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Carta a Georges Izambard

TRADUÇÃO

Carta a Georges Izambard

1

1 N. do T. Professor de retórica de Rimbaud, de janeiro a julho de 1870. Torna-se guia e amigo do poeta.

Charleville, 13 de maio de 1871

Caro Senhor!

Ei-lo novamente professor. Devemo-nos à Sociedade, disse-me o senhor; o senhor faz parte dos corpos de ensino: o senhor vai no bom caminho. – Eu também, sigo o princípio: faço-me cinicamente sustentar; desenterro antigos imbecis do colégio: tudo o que posso inventar de idiota, de sujo, de ruim, em ação e em palavras, dou a eles: pagam-me em canecas e em moças. Stat mater dolorosa, dum pendet filius.2 2 N. do T. A mãe está de pé, aflita, enquanto o filho pende da cruz. Passagem da liturgia. – Devo-me à Sociedade, está certo, – e tenho razão. – O senhor também, o senhor tem razão, por hoje. No fundo, o senhor só vê em seu princípio poesia subjetiva: sua obstinação em voltar à manjedoura universitária – perdão! – o prova. Mas o senhor sempre terminará como um satisfeito que nada fez, já que nada quis fazer. Sem contar que sua poesia subjetiva sempre será horrivelmente enfadonha. Um dia, espero – muitos outros esperam a mesma coisa –, verei em seu princípio a poesia objetiva – eu a verei mais sinceramente do que o senhor seria capaz! Serei um trabalhador: é essa a idéia que me retém quando as loucas cóleras me impelem para a batalha de Paris3 3 N. do T. Alusão aos combates da Comuna de Paris. , onde tantos trabalhadores ainda morrem enquanto lhe escrevo! Trabalhar agora, jamais, jamais; estou em greve.

Agora encrapulo-me o mais possível. Por quê? Quero ser poeta, e trabalho para tornar-me vidente: o senhor não compreenderá de modo algum, e eu quase não poderia explicar-lhe. Trata-se de chegar ao desconhecido pelo desregramento de todos os sentidos. Os sofrimentos são enormes, mas é preciso ser forte, ter nascido poeta, e eu me reconheci poeta. Não é absolutamente minha culpa. Está errado dizer: Eu penso. Deveríamos dizer: Pensam-me. Perdão pelo jogo de palavras.

EU é um outro. Azar da madeira que se descobre violino, e danem-se os inconscientes que discutem sobre o que ignoram completamente!

O senhor não é professor para mim. Dou-lhe isto: será sátira, como o senhor diria? Será poesia? É fantasia, ainda. – Porém, suplico-lhe, não sublinhe nem com lápis, nem demais com o pensamento:

CORAÇÃO SUPLICIADO4 4 N. do T. Rimbaud transcreverá nestas cartas alguns poemas, mais tarde publicados. Remetemos o leitor à edição brasileira bilíngüe preparada em 1995 por Ivo Barroso. Esse poema será depois conhecido como "Coração roubado" ["Coeur volé"] (Em: Rimbaud, Arthur. Poesia completa. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995:152-3).

[...]

Isso quer dizer alguma coisa.

RESPONDA-ME, endereçando ao sr. Deverrière, para A. R.

Bom dia de coração,

Arthur Rimbaud

Carta a Paul Demeny

5

5 N. do T. Jovem poeta, amigo de Izambard, a quem Rimbaud oferece seus primeiros poemas. 5 N. do T. Jovem poeta, amigo de Izambard, a quem Rimbaud oferece seus primeiros poemas.

Charleville, 15 de maio de 1871

Resolvi dar-lhe uma hora de literatura nova. Começo de imediato por um salmo atual:

CANTO DE GUERRA PARISIENSE6 6 Em: Rimbaud, Arthur. Poesia completa. Ob. cit.:132-5.

[...]

– Agora um pouco de prosa sobre o futuro da poesia:

Toda poesia antiga termina na poesia grega, Vida harmoniosa. – Da Grécia ao movimento romântico, – idade média – há letrados, versificadores. De Ennius a Théroldus, de Théroldus a Casimir Delavigne, tudo é prosa rimada, um jogo, deformação e glória de inúmeras gerações idiotas: Racine é o puro, o forte, o grande. – Houvessem insuflado suas rimas, embaralhado seus hemistíquios, e o Divino Idiota7 7 N. do T. Assim Racine era chamado pelos Jeunes-France, românticos intransigentes ironizados por Théophile Gautier em seu romance Les Jeunes-France, de 1833. seria hoje tão ignorado quanto o primeiro autor de Origens8 8 N. do T. Assim começam muitos títulos de livro nesta época. . – Depois de Racine, o jogo embolorou. Durou dois mil anos!

Nem pilhéria nem paradoxo. A razão me inspira mais certezas sobre o tema do que, de raiva, poderia um dia ter um Jeune-France. De resto, os novos são livres para execrar seus antecessores: estamos em casa e temos tempo.

O romantismo jamais foi bem julgado. Quem o teria julgado? os críticos!! Os românticos? que provam tão bem que a canção poucas vezes tem a ver com a obra, isto é, com o pensamento cantado e compreendido pelo cantor?

Pois EU é um outro. Se o cobre desperta clarim, não é por sua culpa. Isso me é evidente: assisto à eclosão de meu pensamento; contemplo-o; escuto-o; faço um movimento com o arco: a sinfonia faz seu movimento no abismo, ou de um salto surge na cena.

Se os velhos imbecis não houvessem encontrado do Eu apenas a significação falsa, não teríamos que varrer estes milhões de esqueletos, que há um tempo infinito, acumularam os produtos de sua inteligência caolha, proclamando-se autores!

Na Grécia, eu disse, versos e liras ritmam a Ação. Depois, música e rimas são jogos, passatempos. O estudo desse passado encanta os curiosos: muitos se divertem renovando essas antigüidades: – isso é feito para eles. A inteligência universal sempre lançou suas idéias naturalmente; os homens reuniam uma parte desses frutos do cérebro: agia-se por eles, escreviam-se livros: essa era a marcha, uma vez que o homem não trabalhava a si mesmo, não havia ainda despertado, não estava ainda na plenitude do grande sonho. Funcionários, escritores: autor, criador, poeta, esse homem nunca existiu!

O primeiro estudo do homem que quer ser poeta é seu próprio conhecimento, completo; ele busca sua alma, investiga-a, tenta-a, aprende-a. Assim que a conhece, deve cultivá-la; isso parece simples: em qualquer cérebro se realiza um desenvolvimento natural; tantos egoístas se proclamam autores; e há outros que atribuem a si mesmos seu próprio progresso intelectual! – Mas trata-se de tornar a alma monstruosa: à maneira dos comprachicos9 9 N. do T. Em L'Homme qui rit, de Victor Hugo, os ladrões de crianças que as mutilam e exibem em feiras. , ora! Imaginem um homem implantando e cultivando verrugas em seu próprio rosto.

Digo que é preciso ser vidente, fazer-se vidente.

O poeta se faz vidente por meio de um longo, imenso e estudado desregramento de todos os sentidos. Todas as formas de amor, de sofrimento, de loucura; ele busca por si mesmo, esgota em si todos os venenos, para guardar apenas suas quintessências. Inefável tortura em que ele precisa de toda a fé, de toda a força sobre-humana; em que ele se torna entre todos o grande doente, o grande criminoso, o grande maldito, – e o supremo Sábio! – Pois ele chega ao desconhecido! Já que cultivou sua alma, já rica, mais que qualquer outro! Ele chega ao desconhecido; e quando, enlouquecido, acabar perdendo a inteligência de suas visões, ele as viu! Que exploda em seu salto por entre as coisas inauditas e inomináveis: outros horríveis trabalhadores virão, e começarão pelos horizontes em que o outro se perdeu!

– a seqüência de seis minutos –

Aqui intercalo um segundo salmo, fora do texto: disponha um ouvido complacente, – e todos ficarão encantados. – Tenho o arco na mão, começo:

MINHAS POBRES NAMORADAS10 10 Em: Rimbaud, Arthur Poesia completa. Ob. cit.:136-9.

[...]

Aí está. E observe que se eu não temesse fazê-lo desembolsar mais de sessenta centavos de correio, – eu, pobre coitado que há sete meses não tive uma única moeda! – eu lhe ofereceria também ainda meus Amantes de Paris, cem hexâmetros, Senhor, e minha Morte de Paris, duzentos hexâmetros!11 11 N. do T. Os dois poemas são desconhecidos.

– Recomeço:

O poeta é, pois, realmente um ladrão de fogo.

É responsável pela humanidade, pelos próprios animais; ele deverá fazer com que se sintam, apalpem, ouçam suas invenções; se o que ele traz de longe tem forma, ele dá forma; se é informe, ele dá informe. Encontrar uma língua; – De resto, como toda palavra é idéia, chegará o tempo de uma linguagem universal! É preciso ser acadêmico, – mais morto do que um fóssil, – para completar um dicionário, qualquer que seja a língua. Os parvos começariam a pensar na primeira letra do alfabeto e poderiam rapidamente ser levados à loucura.

Essa língua será da alma para a alma, resumindo tudo, perfumes, sons, cores, pensamento enganchando pensamento e puxando. O poeta definiria a quantidade de desconhecido que em sua época desperta na alma universal: ele daria mais – do que a fórmula de seu pensamento, do que a notação de sua marcha para o Progresso! Enormidade tornando-se norma, por todos absorvida, ele seria realmente um multiplicador de progressos!

Esse futuro será materialista, o senhor o vê; – Sempre plenos do Número e da Harmonia, esses poemas serão feitos para ficar. – No fundo, seria ainda um pouco a Poesia grega. A arte eterna teria suas funções; como os poetas são cidadãos. A Poesia não ritmará mais a ação; ela estará adiante.

Esses poetas serão! E quando tiver sido quebrada a servidão da mulher, quando ela viver para si e por si, o homem, – até aqui abominável – a despachará, e ela, também, será poeta! A mulher encontrará desconhecido! Seus mundos de idéias serão diferentes dos nossos? – Ela encontrará coisas estranhas, insondáveis, repugnantes, deliciosas; nós as tomaremos, nós as compreenderemos.

Enquanto esperamos, peçamos aos poetas o novo, – idéias e formas. Todos os hábeis logo acreditariam ter satisfeito essa exigência. – Não é isso!

Os primeiros românticos foram videntes sem se darem conta: a cultura de suas almas iniciou-se acidentalmente: locomotivas abandonadas mas ardentes, que seguem os trilhos durante algum tempo. – Lamartine é, às vezes, vidente, mas estrangulado pela forma velha. – Hugo, teimoso demais, viu muito nos últimos volumes: Os miseráveis é um verdadeiro poema. Tenho Os castigos sob as mãos: Stella dá relativamente bem a medida da visão de Hugo, Demasiado Belmontet e Lamennais, demasiados Jeovás e colunas, velhas enormidades arrasadas.

Musset é 14 vezes execrável para nós, gerações dolorosas e tomadas por visões, – como sua preguiça de anjo insultou! Oh! os contos e os provérbios enfadonhos! oh as noites! oh Rolla, oh Namouna, oh a Taça! Tudo é francês, quer dizer odioso ao grau supremo; francês, e não parisiense! Mais uma obra deste gênio odioso que inspirou Rabelais, Voltaire, Jean La Fontaine! comentado pelo sr. Taine! Primaveril o espírito de Musset! Encantador o seu amor! Aí está, pintura esmaltada, poesia sólida!

Durante muito tempo a poesia francesa será saboreada, mas na França. Qualquer menino de mercearia é capaz de desenrolar uma apóstrofe Rollaca, qualquer seminarista guarda quinhentas rimas no segredo de um caderno. Aos 15 anos, esses impulsos de paixão põem os jovens no cio; aos 16, eles já se contentam em recitá-los com ardor; aos 18 anos, mesmo aos 17, qualquer colegial que tem os meios faz o Rolla, escreve um Rolla! Talvez alguns ainda morram por isso. Musset nada soube fazer: havia visões por detrás do véu das cortinas: ele fechou os olhos. Francês, miserável, arrastado da bodega à carteira da escola, o belo morto está morto, e, doravante, não nos demos sequer ao trabalho de despertá-lo com nossas abominações!

Os segundos românticos são bastante videntes: Théophile Gautier, Leconte de Lisle, Théodore de Banville. Mas como inspecionar o invisível e ouvir o inaudito não é a mesma coisa que retomar o espírito das coisas mortas, Baudelaire é o primeiro vidente, rei dos poetas, um verdadeiro Deus. Ele também, porém, viveu em um meio demasiado artista; e a forma nele tão exaltada é mesquinha: as invenções de desconhecido exigem formas novas.

Rompida com as formas velhas, entre os inocentes, A. Renaud – fez seu Rolla; L. Grandet, – fez seu Rolla; os gauleses e os Musset, G. Lafenestre, Coran, Cl. Popelin, Soulary, L. Salles; os escolares, Marc, Aicard, Theuriet; os mortos e os imbecis, Autran, Barbier, L. Pichat, Lemoyne, os Deschamps, os Desessarts; os jornalistas, L. Cladel, Robert Luzarches, X. de Ricard; os fantasistas, C. Mendès; os boêmios; as mulheres; os talentos, Léon Dierx, Sully-Prudhomme, Coppée, – a nova escola, dita parnasiana, tem dois videntes, Albert Mérat e Paul Verlaine, um verdadeiro poeta. – Aí está12 12 N. do T. Rimbaud lista uma série de poetas então conhecidos, quase todos parnasianos. . – Assim trabalho para tornar-me vidente. – E terminemos com um canto piedoso.

AGACHAMENTOS13 13 Em: Rimbaud, Arthur. Poesia completa. Ob. cit.:140-3.

[...]

O senhor seria execrável se não respondesse: rapidamente, pois em oito dias estarei em Paris, talvez.

Até logo,

Arthur Rimbaud

Tradução Marcelo Jacques de Moraes [UFRJ]

  • 1
    N. do T. Professor de retórica de Rimbaud, de janeiro a julho de 1870. Torna-se guia e amigo do poeta.
  • 2
    N. do T. A mãe está de pé, aflita, enquanto o filho pende da cruz. Passagem da liturgia.
  • 3
    N. do T. Alusão aos combates da Comuna de Paris.
  • 4
    N. do T. Rimbaud transcreverá nestas cartas alguns poemas, mais tarde publicados. Remetemos o leitor à edição brasileira bilíngüe preparada em 1995 por Ivo Barroso. Esse poema será depois conhecido como "Coração roubado" ["Coeur volé"] (Em: Rimbaud, Arthur.
    Poesia completa. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995:152-3).
  • 5
    N. do T. Jovem poeta, amigo de Izambard, a quem Rimbaud oferece seus primeiros poemas.
  • 6
    Em: Rimbaud, Arthur.
    Poesia completa. Ob. cit.:132-5.
  • 7
    N. do T. Assim Racine era chamado pelos Jeunes-France, românticos intransigentes ironizados por Théophile Gautier em seu romance
    Les Jeunes-France, de 1833.
  • 8
    N. do T. Assim começam muitos títulos de livro nesta época.
  • 9
    N. do T. Em
    L'Homme qui rit, de Victor Hugo, os ladrões de crianças que as mutilam e exibem em feiras.
  • 10
    Em: Rimbaud, Arthur
    Poesia completa. Ob. cit.:136-9.
  • 11
    N. do T. Os dois poemas são desconhecidos.
  • 12
    N. do T. Rimbaud lista uma série de poetas então conhecidos, quase todos parnasianos.
  • 13
    Em: Rimbaud, Arthur.
    Poesia completa. Ob. cit.:140-3.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Maio 2007
    • Data do Fascículo
      Jan 2006
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