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Apresentação do v. 22, n. 3 de Alea. Estudos Neolatinos

Presentation of v. 22, issue 3, of Alea. Estudos Neolatinos

Para o presente volume de tema livre da Alea, recebemos em torno de sessenta submissões, que passaram por nosso habitual processo de avaliação por pares e por uma cuidadosa seleção com vistas à composição final do sumário do número. Essa ampla resposta à nossa última chamada de 2020 estimula-nos como editores, pois é um índice positivo do interesse que nossa publicação sempre desperta na comunidade científica. Em correspondência com essa acolhida, preparamos um volume que esperamos que seja instigante e produtivo para nossos leitores.

Como já é de praxe, a própria organização do sumário lança um possível caminho de leitura. Um primeiro movimento nesse percurso está focado no estudo da circulação de teorias e paradigmas críticos que impactaram o século XX, visualizando como esses discursos circularam internacionalmente e como foi sua recepção no âmbito do Brasil e da América Latina.

Um núcleo de cinco textos convoca esse primeiro movimento de leitura. O primeiro artigo distingue o trabalho de Haroldo de Campos, cuja reflexão em torno a um “sequestro do barroco” formulada em 1989, em sua crítica ao livro Formação da literatura brasileira (1959CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira (Momentos Decisivos). São Paulo : Martins, 1959.), produz uma torção no modelo historiográfico instituído por uma tradição universalista no estudo da circulação da literatura e da teoria literária. Esse caso particular permite ao autor atentar-se para modelos e práticas contemporâneas que, assumidas acriticamente, podem produzir novos “sequestros” das singularidades dos processos literários na América Latina. O segundo artigo reflete sobre os usos da noção de inconsciente político de Frederic Jameson em âmbitos distantes do universo em que foi pensado, incitando a analisar o tipo de paradigma que é convocado nesses usos e circulações, e a pensar em como a teoria literária transborda seus contornos, sendo ativada em outros discursos e disciplinas. Os seguintes três textos que incluímos nesse primeiro movimento de leitura estão focados na recepção da obra de Roland Barthes na América Latina: um explora a circulação das obras de Barthes no Chile, a partir do estudo da produção crítica e narrativa de Enrique Lihn; outro trata da presença do escritor francês na crítica literária da professora brasileira Leyla Perrone-Moisés; e o último dessa tríade discute as relações de Perrone-Moisés e Barthes a partir do jogo entre fidelidade e infidelidade na tradução, uma atividade que, conjuntamente com a crítica literária, foi central no trabalho da intelectual brasileira.

Um segundo eixo de leitura está dedicado à obra de Jacques Derrida e reúne seis artigos. Os quatro primeiros foram originariamente conferências lidas na homenagem que o Instituto de Estudos Avançados da USP fez ao mestre argelino, ao cumprir-se vinte e cinco anos da conferência proferida por Derrida em 1994 que problematizava a concepção tradicional e hegemônica de arquivo e que foi publicada no ano seguinte sob o título Mal d'Archive: Une Impression Freudienne (1995DERRIDA, Jacques. Mal d'Archive:Une Impression Freudienne. Paris: Éditions Galilée, 1995.). Os quatro textos, inéditos até hoje, foram reescritos como artigos e submetidos à nossa revista, configurando um valioso percurso exegético pelo tema sempre atual da memória. O primeiro analisa passagens de Santo Agostinho, Nietzsche e Benjamin a partir de temas propostos por Jacques Derrida, com destaque para a questão da tradução e da escrita como inscrição de si. O problema central que o artigo coloca em debate é como traduzir uma vida, sendo que esta é sempre intraduzível. O segundo artigo examina a importância de Jacques Derrida como interlocutor, leitor e pensador da psicanálise; e os dois que seguem focam diretamente no tema do arquivo e da memória do trauma, particularizando na memória da Shoah e na complexidade do arquivo da escravidão no Brasil. Fecham esse movimento de leitura dois artigos que, iluminados pelas reflexões de Derrida, adentram-se no estudo de textos de Virginia Woolf, Roberto Bolaño e Hélené Cixous.

Já um terceiro arco de leitura se abre com dois textos que, ancorados em uma teoria da catástrofe, indagam as suas possibilidades representativas. O primeiro articula princípios de uma teoria do verso a teorias sobre o amor e sobre o tempo, perguntando-se se ir ao verso não é ir ao tempo em sua crise, em sua fratura, em sua disjunção, tal como pensaram Agamben, Benjamin ou Derrida. Nessa direção, o artigo propõe ler, no gesto disjuntivo do verso, erotismo e luto, amor e catástrofe. O segundo está focado na obra cinematográfica de Jean-Luc Godard, na sua tematização da dor e nos processos de montagem envolvidos nessa proposta de uma arte da dor. Pensada a catástrofe como desabamento, mas também como quebra e inversão, é estudada a pertinência da montagem catastrófica godardiana para a representação do trauma, mostrando que imagens da arte podem, sim, ser uma barreira para a barbárie.

Um quarto movimento que o sumário propõe está direcionado a estudar os modos de inscrição do sujeito em certa zona da escrita contemporânea que explora o registro autobiográfico, problematizando os limites entre escrita e vida. O primeiro texto desse núcleo analisa como a exposição da vida privada acarreta mudanças nas figurações do romance, que passou a assimilar elementos das escritas de si para criar a ilusão de proximidade com fatos reais. Essa contaminação tem gerado instigantes formas estéticas, além de entraves éticos, que são estudados no texto a partir da experiência da literatura francesa. O segundo percorre um caminho que vai da obra de Alejandro Rossi (Manual del distraído) à de Fabian Casas (Diarios de la edad del pavo) para mostrar como os deslocamentos entre escrita e vida não foram alheios à modernidade hispano-americana, mas que parecem assumir outras inflexões nos dias de hoje.

O quinto e último eixo de leitura da seção de Artigos reúne dois textos. O primeiro estuda o movimento das editoras cartoneiras e seu impacto ao criar um novo objeto (o livro cartoneiro), novas práticas de produção e novas formas de publicação alternativas às hegemônicas. A autora descreve os efeitos desses projetos nos circuitos nacionais, regionais e transnacionais e como esses efeitos são responsáveis por uma intervenção "nano" na chamada World Literature. O segundo apela ao fragmentário como poderoso efeito discursivo. Sem perder consistência teórica, nem profundidade crítica, o texto apresenta-se sob a forma de uma escrita in progress, como apontamentos para um capítulo, ou como notas de um professor que organiza algumas teses sobre o conceito de crítica para conversar com seus alunos. A inevitabilidade da crítica, a sua natureza judicativa, a diferença entre modernidade crítica e sistema crítico clássico, as relações entre dissenso, democracia e crítica, o ensino de literatura como ensino da crítica são algumas dessas teses que, apresentadas como “lições”, potencializam o movimento dialógico e a reflexão crítica do leitor.

Na seção de Resenhas, são apresentados dois livros de recente publicação que, sem dúvidas, serão referência bibliográfica nos campos que articulam seus objetos de estudo. Trata-se de Translinguismo e poéticas do contemporâneo (2019MELLO, Ana Maria Lisboa de; ANDRADE, Antonio (orgs.). Translinguismo e poéticas do contemporâneo. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2019.), uma coletânea de ensaios em torno ao tema das escritas translíngues, organizado por Ana Maria Lisboa e Antonio Andrade, publicado pela Editora 7Letras; e de Metodologia de pesquisa em literatura (2020DURÃO, Fabio Akcelrud. Metodologia de pesquisa em literatura. São Paulo: Parábola, 2020.) um livro de Fabio Durão Akcelrud, publicado pela Parábola Editorial.

Esse volume inaugura uma nova seção na Alea, intitulada Memórias. A intenção é abrir um espaço para textos que articulam a reflexão científica ao trabalho memorial: estudos diacrônicos de publicações científicas da área, balanços do trabalho de editoras científicas, homenagens a obras que fazem aniversário de publicação e que impactaram de maneira notável a reflexão científica na área. Busca-se dialogar com outros projetos editoriais, criando redes teóricas, constelações temáticas, potencializando sempre a circulação de saberes. A seção inclui, nesta sua primeira edição, um texto que avalia o papel da revista Alea no desenvolvimento e na atualização do conhecimento em torno às letras neolatinas produzido no Brasil, com destaque às contribuições de artigos, traduções, documentos de arquivos e resenhas dos últimos cinco anos, através da sistemática colaboração com universidades e pesquisadores nacionais e do exterior. Organizada segundo uma divisão historicizada em três grandes temas (internacionalização da pesquisa brasileira; ética e qualidade editorial; e perspectiva de inserção no projeto Ciência Aberta), são propostos diversos percursos de leitura que, dando conta da trajetória das publicações de Alea, compõem um panorama atualizado das questões e objetos de pesquisa e discussão na área dos estudos neolatinos.

Os trabalhos que publicamos neste volume foram produzidos em diversos âmbitos do país e do mundo. Do Brasil, participam pesquisadores das seguintes instituições: Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Universidade Federal Fluminense, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Universidade de São Paulo, Universidade Estadual de Campinas, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Universidade do Extremo Sul Catarinense e Universidade La Salle. De instituições estrangeiras, contamos com a participação de pesquisadores da Universidade Finis Terrae (Chile), da Universidad Nacional del Litoral (Argentina) e da Universidade de Barcelona (Espanha). Com isso esperamos oferecer um panorama abrangente e diverso das pesquisas que hoje se desenvolvem no âmbito das Letras Neolatinas e em outras áreas afins que tradicionalmente tem espaço em nossa revista.

Como é habitual, desejamos a nossos leitores boas e frutíferas leituras.

Referências:

  • CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira (Momentos Decisivos). São Paulo : Martins, 1959.
  • DERRIDA, Jacques. Mal d'Archive:Une Impression Freudienne Paris: Éditions Galilée, 1995.
  • DURÃO, Fabio Akcelrud. Metodologia de pesquisa em literatura São Paulo: Parábola, 2020.
  • MELLO, Ana Maria Lisboa de; ANDRADE, Antonio (orgs.). Translinguismo e poéticas do contemporâneo Rio de Janeiro: 7 Letras, 2019.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Dez 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2020
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