário, o que parece mais notável é uma desilusão, um ceticismo. Você compartilha dessa visão? Inclui-se no ceticismo?

Vásquez: Não sei. Acho que o "boom latino-americano" surgiu num momento de transformação muito intensa da sociedade latino-americana, que estava ligado, em grande medida, à Revolução Cubana. Esse foi o grande aglutinador que une os escritores latino-americanos do "boom": seu apoio à Revolução Cubana. Minha geração não tem um aglutinador similar, um polo que nos una, mas eu não acho que sejamos uma geração desencantada. Creio que há uma geração que tem um olhar muito comprometido sobre a política de seus países. Talvez muitos de nós nos interessemos mais pela política passada, pelo mundo que as gerações anteriores nos legaram, e talvez seja isso o que venhamos fazendo: não tanto explorar obsessivamente o momento político presente, como fez o "boom latino-americano", mas tentar averiguar o que recebemos das gerações anteriores.

Alea: Por isso a presença recorrente da figura paterna em seus romances? Não só neles, aliás, mas em vários outros escritores, a figura paterna hoje é muito dominante. Você acha que isso reflete a preocupação com o que se herdou?

Vásquez: Eu penso que sim, e penso que o conflito entre um pai e um filho é a quintessência do conflito histórico. O conflito histórico é basicamente uma tensão entre duas maneiras diferentes de ver o mundo, e isso de fato muitas vezes se reflete dessa forma: na crítica que os pais fazem dos filhos, pelo que eles fizeram do mundo que demos a eles; ou na crítica que os filhos fazem dos pais, por terem deixado o mundo desse jeito. Portanto é evidente que, em certo nível, todo conflito entre pai e filho é um conflito histórico e Los informantes, por exemplo, explora isso de maneira muito clara.

Alea: Por que em todos os seus romances você adotou a primeira pessoa, a metalinguagem e às vezes alguns traços de autoficção, como no nome do personagem de Los informantes (Gabriel)? Tem a ver com a resistência do leitor atual com a ficção, conforme apontam muitos escritores?

Vásquez: Não, acho que tem a ver com minha relação com meu material: uma relação, como disse, de investigador. Quis que meus personagens, meus narradores nos romances, se comportassem mais ou menos como eu me comportei durante a escrita: um processo de averiguação, de descoberta. Meus narradores nunca sabem dos fatos; nunca sabem tudo desde o começo; averiguam enquanto vão contando.

Alea: Sempre há um segredo...

Vásquez: Sim, há um segredo e uma certa instabilidade. Em Los informantes, como você se lembra, as descobertas que o narrador vai fazendo o obrigam a reavaliar tudo o que sabe, então o romance vai mudando...

Alea: O passado vai mudando...

Vásquez: O passado vai mudando... Quis que meus narradores se comportassem frente a seu material da mesma maneira que eu me comportei como romancista, isto é, com as incertezas e as dúvidas de quem investiga, de quem vai averiguando pouco a pouco, de quem pouco a pouco vai iluminando seu próprio material, de quem nunca entende perfeitamente tudo o que está contando. Isso é importante, é a isso que eu respondo.

Alea: Alguns escritores reclamam que, quando querem vender seus livros para outros países, os editores estrangeiros exigem que suas obras tenham traços nacionais, que o país de origem do autor esteja sempre presente em suas obras. Você acha que, sendo colombiano, teria o mesmo sucesso, não digo de crítica, mas comercial, e a mesma acolhida editorial, se escrevesse por exemplo sobre a Bélgica ou outro país que não a Colômbia?

Vásquez: Não sei. Concordo com o que você diz: existe essa espécie de exigência, essa exigência estúpida de que nós, escritores, sejamos intérpretes de nossos países. Meu primeiro livro maduro, Los amantes de todos los santos, é um livro de contos sobre a França e a Bélgica. E, realmente, se eu tivesse que responder à sua pergunta com base no que ocorreu com esse livro e com Os informantes, me parece evidente que não é um bom negócio para um escritor latino-americano não ser latino-americano: o mundo comercial da edição exige referências de identidade claras, e isso é uma grande bobagem. O escritor latino-americano tem de se rebelar contra isso, inclusive lembrando o ensaio de Borges "El escritor argentino y la tradición". Mas, ao mesmo tempo, existem casos em que os escritores latino-americanos já começaram a romper com essas lealdades. Jardines de Kensington, de Rodrigo Fresán, foi um romance muito bem-sucedido, recebeu críticas muito boas, avaliações extraordinárias na Inglaterra, e é um romance sobre os ingleses e os anos 1960 na Inglaterra. Portanto, para mim, é muito difícil saber o que aconteceria, que exigências o mundo editorial faz do editor, mas também não me parece muito saudável gastar muita energia pensando nisso.

Alea: Isso nunca influenciou seu trabalho como escritor?

Vásquez: Não, minimamente. Nunca tomei uma decisão de escrita me baseando em coisas que estejam fora do livro; meus livros respondem, em cada palavra, a obsessões pessoais, e nunca me separei delas. E creio que essa posição ética, digamos, me deu muitos resultados.

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    Pouco tempo depois, Vásquez retornou provisoriamente a Bogotá - com a intenção, segundo me disse, de permanecer cerca de três anos.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      27 Maio 2013
    • Data do Fascículo
      Jun 2013
    Programa de Pos-Graduação em Letras Neolatinas, Faculdade de Letras -UFRJ Av. Horácio Macedo, 2151, Cidade Universitária, CEP 21941-97 - Rio de Janeiro RJ Brasil , - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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